ELIANE BRUMJornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).
elianebrum@uol.com.brA amplidão do vocabulário é a mesma da vida
Adote uma palavra antes que ela desapareça. Esta é a proposta de um site encantador, criado pelo Oxford English Dictionary. Você abre o site e há uma tela cheia de palavras carentes. Elas saltitam, se exibem, dão piruetas, na tentativa de chamar sua atenção. Basta passar o mouse em qualquer uma e ela começa a gritar: “Me escolha!” ou “Sim! Sim! Eu!” ou “Olá!” ou “Aqui!”. Se você clicar, aparece o significado e a ficha de adoção. E sugestões de como usá-la em diferentes contextos. Você elege sua pequena órfã e se compromete a levá-la para passear na vizinhança, enturmá-la no cotidiano. Nas conversas de bar, nos bilhetes e nos emails, nos pedidos de informação e até nas brigas e nas declarações de amor. A utopia contida na criação do site é que, se cada uma destas palavras zumbis voltarem literalmente à boca do povo, elas serão de novo letra viva.
Pena que é em inglês. Espero que o Houaiss ou o Aurélio ou qualquer outro dicionário ou universidade ou pessoa faça um site igualzinho com a zumbilândia do nosso português. Enquanto isso não acontece, podemos fazer a nossa parte para que o dicionário da língua portuguesa no Brasil não se torne um livro de óbitos.
Por que uma palavra morre? Como as pessoas, por várias razões.
Larápio, por exemplo. Para quem já esqueceu, é um sinônimo de ladrão. Foi usado bastante no passado, inclusive pela imprensa. Hoje, está relegado ao arcaísmo. Acabaram-se os larápios? Como sabemos, muito antes pelo contrário. Mas talvez tenha acabado um certo jeito de olhar para aquele que furta ou é desonesto de outras maneiras – e a palavra larápio não deu mais conta de todas as variações de meliantes (outra!) que surgiram. Ou ainda, foi considerada emproada demais para os novos tempos. Agonizou por esvaziamento de sentido. E outras palavras precisaram nascer para atender às novas necessidades.
Quando uma palavra morre é um mundo inteiro que morre com ela.
Quando uma palavra da língua portuguesa falada no Brasil desaparece, é um jeito de ser brasileiro que desaparece com ela. Um jeito de ser e de estar, de sentir a realidade, de olhar para os sentimentos e para o outro. E outras formas de ser e de estar surgem ou se impõem com palavras recém-nascidas. Como tudo que é vivo, a língua muda. E quanto mais se transforma, agrega sinônimos e gírias, mais rica é a língua e também a cultura que ela expressa.
Como amo as palavras, adoro vê-las nascer e sofro quando morrem. Tenho esta nostalgia de mundos. Mas sofro menos pelas que foram aposentadas porque perderam sentido – e mais pelas invisíveis. Arrisco dizer que há um número maior de palavras invisíveis do que de palavras arcaicas. No esforço de simplificar a linguagem para que o leitor possa compreender o texto, por exemplo, abandonamos uma população de palavras mais intrincadas. Como todas as escolhas, esta também não ficou impune. Simplificar, neste caso, pode ter significado reduzir. E, junto com o número de palavras, também nós nos apequenamos.
O vocabulário também nos confina. Quando é limitado, é nosso mundo que se torna emparedado. Tente se imaginar sem palavras. Ou melhor: tente ser sem palavras. É impossível. Pensamos, sentimos, amamos, desejamos, brigamos, sonhamos, existimos – com palavras. Sempre com palavras. Onde estamos? Não em São Paulo, Porto Alegre, Rio, Brasília, Macapá, Recife, Paris, Miami, Pindamonhangaba ou Anta Gorda. Estamos nas palavras. Habitamos as palavras. Somos palavras. Quando estamos e somos nas mesmas poucas palavras, somos e estamos menos. É como ter a chance de viajar pelas galáxias e preferir se fechar numa quitinete.
