A Violência Sexual tem conseguido espaço crescente no jornalismo brasileiro. Isto é muito positivo e com certeza, fruto do envolvimento cada vez maior de profissionais de todas as áreas de atuação que estão convencidos que o abuso e a exploração sexual são violações de alto grau de complexidade e difícil superação.
Enquanto violação dos Direitos Humanos, violação da sexualidade e crime, a violência sexual ainda se encontra no campo da invisibilidade social. A sociedade não lida com este problema com a devida importância, subestimando a quantidade de casos, suas causas e conseqüências. Segundo a professora Maria Lúcia Leal , a invisibilidade é parte fundamental para alimentação do mercado do sexo com crianças e adolescentes.
Na perspectiva do debate público, torna-se relevante refletir a cobertura do jornalismo nos casos de violência sexual, em especial a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes (ESCCA): Por que as notícias de violência sexual são, na maioria das vezes, anunciadas com o termo “pedofilia” ?
Os exemplos são muitos: “mais um crime de pedofilia”, “Procurador geral envolvido em caso de pedofilia”, “foi iniciada a CPI da pedofilia”, etc.
Sabemos que o debate conceitual da violência sexual não está definido, contudo, quando nos referimos aos crimes sexuais como crimes de pedofilia, estamos na verdade, dando um diagnóstico para o responsável pela agressão e fatalmente deixando de lado várias dimensões estruturais do problema, como as redes comerciais e os altos lucros que obtêm agenciadores, transportadores, donos de estabelecimentos, o envolvimento de políticos e autoridades como facilitadores e consumidores, etc.
Ao priorizarmos denominar os crimes sexuais como pedofilia, há uma mensagem implícita na notícia da incapacidade do sujeito (doente pedófilo) de dar limite a seus impulsos, de controlar sua compulsão. Entramos no debate, nem sempre explícito, da governança do indivíduo sobre si mesmo. Favorecemos assim a condição de transtorno mental e não a condição de crime, de violação consciente, intencional, e sobretudo, evitável.
Não estamos aqui desreconhecendo que em alguns casos o crime sexual é motivado pela doença, estes denominamos pedofilia e outros termos utilizados para denominar os comportamento que estão na dimensão do latente crônico, da patologia.
No caso da violência sexual, tanto o crime como a doença, necessitam de tratamento, limites sócio-familiar e responsabilização jurídica.
A pesquisadora Tatiana Landini alerta que é possível que pedófilos não cometam crimes sexuais, mantendo suas preferências no nível da fantasia, sendo a recíproca verdadeira, quando não pedófilos praticam violações sexuais contra crianças e adolescentes.
Neste momento tentamos refletir que concepção, que compreensão do problema da violência sexual estamos construindo ao reproduzir constantemente o termo pedofilia.
É inevitável lembrar das tradicionais concepções de gênero que apontam o “instinto masculino” como sendo impossível ou de difícil controle.
Quantos estupros já foram minimizados enquanto crime por terem sido considerados atos do impulso sexual masculino? Ainda hoje assistimos mulheres e crianças sendo violadas sexualmente em situações de guerra, tráfico, regiões de fronteira, aglomerados masculinos (garimpo, pólo de gesso, reuniões de políticos e empresários, etc.). Tais situações não apontam para a pedofilia e sim para violação dos direitos de crianças e adolescentes para satisfazer desejos e interesse de adultos que encontram contextos sócio-familiares e institucionais de permissividade e impunidade. É como se tais comportamentos fossem compreendidos como inevitáveis. Algo que não se pode controlar. E É esta concepção que se expressa quando chamamos abuso e exploração sexual de pedofilia.
Recentemente, nos anos de 1990, assistimos a homossexualidade deixar de ser chamada de homossexualismo. Tal debate foi pautado no sentido de retirar o interesse afetivo-sexual por pessoas do mesmo sexo da condição de doença e colocá-lo no debate público da normalidade, do que é natural, espontâneo e que deve ser discutido no campo da autonomia e da cidadania.
O CID reconhece pelo código 65, as doenças da sexualidade, significa que assim como tudo, também os comportamentos da sexualidade quando funcionam de maneira compulsiva e crônica ou levam fortes desconfortos ao indivíduo podem ser considerados como patologias. Contudo, no que se refere à homossexualidade e lesbiandade o debate público e institucional não pode negar que estamos falando de saúde, de orientação, de liberdade, de cidadania. Quando fazemos uma analogia com os crimes sexuais, percebemos uma relação oposta ao processo que aconteceu com a homossexualidade, já que a sociedade continua insistindo em compreender os crimes sexuais como caso de doença.
É importante questionar se o termo pedofilia é o mais apropriado para as manchetes de crimes sexuais. As notícias devem contribuir para a reflexão adequada do problema e para disseminação da idéia de que abuso e exploração sexual são crimes praticados por pessoas que não se encaixam em nenhum perfil pré-estabelecido. Que não há “os” doentes a serem tratados e sim crimes sexuais a serem prevenidos e ou punidos, com ou sem tratamento clínico, de acordo com as características específicas de cada caso.
E principalmente, que há crianças e adolescentes que tem o direito de não serem transformadas em objetos e ou mercadorias para satisfazerem desejos e fantasias de sociedades adultocêntricas e que concretamente rejeitam seus Direitos Sexuais e Reprodutivos.
Por Maria Luiza Duarte Araújo - coordenadora executiva da ONG Coletivo Mulher Vida e Analista de Serviço Social do CAOP Infância e Juventude do Ministério Público de Pernambuco
Fonte:
Portal Ação em Rede