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terça-feira, 26 de janeiro de 2016
As injustiças da Justiça brasileira
Erros e descasos em processos criminais levam à prisão de inocentes por até duas décadas
por André Miranda / Dandara Tinoco
26/01/2016 6:00 / Atualizado 26/01/2016 12:50
RIO - A ausência de dados oficiais sobre as prisões provocadas por erros dos agentes públicos é um indício da invisibilidade dessas “vítimas” do sistema penal: órgão do Ministério da Justiça, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) diz não contar com estudos a respeito de condenados injustamente e sugere uma consulta aos bancos de dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); já o CNJ afirma não acompanhar esses casos e sugere que o Depen seja procurado. Pesquisas independentes, no entanto, mostram a gravidade das prisões injustas no Brasil. Em 2013, só no Rio, 772 foram presos, supostamente em flagrante, para depois serem absolvidos. O levantamento foi realizado pelo Instituto Sou da Paz em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes. O número, que inclui pessoas inocentadas e liberadas por falta de provas, corresponde a cerca de 10% dos 7.734 flagrantes na cidade durante o ano.
— Isso mostra a triste realidade do sistema de Justiça criminal no Brasil — critica Ivan Marques, diretor do Instituto Sou da Paz: — Nossos juízes e policiais têm uma ânsia de encarcerar as pessoas. Os erros cometidos não são poucos. Há casos de gente presa provisoriamente por mais de cem dias e que depois é absolvida. É um absurdo do ponto de vista público, pelo valor gasto pelo Estado em prisões, e um fracasso do ponto de vista humano.
Assassinato cometido por homônimo
Marcos Mariano da Silva, preso por engano em Pernambuco - Hans Von Manteuffel / Agência O Globo/30-03-2005
Era apenas uma coincidência de um nome em comum, mas erros e mais erros da Justiça brasileira transformaram a vida do pernambucano Marcos Mariano da Silva. Em 1976, o então mecânico e motorista foi preso por um assassinato cometido por um homônimo na mesma cidade em que morava, Cabo de Santo Agostinho (PE). Condenado, passou seis anos encarcerado, até o verdadeiro criminoso ser detido por outro delito. Marcos, então, foi solto, mas seu martírio ainda não havia se encerrado. Três anos depois, ele foi parado numa blitz e reconhecido por policiais que sabiam da primeira acusação, mas não de sua inocência. O juiz que cuidou dessa nova prisão tampouco se preocupou em ler seu processo e o mandou de volta para o presídio, onde permaneceu até 1998. Nesse período, contraiu tuberculose e ficou cego, até mais uma vez ser solto pelo reconhecimento do equívoco. No total, Marcos passou 19 anos preso e, depois, iniciou uma nova luta por reparação. Em 2011, no dia em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu pelo pagamento de uma indenização de R$ 2 milhões, Marcos sofreu um infarto e morreu.
HIV contraído na prisão
Heberson Lima: preso injustamente, contraiu HIV na cadeia - Divulgação / Arquivo Pessoal
Para Héberson Lima, de 34 anos, o tempo em que esteve na prisão levou não apenas dois anos e sete meses, mas também tomou dele trabalho, saúde, a família e a vontade de viver. O então auxiliar de serviços foi preso em 2003, ao ser acusado por um vizinho de estuprar uma criança de 9 anos em Manaus. No cárcere, ele foi violentado e adquiriu HIV. O caso mudou de rumo apenas quando a defensora pública Ilmair Faria Siqueira constatou que, embora a vítima tivesse reconhecido Héberson, as feições descritas pela menina não coincidiam com a do acusado. Segundo seu relato inicial, o verdadeiro autor do crime era banguela, alto e “aloirado”, um perfil que definitivamente não era o de Héberson.
— Quando o promotor viu o resultado da perícia sobre as características físicas, não teve opção, a não ser a absolvição — relata a defensora.
