Todo dia a morte leva de um a três pacientes da médica Lucia Cerqueira Gomes. O que seria arrasador para a maioria de seus colegas é rotina para ela. Lucia, 39, trabalha no Inca 4, a unidade do Instituto Nacional de Câncer, no Rio, voltada para pacientes terminais.
Responsável pela enfermaria do quinto andar e coordenadora da equipe de visitas domiciliares, ela administra os chamados cuidados paliativos. São remédios e procedimentos que procuram poupar da dor quem não pode mais passar por tratamentos invasivos como cirurgias e quimioterapias.
Rafael Andrade/Folha Imagem
Lucia Cerqueira Gomes atende pacientes terminais de câncer e luta contra o tempo para que pessoas aceitem o fim com serenidade
E não só as dores físicas são inimigas. Numa visita acompanhada pela Folha, a médica se esforçava para que uma professora de 67 anos, com metástase de um tumor nos rins, buscasse ânimo para realizar coisas ainda possíveis, nem que fosse uma pequena peça de crochê.
Deu-lhe as mãos, conversou, buscou que, do choro da mulher, surgisse alguma "elaboração", como se diz no jargão dos cuidados paliativos. Ou seja, que ela expressasse parte do que estava sentindo, para não ficar tomada pela angústia. O resultado, naquele dia, não foi completamente satisfatório.
"O medo [no seu trabalho] é não ter tempo. Quando um paciente morre, nós pensamos: 'Será que deixamos de fazer alguma coisa? Será que ele conseguiu passar com tranquilidade?'", conta ela, especialista em clínica-geral há 17 anos.
Sem salvação
Palavra que diz com frequência ao explicar o que almeja para seus pacientes, tranquilidade parece ser uma marca sua. Ela fala baixo, dá respostas curtas, evita frases emocionadas.
Ao contrário de médicos com outras funções, ela não vê a sua como salvacionista. Quer ajudar as pessoas a "fechar" bem. Por "fechar" entenda-se resolver as pendências possíveis (práticas e emocionais) para conquistar alívio.
Há casos tão bem sucedidos que, paradoxalmente, deixam Lucia angustiada. Um engenheiro, por exemplo, conseguiu viajar com a mulher, casar a filha e dizer para a médica: "Fique tranquila, eu estou bem".
"Mas não há mais nada que eu possa fazer por você?", perguntou ela. "Não, eu estou bem", repetiu ele. E morreu dias depois. "Houve tempo para criar vínculos", explica Lucia.
Situação diferente ela enfrentou com uma senhora que sentia dores. Suas filhas pediam que fossem dadas doses menores de morfina, para que ela talvez reagisse.
"Foi um tratamento confuso desde o início. E não houve tempo para criar confiança. Acho que ela sofreu", conta a médica, que encontrou as duas filhas da paciente horas depois de a morte acontecer. "A gente tentou brigar até o último momento. Desculpe qualquer coisa", justificaram elas.
Caminhos truculentos
Instituição federal, o Inca 4 atende pacientes de várias classes sociais. É comum a equipe --formada por médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais-- lidar com famílias desestruturadas, com um histórico de violência, nas quais "fechar" bem se torna difícil.
"Se o caminho é truculento ao longo de toda a vida, vai ser truculento no final", resume Lucia, lembrando que problemas graves existem também em pacientes ricos. "Há pessoas que vivem num luxo intenso, mas por dentro têm uma miséria muito grande."
Lucia diz receber entre 90 e cem pacientes por mês. E perder a mesma quantidade. Num dia em que a reportagem da Folha esteve pela manhã no hospital, em Vila Isabel (zona norte), acabara de morrer uma pessoa. Em outro, um corpo passou ao lado numa maca.
"Não é 'lava, troca e põe outro'. São histórias, vidas, sentimentos, interesses. Mas, se chorar a cada morte, esqueço o foco, que é a vida", afirma.
Se a morte fosse encarada por ela como algo trágico, e não um desdobramento natural da vida, como seria chegar toda noite em casa e encarar seus filhos, uma menina de seis anos e um menino de quatro? Daí a importância de ressaltar o lado positivo de conviver tanto com a proximidade da morte.
"Os pacientes ensinam como viver bem com muito pouco, como não perder tempo com coisas pequenas", diz.
As crianças ainda não sabem detalhes de seu trabalho. A filha pensava até havia pouco que ela era "médica de perna", pois fazia curativo nos seus joelhos e canelas ralados.
Lucia afirma que nunca sentiu vontade de trabalhar com crianças. "Eu ia sofrer até dizer 'chega!'. Se uma criança chorasse, eu a botaria no colo", diz.
Fonte: Folha de São Paulo
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