sábado, 2 de novembro de 2013

O que é a porfiria?

Não há uma porfiria, existem porfirias. São um conjunto de sete doenças. Todas elas referentes a deficiências de enzimas que são a cadeia do metabolismo de uma proteína muito importante que se chama HEME. Esta proteína é o núcleo constituinte da hemoglobina, que é a proteína principal que existe nos glóbulos vermelhos e cuja função – essencial – é a de transporte do oxigénio para os tecidos.

Por outro lado, esta proteína também é muito importante em outras duas linhas metabólicas que são os sistemas citocrómos, que têm duas funções muito significativas. Uma, são os citocrómos respiratórios, que existem nas mitocôndrias, que têm a ver com oxigenação e a produção de energia a nível celular. A outra linha muito importante é do citocrómo P450, que tem a ver com o metabolismo de centenas de medicamentos. Isto é muito importante, porque há uma relação muito clara entre o consumo de diversos medicamentos e a eclosão de crises.

Portanto, são sete as variantes das porfirias e a grande maioria tem associação a mutações genéticas. No entanto, uma delas e uma das
mais frequentes, que é a porfiria cutânea tarda, em 80% dos casos não é de origem genética. Fazem parte das doenças raras e, por exemplo, em França, a porfiria aguda intermitente tem uma incidência de 0,6 casos por cada mil habitantes. São doenças conhecidas há
muitos anos mas para as quais só apareceram tratamentos específicos desde meados dos anos 80.

O medicamento mais específico é a hematina, que existe em Portugal desde 1999. As porfirias dividem-se em dois grupos – do ponto de vista fisiopatológico – as hepáticas ou porfirias eritrocitárias, em que a doença ocorre particularmente no fígado ou nos glóbulos vermelhos. As hepáticas são as mais comuns e têm expressão mais efectiva nos adultos. As porfirias nos glóbulos vermelhos são muito mais raras e têm uma expressão clínica logo desde a infância, podendo, até, ter manifestações já na vida fetal.

Do ponto de vista clínico, dividem-se em porfirias cutâneas e neuroviscerais, consoante o quadro clínico apresente predominantemente
manifestações na pele ou manifestações neurológicas. E há mistura entre expressão cutânea e expressão interna.

Não é uma doença que afecte mais particularmente adultos que crianças?

É uma doença que afecta qualquer grupo etário, mas é mais frequente na idade adulta, o que tem a ver com a maturidade hormonal. Um dos factores desencadeantes dos ataques de porfiria são as hormonas esteróides, as hormonas sexuais. As manifestações das porfirias, principalmente as hepáticas, são muito mais frequentes após a puberdade.

Quais são as principais consequências destas doenças?

As manifestações sintomáticas, nas porfirias dos adultos, envolvem os órgãos internos, particularmente o fígado, e manifestações
neurológicas. Estas doenças raramente têm uma expressão crónica, permanente, persistente, funcionam sim de uma forma intermitente,
por ataques agudos. Dividem-se também em porfirias agudas e cutâneas, e estas últimas têm uma manifestação mais perene.

E quais são os sintomas mais frequentes?

Falando das porfirias hepáticas, que são as mais frequentes no adulto (e eu sou médico de adultos!), as manifestações são crises em que se desencadeiam por jejum prolongado, défices nutricionais – tudo o que seja défice proteico, sobretudo hidratos de carbono, pode
desencadear uma crise; exposição a medicamentos e há várias dezenas que são porfirinogénicos; doenças infecciosas agudas; ou qualquer forma de stress orgânico.

As manifestações são cutâneas, uma erupção bulhosa e normalmente é determinada por fotosensibilidade, o que tem a ver com o facto das porfirinas se acumularem na pele e serem sensíveis à radiação ultra-violeta. Esta erupção pode generalizar-se, quando o portador de porfiria se expõe ao sol, com a formação de vesículas, que podem fazer lesões com ulceração, que deixa uma cicatriz viciante e deformante e com uma particularidade curiosa que é a de fazer o crescimento de pelos nessas regiões.

