Reportagem passa o Natal com pessoas que não conseguem dizer feliz Natal
Fim da primeira entrevista do dia, com Edmundo dos Santos, baiano de Feira de Santana, 40 anos. O repórter e sua colega fotógrafa mandam praticamente o mesmo agradecimento:
- Obrigado. Feliz Natal.
A resposta é simpática, mas sem entusiasmo:
- Valeu. O papo foi bom.
Tempos depois, ponto final na segunda conversa, desta vez com o mineiro Weldenico Vicentin, 37 anos, ex-estudante de Teologia, pai de duas filhas.
A segunda tentativa:
- Valeu pelo papo. Feliz Natal.
A resposta:
- É isso aí. Um abraço.
Chega ao final a terceira entrevista, com Carlos Gastaldello, 44, gaúcho de Caxias do Sul. Vamos lá...
- Valeu, Carlos. Feliz Natal.
A resposta:
- Olha, posso até tentar ter uma noite boa, mas feliz Natal já é demais. A verdade é que somos um monte de solitários reunidos aqui. Não tem essa de espírito familiar. E no meu caso, ainda por cima, você está falando com um ateu.
São Paulo, início da noite de sexta-feira, 24 de dezembro de 2010. Faltam menos de seis horas para a meia-noite.
Fim da primeira entrevista do dia, com Edmundo dos Santos, baiano de Feira de Santana, 40 anos. O repórter e sua colega fotógrafa mandam praticamente o mesmo agradecimento:
- Obrigado. Feliz Natal.
A resposta é simpática, mas sem entusiasmo:
- Valeu. O papo foi bom.
Tempos depois, ponto final na segunda conversa, desta vez com o mineiro Weldenico Vicentin, 37 anos, ex-estudante de Teologia, pai de duas filhas.
A segunda tentativa:
- Valeu pelo papo. Feliz Natal.
A resposta:
- É isso aí. Um abraço.
Chega ao final a terceira entrevista, com Carlos Gastaldello, 44, gaúcho de Caxias do Sul. Vamos lá...
- Valeu, Carlos. Feliz Natal.
A resposta:
- Olha, posso até tentar ter uma noite boa, mas feliz Natal já é demais. A verdade é que somos um monte de solitários reunidos aqui. Não tem essa de espírito familiar. E no meu caso, ainda por cima, você está falando com um ateu.
São Paulo, início da noite de sexta-feira, 24 de dezembro de 2010. Faltam menos de seis horas para a meia-noite.
Árvore de Natal em abrigo de São Paulo
O R7 está no Centro de Acolhida Lygia Jardim, no bairro Bela Vista, um dos mais de 40 abrigos de moradores de rua de São Paulo.
O espírito de Natal, essa nuvem emblemática que faz cristãos acreditarem que todo pecado pode ser purgado e os não cristãos ao menos aproveitarem o momento para incorporar um pouco mais de delicadeza às atitudes, está espalhado pelo bairro, a cidade, o país e, ainda, por um bom pedaço do mundo.
O sentimento explode nos fogos de artifícios lá fora.
Na gritaria de uma meia dúzia de moleques na rua.
Nas ceias e amigos secretos que enchem os capítulos das novelas que invadem o horário nobre nas duas tevês ligadas no lugar.
No cheiro forte de pernil de porco com cebola e pimentão refogados, a estrela do jantar melhorado da noite, levado à mesa do refeitório pelos que dormem no abrigo em pratos que parecem réplicas do Pão de Açúcar e do Pico do Jaraguá.
Neste país que parece agradecer simbolicamente mais um ano de barrigas cheias e bolsos um pouco melhores, o sentimento natalino parece estar em tudo.
Em praticamente tudo – menos nos corações e mentes daqueles 60 homens e 40 mulheres do Lygia Jardim, uma turma que, em sua suprema maioria, até parece tentar mas não consegue dizer Feliz Natal.
