segunda-feira, 14 de maio de 2012

Vidas e costumes sob o risco de extinção


Isoladas, tribos indígenas da Etiópia, que mantêm práticas culturais inusitadas, são vítimas de invasões de terras e obras de infraestrutura

A África despede-se aos poucos de um de seus estereótipos mais fortes, suas tribos primitivas. Grupos indígenas desaparecem à medida que surgem quilômetros de asfalto e novas torres de celular. As áreas mais isoladas do continente são conquistadas e não há mais refúgios para as populações nativas. Uma barragem no sul da Etiópia, a maior do país e a mais alta da África, modificará para sempre a paisagem que abriga as diferentes tribos do vale do Rio Omo.

Durante um percurso de 40.000 quilômetros, por 18 países do continente, conheci comunidades nativas que caminham a passos lentos em direção ao século XXI. De todas as etnias, as tribos do vale foram as que mais me impressionaram. A região é enclaustrada: os primeiros ocidentais conheceram o rio e suas etnias há apenas pouco mais de um século. Tribos como hamer, karo, ari, banna ou mursi são os últimos arquétipos de povos nativos com (quase) nenhuma influência da vida moderna. Falam somente seus idiomas, vestem roupas de couro de animais e (ainda) não têm telefones celulares.

Turmi é um vilarejo dentro da área hamer que ganha vida às segundas-feiras, dia de mercado. O movimento só engrena às 11h30: os locais precisam de três a seis horas para chegar a pé até o lugar. Turmi está fora das rotas de comércio e aqui não existem objetos de plástico “made in China”. As mercadorias são básicas: alimentos para sobreviver. É um mercado africano como eram todos os outros há 50 anos. Há mais mulheres que homens, e quase todas usam vestimentas nativas. Elas levam um longo pedaço de pele de cabra pendurado no pescoço, cobrindo a frente do corpo. A borda da pele do animal é decorada com búzios. As laterais estão abertas, deixando transparecer os seios. As costas estão nuas. Estou em território nativo, num dos últimos bastiões de tribos de tradição pastoril. “Você pode entender a base da economia dos hamers pelos produtos do mercado”, afirma Adimas Genebo, um intérprete. “Além da manteiga, eles trazem leite, mel e animais vivos. E voltam com sorgo, milho e folhas de tabaco.”


Corre a notícia de que haverá, depois do mercado, uma cerimônia bullah, a mais importante da tribo hamer. É um rito de passagem, em que um jovem deve saltar sobre seis touros para ser considerado adulto. O ponto de encontro é uma clareira. A primeira parte da cerimônia envolve as mulheres e sempre acontece perto de um rio. “O lugar simboliza a renovação da vida, porque as águas, na época da chuva, limpam a areia”, diz Adimas. “As cenas do ritual são fortes.”

Um grupo de mulheres entra em fila no palco natural. Todas são da família de Gusho, aquele que será iniciado. São irmãs, primas ou tias. Elas preparam a festa há dias e darão, a sua maneira, um exemplo de coragem e motivação para que o rapaz vença a prova. Graças à cerveja de sorgo e ao vinho de mel que tomam desde a véspera, as mulheres estão sob o efeito do álcool, o que as torna atrevidas e destemidas. A tradição hamer manda que as mulheres mostrem que a dor não importa e que a bravura é o valor mais nobre.

O próximo passo é provocar um grupo particular de homens adultos, os mazas. Elas os chamam de covardes, dizem que não são machos e os insultam. Os mazas sorriem. Eles passaram pelo ritual de iniciação e conhecem o procedimento. Os mazas formam um pequeno grupo que percorre o território hamer, participando de cerimônias como o bullah. Eles não têm nenhuma relação de parentesco com Gusho ou com as mulheres. O papel do maz é cumprir a tradição, sem estar envolvido emocionalmente com a família que organiza a festa. Depois de tanta zombaria e escárnio, os mazas tomam em suas mãos varas flexíveis de 2 metros de comprimento, os miceres. A provocação escrita no roteiro hamer serve como estopim para a ação masculina. Eles revidam os insultos açoitando as costas das mulheres audaciosas. É esta a reação que elas buscam: que a vara bata com vigor em seu corpo e que possam mostrar a Gusho quanto elas aguentam a dor.

O episódio não é um show, é um ritual baseado num sistema de vida tradicional e simbólico. As mulheres estão em transe. Saltam nas pontas dos pés, gritam e tocam a infernal corneta no rosto dos mazas. Provocam para receber mais chicotadas. Algumas mulheres expõem vários cortes de um palmo de comprimento nas costas, e o sangue brota. Quando vejo as gotas escorrendo, fico arrepiado, imaginando a dor que sentem. No lombo das mais maduras, há cicatrizes das cerimônias do passado. Cabe aos mais idosos avisar quando o ritual termina. Com palavras pacificadoras, eles pedem às mulheres para abandonar o recinto. Enfim, terminam os flagelos.