Aliás, estas doenças foram ligadas com as lendas da licantropia. Imagine-se a Moldávia no século VII e havia umas pessoas na aldeia que,
cada vez que apanhavam sol, ficavam cheios de bolhas e nessas regiões a seguir cresciam-lhes muitos pelos. Ficavam com transtornos psiquiátricos – as manifestações neurológicas são alterações comportamentais, cefaleias intensas, desequilíbrios, letargias, convulsões; muitos doentes têm também injecção conjuntival, ficam com os olhos muito vermelhos, e aparece uma tonalidade amarelada na dentição.

Se isto é verdade científica – e não é, seguramente, é literatura romântica! – o que é facto é que se ligou isto à lenda do lobisomem. As manifestações mais frequentes de todas são as dores abdominais, intensas que chegam a levar estes doentes ao hospital. Por outro lado, existe o risco de se ir estabelecendo, de crise para crise, uma polineuropatia, que vai alterando os nervos periféricos provocando dores e extrema sensibilidade das mãos e pés, que se vai agravando progressivamente, podendo provocar alterações motoras que levem a
paralisia de segmentos do corpo, inclusive dos músculos respiratórios.

Uma das coisas mais peculiares que existe na porfiria – e é um dos indicadores de diagnóstico – é que as porfirinas acumulam-se excessivamente, quer no fígado quer nos eritrócitos, e são descartadas na urina. A urina do doente porfírico num recipiente de vidro, e após meia-hora de exposição solar, fica cor de vinho tinto.

Que outros meios de diagnóstico existem?

Existem dois tipos de métodos de diagnóstico: a nível bioquímico, ou seja, a demonstração do excesso de acumulação destas proteínas; e, a nível genético, a comprovação de mutações das quais estão descritas várias várias centenas. O estudo genético nas porfirias não é muito determinante do diagnóstico do doente portador com expressão clínica. A confirmação genética é extremamente importante para o despiste familiar e para o despiste de portadores que podem ser assintomáticos à data.

Que tratamentos é que existem?

O tratamento é essencialmente preventivo! Prevenir os factores precipitantes das crises. Não há um medicamento que modifique a doença de uma forma óbvia, tomado continuamente. A crise é uma urgência médica e os doentes devem habituar-se a identificá-la. Por exemplo, assim que tem uma crise e começam a notar a urina escura, as dores a aparecerem, as cefaleias intensas, devem telefonar
imediatamente aos seus médicos.

O tratamento, na altura, é fazer o aporte calórico e garantir uma boa nutrição, sobretudo de hidratos de carbono, deve fazer uma dieta
muito rica de açúcares e faz-se, inclusivamente, soro com glucose para garantir que os níveis de glicemia são suficientes. Por outro lado, utiliza-se medicação sintomática e temos de ter sempre muito cuidado para não dar medicamentos que possam agravar a crise. Damos analgésicos – e é bom que sejam opiáceos – medicamentos para as náuseas e vómitos; para baixar a pressão arterial; e um medicamento específico que é a hematina, que consiste em dar a proteína HEME por injecção intravenosa, durante três a quatro dias, até estabilizar os níveis circulantes.

A hematina só é utilizada nas crises?

Só nas crises. Nos doentes mais graves, que têm uma frequência muito grande das crises, têm vindo a fazer-se experimentações de modelos de terapêutica continuada, aí sim, com algum carácter preventivo, em que os doentes fazem perfusões de uma, duas, três vezes por semana, no sentido de evitar a crise. No estrangeiro já existe quem tenha feito. Que eu saiba não há em Portugal esta experiência. No entanto, eu tenho uma doente a quem, se calhar, vou propor começar a fazer. É uma paciente com 54 anos, com crises extremamente frequentes, o que talvez justifique a experimentação com a terapêutica contínua.