Sentado diante da janela do refeitório, derrubando sua montanha de arroz, pernil e salada de repolho, cebola e tomate (a sobremesa foi sorvete de chocolate), Carlos manda uma pergunta em tom aparente de fuzilamento:
- Você já morou na rua alguma vez?
O repórter diz um “não” seco. E espera uma ironia do tipo “e esses caras ainda vêm aqui falar em Natal feliz, união”, mas o amigo gaúcho, mesmo com a voz alta, mostra piedade:
- Então passe uma semana na rua e você vai aprender uma realidade. O fato é um só: quem mora em abrigo não tem amigo. Tem conhecido. Eu não tenho amigo aqui dentro.
Oito ou dez pessoas jantam no refeitório. Um rapaz de nome heterodoxo, Necanter Renan (como há rapazes de nomes heterodoxos neste abrigo...), é o único a discordar.
Carlos trabalhava como organizador de arquivos físicos e digitais. Prestava serviços para empresas de grande porte. Em 2003, conta, ficou 28 dias dentro de um grande hipermercado em São Paulo para salvar da falência um sistema que havia montado.
- Tinha um contrato de R$ 200 mil com este grupo. Nesta crise, em janeiro de 2003, eu dormia no máximo duas horas por dia, lá dentro. Cheguei a ficar aceso de segunda a sexta. Essa jornada me trouxe fotofobia, doença do pânico e uma labirintite que não me deixava andar três metros sem cair.
Ele bateu com o carro do cliente. Perdeu a noiva, o cachorro, os bens e, por fim, o equilíbrio mental e psicológico. Ficou, nas suas palavras, meio “doidão”. A situação foi relatada para todas as lojas do grupo por uma administradora. Carlos não conseguiu mais trabalhar. Daí para o dia em que o dinheiro acabou e a calçada o conheceu, foi um pulo.
- Quando você mora na rua, o álcool, por exemplo, é consequência. É tanto frio, tanto medo de que algo ocorra, barulho de carro, poeira, sujeira, ratazana... É tudo tão hostil que você encara qualquer coisa que afaste suas sensações daquela realidade. Aí vem álcool, como no meu caso, e, para outros, droga, tudo. Muitos se viciam. Nessas condições, fica difícil para alguém competir com os bens formados lá fora. O sustento fica inviabilizado e a gente permanece no abrigo. É o ciclo vicioso.
Weldenico, ao lado, ouve a história com atenção. Ele tem duas filhas, hoje com 15 e 12 anos. Viveu com elas, ao lado da mulher, até 1998, em Nova Almeida, no Espírito Santo.
Teve bons empregos, entre eles o de soldador de uma grande empresa prestadora de serviços para a Vale do Rio Doce. Evangélico, como seus familiares, chegou a estudar no Seminário Batista Fluminense, em Campos, no norte do Estado do Rio.
O vício em cocaína começou a derreter sua estabilidade familiar em meados dos anos 90. Em 1998, quando a situação ficou insustentável, ele chegou à conclusão de que não deveria mais “destruir a vida de ninguém”.
Entulhou as roupas numa mochila e saiu de casa. Um ano depois, veio para São Paulo. E caiu de ponta no crack.
O Lygia é o oitavo abrigo frequentado por ele. Faz tratamento físico, psicológico e usa medicamentos para ficar longe da pedra, que felizmente não o atazana há seis meses. Tem hepatite C, mas não contraiu o vírus HIV.
Weldenico tem o raciocínio organizado e fala com correção. Mas quase tudo ao seu olhar parece ter a marca da indiferença.
- Você hoje sente saudades das suas filhas?
- Nenhuma. Nem a mais remota. Quero o bem delas, claro, mas acho que essa situação de distância, no nosso caso, é a ideal e deve ser mantida. Desde que vim para São Paulo, fui ao Espírito Santo três vezes, mas não as encontrei. Fiquei em Vitória, a capital.
