sábado, 11 de outubro de 2014

Semiárido demanda atenção especial para erradicação do trabalho infantil


Fui menino e vivi sempre a brincar

Era linda e suave a brincadeira,

Arrastando um carrinho de madeira

No pequeno terreiro do meu lar.


Quando adulto vivi a trabalhar

Aguardando uma fase prazenteira

Mas a vida cruel e passageira

Tudo quanto promete vem negar.

(Patativa do Assaré)


A saudade da infância declarada pelo poeta cearense Patativa do Assaré pode ser, para milhares de crianças, a saudade de um tempo que não pôde existir plenamente. São crianças e adolescentes que desde cedo vivem a trabalhar e que, ao deixar de lado o carrinho de madeira, deixam de lado também a sua infância.

No Brasil, são cerca de 3,5 milhões de crianças de 5 a 17 anos que trabalham segundo o levantamento mais recente, de 2012, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na segunda região mais populosa do país, Nordeste, 9% das crianças trabalham. Em números absolutos, é a primeira no ranking do trabalho infantil do país, com 1,1 milhão de trabalhadores precoces.

No entanto, dentro desse panorama existe um quadro que merece especial atenção: o do Semiárido. Também conhecido como Sertão, a região é caracterizada pela baixa incidência de chuvas, que tem como consequência prolongados períodos de seca. Segundo o Governo Federal, a região é composta por 1.133 municípios dos estados do Nordeste, com exceção do Maranhão, e do norte de Minas Gerais. Já para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Semiárido abrange também o Maranhão e o norte do Espírito Santo.

Ainda que não haja um levantamento específico sobre os dados do trabalho infantil no Semiárido, essa região reúne indicadores sociais preocupantes. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) revela que os municípios do Semiárido estão abaixo da média nacional. Esse índice é formado pelos indicadores de longevidade, educação e renda, variando de 0 a 1, sendo que quanto mais próximo ao 1 melhor é o desenvolvimento humano. No levantamento de 2010, a média brasileira foi de 0,727 e todas as cidades da região ficaram abaixo desse valor. Segundo o Instituto Nacional do Semiárido, 60% dos municípios possuem o IDHM baixo ou muito baixo, atingindo 9,2 milhões de pessoas.

“As oportunidades de emprego e renda para as famílias são muito menores no Semiárido. A economia local tem dificuldade de se desenvolver, não tem indústria e o comércio é mantido pelos beneficiários do programa Bolsa Família e funcionários públicos. É uma economia de subsistência e tem menos empregos para as famílias”, explica o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho (MPT) no Ceará, Antonio de Oliveira Lima.


Trabalho precoce


As dificuldades enfrentadas por quem vive no Semiárido, como a falta de água e a pouca atividade econômica dos municípios, se refletem na infância. “A política de combate à seca — que concentra água, terra e conhecimento — não dá condições para que as famílias possam doar a seus filhos efetivas possibilidades de desenvolvimento saudável”, afirma o coordenador executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Naidison Baptista. “Uma das consequências dessa política é que as famílias vão empregar a mão de obra de seus filhos em busca de mais renda para a sobrevivência”, completa.

Para Lima, a diferença entre o trabalho infantil no Semiárido e o que acontece em outras regiões está muito mais nos tipos de atividades que são desenvolvidas. "Há uma predominância do trabalho infantil na agricultura familiar porque são regiões com pouco desenvolvimento das economias locais”, diz.

A coordenadora do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Maria Cláudia Falcão, conta que no território em que a OIT atuou na Bahia as duas atividades principais que havia envolvendo crianças eram a agricultura familiar para subsistência e, nas cidades, o trabalho nas feiras.

Desafios

Prevenir e erradicar o trabalho infantil que ocorre no âmbito da agricultura familiar se apresenta como um desafio e demanda ações em diferentes frentes. “É o grande debate que temos hoje com vários atores do setor agrícola. Encontrar uma solução para o trabalho infantil que ocorre na família e na subsistência é o grande desafio no Brasil. Não existe hoje uma resposta”, pondera Maria Cláudia.

Uma das frentes de ação é junto à família, com a garantia de trabalho e renda decentes para os pais. “São necessárias políticas de geração de renda, emprego e profissionalização, para encontrar os meios de sobrevivência sem recorrer à criança”, pontua o procurador-chefe Antonio de Oliveira Lima. Na Bahia, um projeto de erradicação do trabalho infantil colocou isso em prática. “Foi um processo de criação de cooperativas e hoje colhemos os frutos. Muitos comercializam sua produção para o município, para a merenda escolar”, relata a coordenadora pedagógica do Movimento de Organização Comunitária (MOC), Maria Vandalva.

As especificidades do Sertão também demandam programas com um viés próprio. Naidison Baptista, da ASA, explica que, na última década, a ideia de convivência com o Semiárido, em contraposição à política de combate à seca, tem avançado e garantido melhores condições para as famílias. Essa nova lógica implica o acesso ao conhecimento de técnicas específicas de plantio, captação de água, criação de animais e armazenamento de alimentos para o Sertão. “Precisamos de políticas adequadas para o Semiárido, isso vai erradicar o trabalho infantil.”

Por outro lado, os governos devem disponibilizar creches e escolas em tempo integral e de qualidade, para que as crianças se afastem do ambiente de trabalho. “Temos que ter escolas e creches onde os pais possam deixar as crianças. Elas têm que andar quilômetros e não há creches para os pequenos”, explica Maria Cláudia.

Além disso, o sistema de ensino também tem que dialogar com a realidade das crianças. Para a coordenadora da OIT, as escolas rurais precisam ter um currículo mais adequado, não adianta impor atividades que não têm nada a ver com a realidade das crianças. Baptista defende que as escolas têm um papel fundamental na mudança de paradigma de convivência com o Sertão. “Temos uma escola que afasta a criança de seu meio ambiente. Ela não debate questões do território onde a criança vive e não a ensina a tornar esse meio melhor.”

Somado às políticas de geração de renda e de ensino, são necessárias ações de conscientização sobre os malefícios do trabalho infantil para que ele não seja mais tolerado, muito menos incentivado. “Estamos trabalhando uma mudança de mentalidade. Muitos colocam seus filhos para trabalhar cedo porque eles trabalharam quando criança, assim como seus pais, seus avós e não veem o prejuízo”, explica Lima. Já Maria Vandalva, do MOC, relata que rodas de conversa com as famílias foram bons meios para mudar a mentalidade. “No entanto, não é fácil e é um processo que demanda muito tempo porque atingimos poucas pessoas. É bom saber que tudo que é cultural pode ser mudado, mas são as mudanças mais difíceis de serem feitas”, pondera.

Na mobilização pela erradicação do trabalho infantil no Semiárido, há uma grande aliado que mudar a realidade de milhares de crianças. “O grande potencial do Semiárido é a insistência e existência do seu povo. Quando as pessoas reconhecem sua realidade e percebem que ela pode ser modificada, elas se organizam para mudar”, defende Maria Vandalva. A opinião é compartilhada por Baptista, da ASA. “O Semiárido sempre foi caracterizado como um local de carência de tudo, mas é um lugar de pujança impressionante, as pessoas são criativas, vivem e resistem. É um povo extraordinariamente vivo e inteligente, mas é profundamente massacrado pelas políticas”.

promenino

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Verbratec© Desktop.