O acesso aos tratamentos em Portugal é fácil?

Poucos hospitais em Portugal têm hematina disponível para fazer o tratamento das porfirias. E não há em Portugal nenhum centro
de referência para tratamento de porfirias. Existe, na Europa, o “European Porphyria Initiative”, que é uma rede europeia de referenciação para os doentes portadores de porfiria. Começa na Península Ibérica, sim, mas na fronteira de Portugal com Espanha, em que há um centro em Madrid e outro em Barcelona, espalha-se pela Europa Ocidental e à Europa de Leste.

Não há investigação em Portugal sobre esta doença?


Houve, muito boa! A tese de doutoramento do professor Palma Carlos foi precisamente as porfirias. Ele montou no Hospital de Santa
Maria um centro de estudos de porfirias, com laboratório, com clínicos disponíveis para criarem um grupo de doentes. Eu fiz um pouco parte disso, o professor Palma Carlos foi meu chefe de serviço. Quando ele se reformou, o serviço desmembrou-se. Como referi, há pouco, os hospitais que têm hematina, têm-na porque têm um pequeno núcleo de doentes.

O facto de nem todos terem não tem a ver com o controle de custos das administrações hospitalares?

A hematina não é dos fármacos mais caros. Terá que ver com os hospitais terem doentes referenciados ou não. Mas os doentes não estão referenciados em Portugal.

Não há qualquer referenciação em Portugal? Não se sabe quantos doentes existem?

Não. E, como sempre nestas doenças raras, estarão espalhados pela Medicina Interna, pela Hematologia, Gastrenterologia. Não há uma rede de comunicação estabelecida. Eu tenho quatro doentes, o que implica quatro famílias e não têm a codificação genética feita, porque até há uns dois ou três meses atrás não se fazia em Portugal. Neste momento, temos um colega geneticista laboratorial a trabalhar no Instituto de Medicina Molecular/ GenoMed, que trabalha connosco no Hospital de Santa Maria, e está a fazer um estudo das três porfirias mais frequentes.

Qual é o melhor centro de referência desta doença?


A nível europeu é o francês – “Centre Français des Porphyries”, perto de Paris. Uma das autoridades deste centro, o professor Jean Charles Deybach, vai ser convidado por mim a vir a Portugal brevemente para uma palestra.

Actualmente, faz-se pesquisa sobre novos medicamentos?

Há pesquisa a ser feita na Europa e Estados Unidos sobre medicamentos novos, sobre terapêutica enzimática de substituição.

Quais são os dramas com que se debate uma família de um portador desta doença?

O primeiro drama é chegar ao diagnóstico, não falando das porfirias eritrocitárias, que têm expressão pediátrica e são detectadas pelos pediatras. As porfirias não têm grandes manifestações antes da puberdade. E depois a codificação biológica, ou seja, a demonstração
enzimática da doença… se se fizer o teste durante uma crise os valores podem ser superiores entre 10 a 100 vezes. Se o fizer entre crises os valores estão pouco elevados. E, aliás, em algumas porfirias, outras doenças, a toma de alguns medicamentos pode elevar ligeiramente estas enzimas e induzir em erro. Portanto, o diagnóstico faz-se de uma forma muito directa em plena crise.

E a família, com que consequências se debate?

A primeira consequência é a frustração de não saber o diagnóstico. Por outro lado, a família não tem o conhecimento suficiente para uma acção preventiva, porque não sabe qual é a doença.

A família tem um papel importante na prevenção?

Claro que sim! Por exemplo, uma mãe não deixar uma adolescente fazer uma dieta para ser parecida com a Brooke Shields e ter défices nutricionais, de hidratos de carbono, e poder espoletar uma crise. Ou a família estar muito alerta e dizer sempre ao seu filho adolescente
que não toma medicamento nenhum sem perguntar.

Luís Brito Avô – Coordenador do Núcleo de Estudos de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna


Fotosantesedepois.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Verbratec© Desktop.