Weldenico vive ultimamente de “bicos na área de publicidade”. É assim que ele define aquele trabalho em que o cidadão pendura uma placa ou cartaz no corpo e, literalmente, empresta a vida ao bem de alguma mensagem.
A reportagem quer saber por que ele, informado e com cursos técnicos de pintor de paredes, assistente de cabeleireiro e artesão, todos feitos em abrigos, não toma um rumo melhor na vida.
- Olhe, tudo o que eu gostaria era de recuperar meu espaço na ordem religiosa batista. Como não consigo, fico patinando numa eterna crise existencial. E como isso aqui nos dá teto, comida, roupa lavada, eu acabo ficando. Tem um monte de gente aqui que eu vejo dizer, há anos, que quer deixar o abrigo. Mas poucos vão embora. Eu não reclamo. Pago o preço que atitudes erradas que tomei. A verdade é uma só: isso aqui também vicia.
A imagem do vício permite uma explicação.
Pelos cálculos oficiais, há entre 16 mil e 18 mil pessoas “em situação de risco nas ruas”, como os técnicos preferem definir, em São Paulo. Pelo menos 60% deste público é formado por homens a partir dos 30 anos. São viciados em álcool, drogas, pessoas em situação de conflito familiar. Ou, muitas vezes, quase tudo isso - ou tudo isso - junto.
Os que utilizam abrigos como o Lygia Jardim chegam todos os dias a partir das 16h. Guardam seus pertences em um espaço comum, recebem um kit banho, encaram um chuveiro, jantam (das 18h às 20h) e vão dormir em salas comuns lotadas de beliches.
No dia seguinte, o café da manhã é servido das 6h40 às 8h. Neste horário, todos precisam deixar o abrigo, que é limpo e organizado para que a maratona seja reiniciada no final da tarde.
Neste intervalo, muitos recolhem papel, latas, fazem bicos. Alguns trabalham com carteira assinada. A administração do centro tem programas e parcerias que treinam os abrigados em algumas profissões e os indicam para trabalhar em empresas e instituições sociais.
A roupa de cama é trocada uma vez por semana. À noite, a tevê só pode ficar ligada até as dez da noite. Isso não chega a ser um problema para os instrutores. É raro alguém chegar a tanto de olho na telinha. A turma acorda cedo, trabalha pesado e, por isso, procura o colchão cedo.
O que costuma incomodar é a chegada de um abrigado constante muito “doidão” de álcool ou droga. Ele é orientado para dar uma volta e retornar quando a onda passar. Se voltar ainda muito ruim, tem a entrada proibida, para que suas atitudes inconvenientes ou eventualmente violentas não atrapalhem os outros.
No pensamento da maioria das pessoas, esses abrigos são espaços para pessoas abandonadas no mundo, sem família, eternas vítimas da atitude dos outros. Elas estariam sempre dispostas a chorar o abandono e a reclamar do mundo em grandes datas, como o Natal, ou nos momentos da vida que calam fundo por algum motivo individual.
Não é bem assim. O mundo ali é árido, duro, triste para quem teve a vida sempre envolvida por um ambiente familiar estruturado.
Há vítimas, é fato, sobretudo entre as mulheres. Mas a maioria se sente um pouco salva para pagar seu pedágio particular e tentar se recuperar de uma trajetória que, pelos “feitos realizados”, talvez até não permitisse uma nova chance.
Como resultado disso tudo, os depoimentos às vezes são confusos. A sinceridade, muitas vezes, convive com certo cuidado para omitir, aqui ou ali, uma parte da vida muito constrangedora mesmo para quem tenha verdadeiramente se arrependido dela. Nos equívocos de trajetória, quando é o caso, poucos homens gostam de lembrar, por exemplo, os momentos ou fases em que bateram em ex-companheiras.
