Constance e sua mãe, Carmem: a violência foi tanta que a filha teve de expurgá-la num livro
Em 1966, a inglesa Constance Briscoe, então com 9 anos, chegou da escola exultante carregando um envelope marrom, que se apressou a entregar para a mãe, Carmem. Dentro dele, fotos que a menina havia tirado na escola. Ao olhar as imagens, Carmem repetia: “Jesus amado, eu que pus isso no mundo? Deus, como ela pode ser tão feia? Feia, feia... Você quer que eu compre essas fotos?”, perguntava à filha. Foi apenas uma das milhares de humilhações que a criança sofreu na infância. Ofensas como “vagabunda safada” foram constantes. Ela também era espancada por fazer xixi na cama, uma enurese que se manifestava justamente por causa do medo da violência materna. Socos na cabeça e no peito eram desferidos contra Constance e seus mamilos eram beliscados com força, sempre por motivos banais (ou sem motivo). A ponto de, aos 11 anos, ela tentar o suicídio bebendo água sanitária. Esse retrato de terror está no livro “Feia – A História Real de uma Infância sem Amor” (Ed. Bertrand), escrito por Constance, hoje uma renomada juíza. A obra, que já vendeu meio milhão de cópias em dezenas de países e tem tradução brasileira, é um exemplo de como aqueles que deveriam amar acima de tudo podem ser os algozes dos próprios filhos.
Paulo e seu pai, Francisco: expulsão de casa e reconciliação
Os pais tóxicos, classificação cada vez mais usada na psicologia, agridem física e psicologicamente, causando sequelas que se arrastam por toda a vida. Quando as agressões vêm de pessoas como um cônjuge, ou até um chefe, é possível pedir divórcio ou demissão. Mas se a crueldade está dentro de casa, o que fazer? Constance carregou o trauma durante anos. “Minha maior dor era nunca ter vivido num lar decente”, disse a autora à ISTOÉ. Ao ingressar na Universidade de Newcastle, na Inglaterra, para cursar direito, ela jurou que nunca mais falaria com Carmem. Cumpriu a promessa. Construiu uma carreira vencedora, casou, teve dois filhos. Se submeteu a cirurgias plásticas no nariz, na boca e nos olhos, numa tentativa de modificar o que a mãe dizia ser horroroso. Superou as adversidades relatando suas tristes memórias. Carmem a processou por causa do livro. Perdeu. Nenhum pai ou mãe está livre de falhar, perder a paciência ou a compostura. Mas agir com perversidade ultrapassa os limites aceitáveis – de qualquer relacionamento. “E a humilhação vinda daqueles a quem se ama é muito mais dolorosa”, diz a psicóloga Márcia Marques, da Clínica Medicina do Comportamento, no Rio de Janeiro.
“Aprendi que, para conviver com minha mãe, preciso manter uma distância saudável”
“É como se houvesse uma confirmação para a pessoa de que ela não é boa o suficiente para receber afeto.” A postura dos pais tóxicos deixa graves sequelas, normalmente levadas para a vida adulta. As consequências são agressividade, dificuldade de aprendizado, rebeldia, timidez e um enorme sentimento de culpa. “Sempre que alguma coisa sai do controle, seja no trabalho, seja na minha vida pessoal, acho que o erro é meu”, diz a analista de sistemas M.N. (ela prefere não se identificar), 26 anos. Junto com os três irmãos cresceu ouvindo a mãe dizer que eram incompetentes, burros e que ela deveria ter abortado todos. Até começar a frequentar a casa dos amiguinhos da escola, M. acreditava que esse comportamento era normal. “Ela nunca me fez um cafuné”, recorda. O resultado da violência emocional para a jovem foi a síndrome do pânico, distúrbio com o qual conviveu por dois anos. Mesmo quando os pais alternam atitudes carinhosas e agressivas, o reflexo no desenvolvimento dos filhos é negativo. “A criança nunca sabe o que esperar e nem como agir”, diz o psicólogo Julio Peres, autor do livro “Trauma e Superação – O que a Psicologia, a Neurociência e a Espiritualidade Ensinam” (Ed. Roca). “Ela cresce num estado de alerta, o que causa uma ansiedade que se torna crônica.”
“Uma vez coloquei um biquíni e minha mãe disse para eu tirar porque estava enorme de gorda”
Quem não está preparado para se doar no papel de mãe ou pai, abrindo mão de uma série de vontades, acaba considerando o nascimento da criança um estorvo. “É um erro acreditar que o fato de uma mulher dar à luz faz dela naturalmente uma boa mãe”, destaca a juíza Constance. Aprender a lidar com esse sentimento é fundamental e as terapias em família são indicadas quando surgem problemas. Já para quem chegou à vida adulta traumatizado pela relação tóxica, a psicoterapia é um caminho. Se transtornos mentais mais graves forem manifestados, são necessários o diagnóstico e o tratamento com remédios, determinados por um psiquiatra. Para muitas das vítimas, o tratamento inclui passar a ter uma relação superficial com os pais.
Filho mais velho, Paulo (que é gay) cresceu pressionado pelas expectativas do pai, homem de uma geração em que ser “macho” e provedor era lei. Francisco não dizia nada, mas se irritava quando o filho parecia mais sensível que os outros meninos. “Cheguei a apanhar por ser chorão”, lembra. Ele sempre ouvia do pai “prefiro um filho morto a um filho gay”. Aos 18 anos, não suportou mais. Deixou clara sua opção durante uma discussão e foi colocado para fora de casa. Em 2004, aconteceu a última briga grave entre eles. “Por um ano, o risquei da minha vida totalmente”, lembra Paulo. Após o longo silêncio, o pai procurou o filho e pediu desculpas. “Sei que não foi fácil para ele e imagino que ainda não seja. Mas valorizo seu esforço e percebo o quanto ele me ama”, diz o rapaz, orgulhoso do pai, que mudou de atitude sozinho. Um raro exemplo de final feliz nessas relações traumáticas. Mas que mostra que o amor pode curar até as piores feridas.
Suzane G. Frutuoso