Em minhas andanças de repórter pelos muitos Brasis, entrei em contato com algumas construções de linguagem e invenções de palavras que ampliaram minha capacidade de perceber a realidade. Vinham de analfabetos que faziam literatura pela boca. Como os Raimundos da Terra do Meio, no Pará, ou os habitantes dos muitos sertões do Nordeste. Ou as “pegadoras de meninos” da floresta amazônica, no Amapá, que enquanto aparavam bebês pariam palavras. Como Nazira Narciso, ao me explicar que fez o parto da neta porque a parteira mais experiente havia se recusado por ser “barriga particular”. Ahn? “Não tem marido”, cochichou ela. Ou a caripuna Dorica, de 96 anos, me explicando o ofício: “Parteira não tem escolha, é chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo”.
Todos “cegos das letras”, como diziam, mas donos de um vocabulário tão rico como a vida. Recriavam-se nas palavras como os grandes inventores da língua escrita, autores do cânone como Guimarães Rosa e Manoel de Barros. Porque o vocabulário é pobre quando a vida é pobre. Não materialmente, mas de experiências.
Não dá para saber o que veio antes, se a vida ou a palavra. Vivemos com um vocabulário medíocre porque a vida é medíocre? Ou a vida é medíocre porque o vocabulário é medíocre? O que se perde quando usamos as mesmas palavras para um mundo tão diverso é que deixamos de enxergar o mundo em toda a sua largueza. Ele está lá, mas não conseguimos nomeá-lo. Então, ele está – mas não para nós. É uma maneira de ser cego, surdo e mudo com todos os sentidos funcionando.
A rigor, não existem sinônimos perfeitos, uma palavra que tenha exatamente o mesmo significado que outra. Há palavras que expressam quase o mesmo que uma outra. Mas o quase, na língua como na vida, faz toda a diferença. “Cão” e “cachorro”, por exemplo. Parece o mesmo. Mas não é. O cão contém um distanciamento, uma frieza, que o cachorro não tem. Ou o cachorro expressa uma proximidade, contida na própria sonoridade da palavra, mais comprida, musical e leve, que o cão jamais alcançará na sua dureza de uma sílaba só. Quando tomamos tudo pelo mesmo, perdemos as nuances. Abrimos mão da graça.
Acredito que a resistência da palavra se dá na arte. Especialmente na música e na literatura – seja ela oral ou escrita. E o empobrecimento da língua às vezes acontece nos meios de comunicação de massa. Em programas de TV, por exemplo, que uniformizam a linguagem por acreditar que, se não o fizessem, não seriam entendidos por todos. Só que não existe uma linguagem padrão. O que existe é um vocabulário que se impõe pela hegemonia política e econômica. No caso de muitos programas de TV que se pretendem nacionais – e aqui não falo de nenhuma rede específica, até porque quase todas seguem a mesma cartilha –, fala-se uma espécie de paulistanês e carioquês culto, como se esta fosse a suposta língua portuguesa do Brasil.
Mas como, se o Brasil é exatamente a convivência e o diálogo de suas diferenças, se a riqueza do país e da língua se dá na diversidade? Seria muito estúpido esperar que uma ribeirinha da Amazônia usasse as mesmas palavras que um rapper da periferia de São Paulo. Que rearranjassem as palavras da mesma maneira se vêm de uma história, de uma geografia e de um estar no mundo tão diverso. Isso não os torna menos brasileiros ou faz com que pertençam menos à mesma nação – pelo contrário. Esta diversidade expressa também na linguagem é talvez a mais forte identidade do Brasil. Mas há que resistir ao seu apagamento. Mesmo na internet, que muitos encaram como a eclosão das singularidades, duvido um pouco que de fato seja isso que esteja acontecendo. Sem negar sua fabulosa importância, o que vejo, por enquanto, é a reprodução de tribos que já existiam. Um diálogo entre iguais que se fortalecem, o que não é pouco. Mas não um diálogo de diferentes, que é o que poderia ser mais interessante. Ampliaram-se as vozes, mas parece que, para além de seus pertencimentos, seguem surdas umas às outras.
Ao deixar o Rio Grande do Sul e ir para São Paulo, eu mudei de várias maneiras. A única que lamento é a mudança que se deu pelas palavras. Para escrever no que se costuma chamar de imprensa nacional – mas que é a imprensa paulista e (cada vez menos) carioca –, abri mão de porções da minha identidade. Em vez de guri e guria, passei a falar e a escrever menino e menina. Em lugar de tu, você. E assim por diante.
