Há mais de três décadas, a educadora dominicana Sergia Galván, de 54 anos, é reconhecida internacionalmente por seu trabalho para combater as violações dos direitos humanos - principalmente das mulheres, dos jovens e dos negros. Em entrevista a ÉPOCA, por telefone, ela afirmou estar frustrada com o governo de Barack Obama. "O boicote de países como Estados Unidos, Canadá, Itália, Austrália e Nova Zelândia à Conferência de Revisão de Durban é uma tremenda manifestação de racismo." Como indica o nome, a conferência (organizada pelas Nações Unidas em Genebra, Suíça) tem o objetivo de revisar o cumprimento das decisões da Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em 2001 em Durban, na África do Sul. Segundo Sergia, ainda há muito por fazer. Nos últimos dias, ela tem batalhado contra mudanças na Constituição de seu país. Políticos ultra-conservadores pretendem considerar apátridas os descendentes de haitianos nascidos na República Dominicana. Se isso acontecer, "será a maior expressão de racismo e xenofobia já vista na América Latina", diz Sergia. "Há quase 1 milhão de pessoas de origem haitiana na República Dominicana".
QUEM É
Sergia Galván, de 54 anos, é dominicana. Graduada em educação pela Universidade Autônoma de Santo Domingo, é especialista em temas relacionados à mulher, ao racismo e aos direitos humanos
O QUE FAZ
É diretora executiva da ONG Coletivo Mulher e Saúde da República Dominicana e fundadora da Rede de Mulheres Afrodescendentes da América Latina e Caribe. Ativista social há mais de 30 anos, atuou em entidades como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA)
ÉPOCA – A essência do racismo mudou? Sergia Galván – Não. O que mudou foram suas formas de expressão. Embora hoje em dia as manifestações sejam mais sutis, elas aparecem com muito mais força. O antissemitismo e a xenofobia que vemos em várias partes do mundo são exemplos disso. O boicote de países como Estados Unidos, Canadá, Itália, Austrália e Nova Zelândia à Conferência de Revisão de Durban é uma tremenda manifestação de racismo. Para a comunidade afrodescendente é frustrante ver que, com Obama no poder, os EUA não tenham se esforçado para reafirmar o compromisso de combate ao racismo.
ÉPOCA – É o racismo contemporâneo? Sergia – É, sim. Essas manifestações também podem ser chamadas de racismo agravado. E a discriminação pode ser múltipla, por exemplo, se além de sofrer as consequências por ser negra, a pessoa sofre por ser imigrante ou por não ser heterossexual. Os meios de comunicação, de maneira sutil, também reforçam a discriminação. Expressões como "um dia negro para a economia" e "o mercado negro do dólar" associam o negro ao mal e ao ilegal. A criminalização dos jovens e a predominância dos afrodescendentes nas penitenciárias são uma expressão do racismo. E o Brasil não fica fora disso. Nos livros escolares usados na América Latina, os negros aparecem em funções de pouca importância social e econômica. Não vemos cientistas negros, por exemplo. Os livros de história manipulam ou ocultam a contribuição dos negros para a construção das nações e da democracia. Dificilmente encontramos histórias infantis positivas e bonitas sobre a afrodescendência.
ÉPOCA – A Conferência de Revisão de Durban, de 20 a 24 de abril, representa um avanço na luta contra o racismo? Sergia – Não acredito nisso. Depois de 11 de setembro (de 2001, data dos atentados aos EUA), sob o pretexto de combater o terrorismo, vários países se recusaram a assumir compromissos na luta contra o racismo. Principalmente os Estados Unidos. O objetivo da conferência era avaliar quanto o combate ao racismo e à pobreza avançou nos últimos oito anos, mas vários países apresentaram apenas relatórios incompletos. Houve apenas retórica. O que se tentou na conferência foi evitar retrocessos. Não foi dado nenhum passo adiante. O que houve ali foi novamente uma declaração de intenções. Não um compromisso real.
ÉPOCA – Qual a sua avaliação sobre o discurso antissemita de Mahmoud Ahmadinejad em Genebra? Sergia – Israel, Palestina e Irã não deveriam ser o tema central da discussão em Genebra porque desvirtuariam o objetivo real da conferência. O conflito criado ali foi usado por países hegemônicos como argumento para boicotar o evento e, com isso, não assumir suas responsabilidades no combate ao racismo.
ÉPOCA – Como combater o racismo de maneira eficaz? Sergia – É preciso adotar ações afirmativas e um modelo de desenvolvimento que inclua os afrodescendentes. A maioria dos países nem sequer reconhece a existência do racismo. Na República Dominicana, onde 80% da população é afrodescendente, o Estado diz não haver racismo. Apenas preconceito racial. Os dominicanos usam vários adjetivos para negar sua identidade. Dizem que são índios claros, índios escuros, mulatos... Porque ser negro ou afrodescendente não é valorizado socialmente. De acordo com as estimativas, somos 150 milhões na América Latina. Algumas autoridades afirmam que somos 30 milhões ou 60 milhões. Estamos lutando para que na rodada de censos de 2010, que será realizada na América Latina, os dados étnico-raciais sejam desagregados. Precisamos nos conhecer, saber quantos somos e valorizar a nossa identidade.
ÉPOCA – Na República Dominicana, que divide com o Haiti a ilha Hispaniola, há um forte preconceito contra os haitianos. Como isso se manifesta? Sergia – Nos últimos anos, pessoas de origem haitiana têm sido queimadas vivas em manifestações ultra-racistas. Assim como as bruxas eram queimadas no passado. A Constituição está sendo reformada. Atualmente, é considerado dominicano quem nasceu no país ou é descendente de dominicanos. Se a nova proposta for aprovada, apenas os descendentes de dominicanos terão direito à cidadania. É a lei do sangue. Descendentes de haitianos nascidos na República Dominicana serão considerados apátridas. Já há muita gente nessa situação. Há famílias inteiras em que três gerações nascidas na República Dominicana não têm sequer um documento de identidade.
ÉPOCA – Como essas pessoas vivem sem documentos? Sergia – Pelo menos 22% da população dominicana não tem documento de identidade. São majoritariamente negros e pobres. Pela lei, elas não têm direito ao seguro social e só podem frequentar a escola até que sejam exigidos seus documentos oficiais. Mesmo as pessoas que tem documentos podem ser afetadas se a Constituição for alterada. Isso porque o status legal será passado de pai para filho. Será a maior expressão de racismo e xenofobia já vista na América Latina. Há quase 1 milhão de pessoas de origem haitiana na República Dominicana.
Solange Azevedo
fonte:ÉPOCA
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