Ausência do poder público abre caminho para ações de criminosos em aterros de Caxias
O recado chegou por um radiotransmissor, em forma de alerta urgente: era preciso descer imediatamente de uma montanha de 53 metros de lixo. Nervoso, um técnico parou a aferição dos poços de captação de gás no local, enfiou-se num carro e, minutos depois, estava abrigado. Passado o susto, soube que estava na mira de um fuzil. O episódio envolvendo um funcionário da empresa que administra o aterro do Jardim Gramacho, fechado em junho de 2012, ocorreu há um mês, após uma incursão policial a um depósito clandestino de lixo vizinho, em Duque de Caxias. Não foi um caso fortuito. Traficantes armados com fuzis e pistolas são vistos com frequência no entorno daquele que já foi o maior lixão da América Latina. Três anos depois do encerramento dos depósitos de resíduos no local, o vácuo do poder público criou uma estrada aberta para o crime. De acordo com a Coordenadoria de Combate a Crimes Ambientais (Cicca), vinculada à Secretaria estadual do Ambiente (SEA) e à prefeitura de Caxias, o tráfico controla cinco lixões clandestinos na área, onde cobra pedágio de caminhões.
Do alto do aterro é possível ver depósitos clandestinos avançando sobre o bosque de manguezal que protege a Baía de Guanabara. Na última quinta-feira, O GLOBO flagrou até mesmo uma retroescavadeira ajudando a organizar as gigantescas pilhas de resíduos. Uma dinâmica de difícil controle, reconhece o coronel José Maurício Padrone, coordenador da Cicca.
— A maioria dos moradores do bairro sobrevive do lixo. Com o fechamento de Gramacho, criou-se um grande comércio ilegal em torno dele, com caminhoneiros, alguns catadores e empresas inescrupulosas de lixo extraordinário, que não querem se deslocar para o aterro sanitário em Seropédica e pagar R$ 60 a tonelada — diz Padrone. — O tráfico cobra R$ 40 para liberar a passagem de um caminhão com até dez toneladas de resíduos. Quem perde é o meio ambiente.
“Cada um no seu quadrado”
Padrone avalia que as operações de repressão aos despejos ilegais só terão efeito com o avanço de projetos de melhoria de infraestrutura do bairro de Jardim Gramacho. Enquanto as promessas não saem do papel, o combate ao crime patina em tentativas ineficientes de “enxugar gelo”. Opinião endossada pelo secretário de Meio Ambiente de Duque de Caxias, Luiz Renato Vergara.
— Jardim Gramacho precisa de uma grande intervenção social. Nós vamos iniciar, este mês, uma reestruturação nas principais vias. Mas o grande projeto que poderia mudar essa realidade, do governo federal, ainda não aconteceu — lamenta o secretário, prevendo um gasto de R$ 1,5 milhão do município para intervenções em drenagem, limpeza e melhoria urbanística do bairro.
Também este mês, a estação de transbordo de resíduos, que opera desde o fechamento do aterro e fica a poucos metros do local, será transferida para um galpão às margens da Rodovia Washington Luís. A promessa é que acabe o vaivém de caminhões, antiga reclamação de moradores.
As ruas de Jardim Gramacho, que se estende da Washington Luís até as margens da Baía de Guanabara, permanecem caóticas. Saneamento e pavimentação inexistem, e há lixo acumulado por toda a parte, deixando um odor insuportável. Os 20 mil moradores dividem espaço com criações de porcos e galinhas. Os esforços por ali se voltam a estratégias de sobrevivência. O bairro tem hoje 21 cooperativas de catadores. A reciclagem emprega um exército de quase 500 pessoas, 60% a menos que os 1.400 catadores do antigo aterro. Além dos “negócios” com lixo, o tráfico da região já começa a lotear terrenos do entorno.
— Aqui é cada um no seu quadrado. Eles (os traficantes) não mexem com a gente, e a gente não mexe com eles. E fica tudo bem — informa um catador. — O fechamento do aterro foi uma catástrofe para quem vive da reciclagem.
Uma catadora concorda, e acrescenta:
— Nem todo mundo recebeu a indenização (de R$ 14 mil) após o fechamento do aterro. A crise no preço dos recicláveis está nos prejudicando. Sobrevivemos com doações de materiais como plástico, papel, metal e alumínio. Não dá nem para comparar com a época boa de Gramacho.
Em operação policial realizada em outubro do ano passado, uma intensa troca de tiros deixou moradores em pânico. Traficantes se refugiaram numa ilha, com acesso por uma trilha no meio do manguezal. Comandante do 15º BPM (Duque de Caxias), o tenente-coronel João Jacques Busnello conta que, desde janeiro, quatro fuzis foram apreendidos nas localidades de Chatuba, Maruim e Parque Planetário, em Jardim Gramacho. Seis supostos traficantes e um PM foram mortos no bairro nos últimos sete meses. Mas o oficial frisa que, desde que assumiu o batalhão, em janeiro, as mortes em confronto caíram 50%.
— Mantemos operações constantes ali. Infelizmente, o único braço do estado no bairro é a PM. Temos uma missão estritamente repressora. Falta uma gestão de meio ambiente eficiente. Não há motivo para as indústrias de reciclagem continuarem em Gramacho. A fiscalização ambiental pode atuar, cobrar alvará, multar. Costumo dizer que o bairro abriga um cofre com uma fortuna, mas ninguém fica rico. Como pode? — questiona Busnello. — Tem tráfico, consumo de drogas e fuzil. É uma fortificação do crime no fundo da baía, num lugar degradado, com uma única saída. A solução não é a PM.
Renda per capita de R$ 101 mensais
Diretor-executivo do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), o economista Manuel Thedim, que coordenou um amplo levantamento em mil domicílios no bairro, em 2011, lamenta o abandono. Em 2012, uma pesquisa do Iets mostrou que, com a desativação do aterro, a renda per capita por domicílio das famílias de catadores despencou de R$ 311 para R$ 101 mensais.
— As condições habitacionais são muito precárias. Houve algumas tentativas de sensibilizar bancos públicos, mas sem resultados concretos. Gramacho é um símbolo da degradação da Baía de Guanabara. Deveria receber do poder público o olhar especial que nunca teve — diz Thedim.
Fonte: O Globo
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