Caminhamos 500 metros, para longe do rio. Sigo a multidão e entro no mato. Caio numa clareira ampla, onde encontro dezenas de touros e bezerros machos. Os mazas estão sentados no chão, num canto da clareira. Gusho chega com os anciãos. Ele tem 20 e poucos anos e deveria ter feito o bullah antes. Segundo um membro da família, ele passou os últimos anos no mato, longe da aldeia, cuidando do rebanho, razão do atraso. Seu cabelo foi cortado de forma bizarra. Os mazas aproximam-se do rebanho para escolher seis touros fortes. Todos são zebus, com corcovas grandes. Os mazas, os anciãos da família e os amigos íntimos de Gusho seguram os animais. Seis deles agarram o rabo, outros seis a cabeça e os chifres dos touros.

Tudo está preparado para o ritual de iniciação. Gusho precisa saltar, caminhar por cima dos seis touros emparelhados e, sem cair, chegar ao outro lado. A tensão é grande. Ele não pode falhar, sua honra está em jogo. Os membros da família estão reunidos para assistir a um momento de glória, e não de fracasso. “Todos zombarão do rapaz se ele não conseguir passar a prova, se tropeçar e cair de um touro”, afirma Adimas. “Não poderá se casar, pois nenhuma mulher vai querer alguém que perdeu o bullah. Provavelmente ele terá de deixar a comunidade.” Gusho está pronto. E completamente nu, símbolo do nascimento para sua nova vida. Veste apenas duas tiras de casca de árvore. Ele toma impulso, corre e salta para chegar à altura das costas do primeiro touro. Sem perder o equilíbrio, coloca o outro pé no segundo animal e, assim, segue adiante. Entre o quarto e o quinto touro, ameaça cair, mas consegue continuar sua caminhada, de braços abertos, sobre a espinha dorsal dos animais – e retorna ao solo firme.

As mulheres tocam suas cornetas com entusiasmo, os gritos femininos são eufóricos. Gusho consegue vencer a primeira prova. Ele tem mais cinco pela frente. Não pode errar nenhuma. Ele se concentra, toma distância e acelera. Levanta seu pé direito e consegue alcançar o dorso do touro branco, a 1 metro de altura. Seu pé esquerdo sobe até as costas do touro cinza, o segundo animal. Como que andando sobre uma ponte frágil e perigosa, ele vence a barreira bovina e chega ao chão. A terceira, quarta e quinta rodadas também são bem-sucedidas. Mais toques de cornetas! Todos gritam palavras de apoio a Gusho, que, com determinação, parte com tudo o que lhe resta de energia. Ele dá seis passos firmes sobre os touros e está de volta ao terreno. Vitória!


Se os saltos sobre os touros emocionaram a plateia, as chicotadas nas mulheres assombram. De um lado, o vigor de uma tradição, repleta de emblemas incompreensíveis; de outro, a violência de um ato que levaria, no mundo ocidental, qualquer maz à cadeia durante anos por chicotear tantas mulheres numa só tarde. Deve o governo etíope, em nome dos direitos humanos ou do desenvolvimento, proibir o ritual dos açoites? Impedindo a manifestação, não estariam as autoridades destruindo um elemento da tradição hamer? Lars Krutak, antropólogo do Instituto Smithsonian especializado em rituais de escarificação, considera que, mesmo se o governo declarar o ritual ilegal, os hamers continuarão com ele. “É uma cerimônia tão antiga como o próprio povo e representa um aspecto essencial da identidade cultural hamer. Sem a participação feminina e o autossacrifício, o ritual perderia força”, afirma Krutak. Ele passou por uma sessão de açoites ao visitar a etnia.

Os povos do Omo estão com seus dias contados por outra razão. A barragem Gibe III está sendo construída no Rio Omo. A entrada de milhares de empregados na região traz as benesses e também os vícios da vida moderna. Segundo a ONG Survival International, a represa, desenhada por italianos e financiada por chineses, não passou por uma avaliação independente de impacto cultural e ambiental, e os povos nativos já sofrem com a invasão de seu território. “A barragem permitirá que empresas estrangeiras irriguem territórios indígenas, arrendados pelo governo etíope para plantar cana-de-açúcar, algodão e palma de óleo”, afirma Stephen Corry, diretor da ONG. “Os povos do Omo não foram consultados e, quando os indígenas protestam, eles são presos. Mais de 100 nativos foram detidos.” O governo de Adis Abeba quer apenas acelerar o crescimento do país.

Época

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