O baiano Edmundo dos Santos, 40 anos, é um exemplo capaz de desmentir a tese de que abrigado é sempre vítima do alheio. Informado, considera-se liberal em termos políticos. Critica a opção diplomática do governo Lula, que virou olhos e ações para o Irã e países africanos. Acha que os Estados Unidos merecem respeito por serem “o eixo de consumo que move e enriquece o resto do mundo”.
Edmundo ganhou um bom dinheiro como prestador de serviços de eletricista para empresas. Antes de comprar um teto para viver na cidade, torrou tudo em carros (tinha sempre dois), farras e noitadas.
Quando percebeu, existiam apenas as dívidas. Muitas dívidas. A solução foi correr para o abrigo mais próximo. Até para assumir o próprio erro, sua conversa é, digamos, contextualizada:
- Eu criei as situações para que minha vida afundasse. Mas, como muita gente, preciso de um treinamento melhor para me reerguer. E isso só será possível se o poder político investir em capacitação de pessoas como eu, em situação de risco nas ruas. Sem um trabalho sério neste campo, nós vamos reproduzir a vida inteira essa realidade que você está vendo. E novas gerações farão a mesma coisa. O Lygia Jardim é um abrigo misto. Mas não misturado. Homens e mulheres ficam em unidades diferentes, paralelas, separadas por um corredor de um metro e meio de largura. Uns não podem entrar no território dos outros. A reportagem esperou a chegada do Natal conversando com as abrigadas no lado feminino.
Uma delas pediu para ter seu nome verdadeiro trocado por Angelina, “em homenagem àquele monumento da Jolie”. Ela parece estar orgulhosa de simplesmente ter sobrevivido.
Nascida em São Gonçalo, no Estado do Rio, órfã aos três anos, criada em São João Nepomuceno, na zona da mata mineira, Angelina correu o Brasil de cabo a rabo em grandes jornadas que misturavam “programação” (ela prefere esta pérola a prostituição) e muita, muita droga. Primeiro maconha, depois cocaína, logo em seguida crack.
Viciada em pedra, comemora o fato de não ter sucumbido às recaídas no último mês:
- Faço um curso de bartender (garçom de bar). Se tudo der certo, vou sair daqui em pouco tempo, trabalhar, alugar meu cantinho e viver em paz, namorando as “mulezinha” que eu gosto.
E o espírito de Natal?
- A única pessoa que me desejou Feliz Natal na vida foi minha avó materna, a que me criou. A única que cantou parabéns para mim também foi ela. Estou num momento pessoal alegre, entende? Se alguém quiser achar isso hoje espírito de Natal, que ache, mas eu não sei...
Ao final da conversa com Angelina, um abrigado chega na varanda da lavanderia, do outro lado do corredor, e grita para a amiga: feliz Natal!
Angelina responde com um aceno. De qualquer forma, a noite, pela exceção, estava mais macia.
Almir Pires, coordenador do abrigo, rendeu-se aos pedidos e deixou a TV correr solta até mais tarde para que alguns pudessem ver a programação do dia especial. Mas a turma fez como sempre: cama depois da novela.
Na saída, a reportagem encontra Necanter Renan, o moço de nome heterodoxo.
Usava calça comprida, camisa e um belo par de sapatos, tudo preto.
- Vou sair com vocês.
Depois de perambular 16 de seus 30 anos por calçadas, bairros e abrigos de São Paulo e da Baixada Santista, ele descolou um emprego de manutenção em um hotel no Parque Dom Pedro, região central de São Paulo. Vai ter um quarto só para ele, comida, roupa lavada e R$ 700 por mês.
Na calçada, Necanter joga a mochila nas costas e se despede da dupla de repórteres.
Não deu tempo para perguntar se era presente natalino.
Metros à frente, no estacionamento particular, o único funcionário de plantão faz o voto:
- Feliz Natal!
Pode ter sido fraqueza diante de tanto comportamento resistente a paulada, mas o fato, como gosta de dizer o amigo Carlos, é um só: ter reencontrado este mundo, é preciso confessar, não deixou de ser confortável.