Especialistas franceses conseguiram reprimir o distúrbio antes do nascimento em filhotes de ratos aplicando uma injeção de diurético nas mães
Paloma Oliveto
O mal é tão desconhecido que sequer existe concordância sobre o número de pessoas afetadas mundialmente. Não se sabe das causas e nem há tratamento padrão. Nos últimos anos, contudo, as pesquisas sobre autismo avançaram, revelando, por exemplo, diversos genes que têm implicação com esse distúrbio do desenvolvimento, caracterizado principalmente pelo isolamento social. Agora, uma série de importantes descobertas foi publicada na revista Science por um grupo de pesquisadores franceses. Elas foram consideradas um passo importante em direção à compreensão do autismo e, por fim, à cura do transtorno.
Além de observar, pela primeira vez, a atividade de neurônios de embriões de ratos programados geneticamente para desenvolver o problema, os cientistas foram capazes de reverter os sintomas antes do nascimento dos animais, aplicando uma injeção nas mães. Previamente, a mesma equipe havia conseguido diminuir a severidade do autismo e da síndrome de Asperger (um tipo de autismo) em crianças usando a mesma droga. A descoberta ainda não vai beneficiar diretamente os humanos, pois muitos testes precisam ser feitos antes disso, mas os resultados animaram os cientistas, que acreditam ter encontrado o caminho certo em busca de terapias eficazes contra o transtorno autista.
Das poucas coisas que se sabe sobre esse distúrbio é que ele se desenvolve muito cedo, ainda na fase embrionária. Por motivos desconhecidos, os neurônios passam a se comportar de maneira diferente, provocando danos irreversíveis ao cérebro. Por volta dos três anos, a criança começa a exibir os sinais do autismo — é quando a maioria dos pais vai aos consultórios médicos atrás de uma resposta. Na pesquisa, os cientistas constataram a necessidade de iniciar o tratamento o mais cedo possível para evitar que esses sintomas se desenvolvam — os mais conhecidos são déficit de atenção, baixa reciprocidade social e comportamentos repetitivos. Uma dificuldade para isso é que, mesmo se comprovada em humanos a eficácia da substância usada no estudo, não existem testes de detecção do autismo durante a gestação.
Tratamento com bumetanida também é testado em crianças
Em uma coletiva de imprensa, Yehezkel Ben-Ari, pesquisador da Universidade de Aix-Marseille, do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França, e principal autor do estudo, explicou que, em 2012, uma investigação clínica mostrou que a substância bumetanida reduziu a gravidade de sintomas em 60 pacientes com idade entre três e 11 anos, com poucos efeitos colaterais.
Durante três meses, as crianças tomaram um diurético para diminuir os níveis intracelulares de cloreto, um importante composto orgânico encontrado no corpo. Em quantidades anormais, porém, ele está associado a deficiências nas redes de neurônios — pesquisas anteriores indicam que o problema também tem relação, por exemplo, com a epilepsia. No fim, 75% dos meninos apresentavam sintomas mais amenos, o que foi constatado por meio de três escalas comportamentais utilizadas globalmente para averiguar a taxa de severidade do autismo.
Como exemplo, os pesquisadores citaram um paciente de seis anos que apresentava baixa habilidade linguística e pouca interação social, era hiperativo e exibia um tratamento combativo. Depois de três meses de tratamento, os pais, professores e enfermeiros do hospital onde eles se tratava, além de amigos da escola, disseram que o garoto estava mais participativo. A atenção dele havia melhorado, assim como o contato visual, que é pobre em pessoas com esse distúrbio.
— Apesar de não ser um tratamento curativo, o diurético reduziu a severidade do autismo na maior parte das crianças — destacou Ben-Ari.
A substância foi patenteada pelo instituto de pesquisa francês Neurochlore, que financiou o estudo publicado na Science.
Sintomas amenizados
Em um segundo teste, os cientistas investigaram se, aplicada diretamente nos roedores depois do nascimento, a substância também poderia tratar o autismo. Esses animais, que já exibiam sinais da doença, apresentaram redução dos sintomas.
— Conseguimos comprovar que a bumetanida é eficaz e que, quanto mais cedo iniciado o tratamento, maior o potencial preventivo — diz o pesquisador.
— Dada a ênfase cada vez maior à necessidade de detecção precoce do distúrbio do espectro autista e à descoberta de seus biomarcadores, a possibilidade de tratamento pré-natal com um agente como a bumetanida é uma possibilidade sedutora de prevenção ou terapia precoce — acredita Susan Connors, neurologista do Hospital Geral de Massachusetts.
Ela observa, contudo, que, para isso acontecer, será necessário primeiramente desenvolver métodos confiáveis e seguros de identificação da doença em fase embrionária.
Yehezkel Ben-Ari ressalta que ainda não está na hora de pensar em desenvolver tratamento pré-natal para o autismo, pois a doença tem diversos aspectos que ainda precisam ser investigados a fundo.
— Para tratar, é necessário entender como o cérebro se desenvolve e de que forma mutações genéticas e fatores ambientais modulam a atividade cerebral dentro do útero — pondera.
Ação dos cloretos
Se nos pacientes humanos não se pode falar em cura, no experimento realizado com ratos, a bumetanida eliminou qualquer sinal de autismo antes do nascimento dos animais. Eric Lemonnier, pesquisador do Laboratório de Neurociência de Brest, na França, e coautor do artigo, explica.
— Durante toda a fase embrionária, os neurônios contêm altos níveis de cloretos. Como resultado, o GABA, principal mensageiro químico do cérebro, excita os neurônios durante essa fase, no lugar de inibi-los. Isso é importante para a construção do órgão — explica Eric Lemonnier, pesquisador do Laboratório de Neurociência de Brest, na França, e coautor do artigo.
Mas depois, quando o cérebro já está consolidado, a concentração de cloretos dentro das células cai. Com base nas observações, os pesquisadores desenvolveram modelos de ratos com autismo para checar se o cloreto também poderia estar associado a esse tipo de transtorno. Logo após o nascimento, exames indicaram que as taxas continuavam anormalmente altas. Isso não é comum porque, no momento do parto, a mãe libera um hormônio, a oxitocina, que regula a ação do neurotransmissor GABA. Nos ratinhos testados, nem mesmo essa substância consegue acalmar a superexcitação dos neurônios. A bumetanida, contudo, é capaz de reproduzir o efeito da oxitocina.
Zero Hora
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