Pavol Stracansky
Viena, 19/2/2010, (IPS) - As centenas de milhares de meninas e mulheres, que correm o risco de sofrer uma mutilação genital na Europa, levaram várias organizações de direitos humanos a lançar uma campanha junto a governantes da região contra o que qualificam de procedimento brutal e perigoso.
A mutilação genital feminina (MGF) é um termo genérico que compreende diferentes procedimentos como extirpação total ou parcial dos genitais externos da mulher ou outro tipo de intervenção em seus órgãos sexuais sem justificativa médica. Trata-se de uma prática condenada por vários governos, organizações médicas e de direitos humanos do mundo.
Os governos europeus aprovaram leis que proíbem o procedimento, mas os ativistas afirmam que, longe de ser erradicada, é mantido em várias comunidades. “Precisamos agir. É animador o compromisso político, mas chegou a hora de tomar medidas no âmbito local e europeu”, disse à IPS Christine Loudes, que lidera a campanha encabeçada pelo escritório europeu da Anistia Internacional. Cerca de 140 milhões de mulheres e meninas foram mutiladas no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Além disso, estima-se que aproximadamente outras oito mil podem sofrer esse procedimento a cada dia.
O tipo de procedimento praticado depende de fatores étnicos e da localização das comunidades. Bebês com menos de um ano podem chegar a ser mutiladas, embora o comum seja isso acontecer com adolescentes de 15 anos. A ablação acontece no que os ativistas classificam de condições “horrorosas”. Jovens aterrorizadas costumam ser dominadas por praticantes tradicionais que empregam objetos cortantes, como facas, lâminas de barbear ou pedaços de vidro, embora haja provas da intervenção de profissionais médicos.
A OMS define quatro tipos de MGF. Primeiro a clitoridectomia, que é a retirada parcial ou total do clitóris (órgão pequeno, sensível e erétil dos genitais femininos) e, em casos muito raros, apenas o prepúcio (dobra de pele que rodeia o clitóris). Segundo, a incisão, que é o corte parcial ou total do clitóris e dos lábios menores, com ou sem incisão dos grandes lábios. Em terceiro, a infibulação, que é o estreitamento da abertura vaginal para criar um selo por meio do corte e da recolocação dos lábios menores ou maiores, com ou sem redução do clitóris. Por fim, todos os demais procedimentos lesivos dos genitais externos com fins médicos, tais como perfuração, incisão, raspagem ou cauterização da zona genital.
As comunidades que a praticam alegam que é para proteger as meninas de desejos sexuais ilícitos ou porque os genitais femininos são anti-higiênicos. Em algumas sociedades, as mulheres que não foram mutiladas são consideradas impuras e proibidas de manipular alimentos e água. Porém, organizações médicas afirmam que a MGF não tem beneficio médico algum e acarreta vários riscos. No curto prazo, pode causar grande perda de sangue, dor crônica, infecções e até a morte devido à comoção, à hemorragia ou à septicemia. No longo prazo, as consequências são infecções, úlceras genitais, danos no sistema reprodutivo e problemas psicológicos como transtorno por estresse pós-traumático.
Um estudo feito pela OMS em seis países africanos mostra que as mulheres mutiladas têm significativamente mais riscos de sofrer complicações durante o parto. A prática também tem consequências negativas nos recém-nascidos. Entre um e dois bebês em cada cem partos morrem devido à MGF, segundo a OMS. Há muita documentação sobre o procedimento na África e no Oriente Médio, e em algumas comunidades da América do Sul e da Central, o que faz pensar que a MGF limita-se às regiões mais pobres e menos desenvolvidas do mundo, afirmam ativistas pelos direitos humanos. Contudo, a imigração propagou a prática na Europa.
A Anistia Internacional e a OMS informam que há mais de 500 mil mulheres mutiladas neste continente e cerca de 180 mil por ano correm o risco da mutilação. A ex-top model somaliana Waris Darie, mutilada quando criança, tem sua própria fundação contra a MGF em Viena. “A prática floresce de forma ilegal em várias comunidades da Europa, apesar de estar proibida”, disse Darie. “A ablação é tabu em muitos países. Na Europa é praticada por comunidades de imigrantes originários da África ou Ásia. A estimativa de 500 mil vítimas existentes na Europa se baseia em casos africanos, mas o procedimento também é praticado em muitas nações asiáticas, no Iraque e Irã (comum entre os curdos), de onde procedem muitos dos refugiados que chegam a este continente”, disse Darie.
“Sabemos que muitos pais aproveitam as férias escolares e levam suas filhas para serem operadas em seus países de origem”, acrescentou Darie. Os procedimentos feitos na Europa “são praticados de forma ilegal e é impossível ter números precisos. Há casos de médicos envolvidos, mas normalmente são praticantes africanos que costumam vir especialmente para realizar a ablação”, afirmou. A dimensão real do problema deste continente pode ser muito maior do que sugerem as estatísticas, afirma a OMS.
“Foram feitos estudos em pequena escala na Europa, e muito do que sabemos a respeito são suposições e estimativas”, reconheceu Elise Johansen, porta-voz da OMS sobre MGF. “É muito difícil conhecer a verdadeira dimensão do problema da mutilação, porque poucas pessoas admitem tê-la realizado por ser ilegal. A situação pode ser muito pior do que pensamos”, acrescentou. Há leis proibindo de forma específica a MGF em alguns países europeus, como Áustria, Bélgica, Chipre, Dinamarca, Espanha, Grã-Bretanha, Itália, Noruega e Suécia. Também é ilegal na França, onde mais de 30 casos de mutilação foram punidos com penas de prisão.
Mas as leis não são totalmente efetivas, segundo as organizações humanitárias. As dificuldades para detectar o problema e a falta de denúncias, bem como a falta de provas suficientes para iniciar um julgamento, impedem que as meninas em perigo sejam protegidas. Além disso, essas organizações denunciam a falta de clareza legal em matéria de asilo para as mulheres que fogem de seus países para evitar a mutilação. “A MGF é motivo de asilo, segundo as diretrizes da União Europeia (UE), mas nem todos os países do bloco a incluíram em suas legislações, e algumas mulheres não recebem a proteção que deveriam ter”, disse à IPS Prerna Humple, porta-voz da campanha da Anistia, lançada com outras 12 organizações, para cobrar os governantes a adotarem mais medidas para deter essa prática.
A campanha “END FNG” (Acabe com a MGF) inclui atividades em Lisboa, Viena, Nicosia, Bruxelas e Londres neste mês e no próximo. A iniciativa pretende pressionar os funcionários da UE a tomarem medidas para proteger as mulheres e as meninas, incluída assistência médica para as mutiladas, melhores mecanismos de proteção contra a violência e pautas de asilo claras para as pessoas que podem ser vítimas da MGF em seus países. Também engloba a melhoria da coleta de dados sobre a prevalência do problema na Europa e a inclusão do tema na agenda para o diálogo da União Europeia com as nações onde a prática prevalece.
As organizações humanitárias também querem que os governos lancem urgentemente campanhas de informação, por ser a melhor forma para contribuir com o fim da MGF. “É necessário tratar o assunto de forma sistemática e reiterada nas comunidades que a praticam”, insistiu Johansen, da OMS. “Está provado que é a forma mais efetiva de reduzir a MGF. É preciso educar e informar as pessoas que a realizam. Já se faz na África, mas falta algo semelhante na Europa. É responsabilidade do governo implementar uma campanha desse tipo”, ressaltou. IPS/Envolverde
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