Mais do que trocar palavras, o que perdi foi uma paleta de tons e de cores. Eu era capaz de expressar uma mesma realidade ou sentimento de várias maneiras, de nomear um animal ou um objeto com diferentes palavras. Era herdeira de uma língua portuguesa do interior do extremo sul do Brasil, cujo vocabulário se enriqueceu tanto pela apropriação promovida pelos imigrantes europeus quanto pelo legado mais antigo deixado junto com seu sangue por índios, espanhóis e portugueses na demarcação do território.
Eu falava um português vivo o suficiente para dar conta de uma experiência singular. É natural, por exemplo, que no Sul tenhamos uma variedade maior de expressões para o frio do que no Norte e Nordeste. Que, por sua vez, terá uma riqueza maior de termos forjados numa vivência mais solar. Em São Paulo, me pasteurizei. Mantive a experimentação da língua feita pelos personagens reais cujas histórias contava, mas minha própria voz ficou mais padronizada.
Agora empreendo um caminho de volta, que não é volta porque sou outra. Voltar é sempre uma impossibilidade. Ainda bem. Resgato o que há de mim nas palavras esquecidas, mas a partir desta experiência de uma década em São Paulo. Escolho ser uma soma dissonante – alargada por tudo o que vivi. Dentro de mim ecoam as vozes de todos que me marcaram.
Há duas semanas, escrevi um “cusco” numa crônica que faço em outro site e fiquei muito faceira. Ah, sim, quando eu cheguei a São Paulo eu era “faceira”, às vezes até “louca de faceira” e em alguns dias “mais faceira que terneiro novo” – e não feliz. A vantagem, no meu caso, é que basta botar o pé na casa da minha infância que tudo volta. Minha mãe mesmo, professora de português e literatura e a melhor doceira do país (na minha isenta opinião), tem um vocabulário próprio. Há coisas que só ela diz. Ninguém sabe de onde tira. Nem ela. Esta invenção é parte essencial do que ela é. E nos proporciona grandes momentos.
Sempre desejei que um dia alguém me perguntasse qual é a minha palavra preferida. Eu tenho uma. É uma palavra que me tomou desde a primeira vez que a li. Eu intuo o seu significado, mas resisto a buscá-la no dicionário. Às vezes tenho isso, gosto de conhecer por mim mesma antes que alguém me explique. Posso passar anos apalpando uma palavra ou um conceito dentro de mim até me decidir a partir em seu encalço no mundo de fora.
No caso dessa palavra, era importante que ela guardasse um pouco do seu mistério, indevassável até para mim que a amava. Queria que ela ficasse um pouco hermética, já que o amor é sempre misterioso. Quando a pronuncio dentro de mim, sou possuída por ela. Eu sinto a palavra, vivo ela – nela. E nunca a escrevi em texto. Não sei se por ciúmes ou por não achar nenhum contexto à altura. Não é um arcaísmo nem um regionalismo. É uma palavra da língua culta. Título de um livro de um de meus autores preferidos, um japonês chamado Junichiro Tanizaki.
Decidi dar a minha palavra para vocês. VORAGEM. Eu sou esta palavra. E agora, por amor, vou interromper esta coluna para finalmente procurar o que ela significa no Dicionário Houaiss. (Dois minutos depois...) Aí está: “1. Tudo aquilo que é capaz de tragar, sorver, destruir com violência; 2. Redemoinho de água que se forma no mar ou no rio, cujo giro arrasta as coisas para o fundo; sorvedouro, turbilhão; 3. Grande profundeza, abismo; 4. Aquilo que provoca grandes arroubos, que arrebata, mortifica ou consome”. É tudo isso e ainda o que ela é para mim. Em mim. E o que pode ser ressignificado a partir de cada um.
Inspirada pelo site savethewords.org, escrevi esta coluna para lançar a ideia de usar uma palavra nova a cada dia. Não uma nova para todo mundo, mas uma nova para cada um. A cada manhã uma palavra inédita, pescada do oceano fundo e escuro onde elas habitam como peixes escorregadios. Uma decisão existencial mais profunda do que pode parecer à primeira palavra.