Uma década após ser solto, o amazonense ainda tenta que os danos que sofreu sejam reparados. Depois da prisão, ele perdeu o emprego, separou-se da mulher e teve de se submeter a tratamento para o HIV. Entre idas e vindas de processos pedindo indenização, ele agora aguarda o desfecho de ação em que solicita R$ 150 mil do Estado em favor dos dois filhos, de 13 e 15 anos.
— A prisão só me trouxe desgraça. Ficávamos amontoados, e os presos se maltratavam. Eu achava que ia sair, mas passou o primeiro ano, o segundo ano, e eu fiquei esperando. Pensei em suicídio — lembra Héberson: — Hoje, sou doente e não tenho vontade de viver. Trabalho fazendo bico, um pouco aqui e ali. Mas nem esforço físico eu posso fazer.
Ao ser questionado sobre a expectativa em ainda receber ressarcimento pela prisão, ele dispara:
— A esperança é a última que morre, mas tomara que eu não morra antes dela.
Menina presa com vinte homens
Este ano, espera-se que uma jovem receba uma indenização de R$ 85 mil por outro descaso da Justiça. Em 2007, quando tinha 15 anos, ela foi levada por furto de um celular para uma delegacia de Abaetetuba, no interior do Pará. Tanto o delegado quanto a juíza que analisaram seu caso tiveram certeza se tratar de um rapaz e a deixaram por mais de um mês numa cela com 20 homens. A adolescente foi estuprada seguidamente, até a OAB do Pará ter ciência do caso. Hoje, ela vive em outra cidade, com uma nova identidade fornecida pelo Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte. A história de Abaetetuba levou organizações de direitos humanos a buscarem e descobrirem outros casos semelhantes no Pará.
— Na época, um jogava a responsabilidade para o outro. O delegado dizia que tinham informado a juíza, mas a juíza dizia que não foi informada de que era uma menina — afirma Celina Bentes Hamoy, advogada do Centro de Defesa da Criança que defendeu a adolescente: — Quatro delegados foram denunciados e condenados por tortura e por omissão. Mas nunca foram presos, aguardam recurso. Já a juíza ficou três anos afastada, mas depois foi reconduzida ao cargo.
'Estamos na Idade Média'
Mais do que um erro pontual, casos de prisões injustas costumam ser fruto de equívocos em série. Os suspeitos são reconhecidos a partir de fotos; policiais muitas vezes são as únicas testemunhas de um crime; e há uma carência do uso de tecnologia nas investigações. Por exemplo, uma cena extremamente comum em filmes e séries é pouco disseminada no Brasil: a coleta de impressões digitais no local de um crime.
— Estamos na Idade Média — afirma Fábio Tofic, vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD): — Em crimes de homicídio, as principais provas são depoimentos e, algumas vezes, uma mal-ajambrada confissão do réu. Os exames necroscópicos normalmente ajudam a explicar algumas coisas, mas não trazem certeza sobre a autoria. Nas melhores hipóteses, consegue-se um confronto entre a arma encontrada com o réu e o exame balístico. Além disso, há a questão da preservação da prova ao longo da sua movimentação. Algumas vezes as provas são esquecidas anos em um saquinho plástico guardado num armário de delegacia.
Para o juiz Fábio Uchôa, titular do 1º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, no entanto, os equívocos cometidos pelo Judiciário correspondem a exceções. Ele afirma que o número de casos desse tipo não é significativo.
— Os erros são pouquíssimos, se considerarmos o universo de pessoas julgadas. O número é até não considerável. Claro que o ideal é que não haja erro algum, mas qualquer obra humana está sujeita a erros — avalia o magistrado: — Acho que a Justiça criminal brasileira atende bem à sua finalidade.
Nos EUA, 1.731 pessoas soltas desde 1989
Série "Making a Murderer" conta a história de Steven Avery - Divulgaçao
A série “Making a murderer”, exibida desde dezembro no Netflix, acompanha a história de Steven Avery, um americano de 53 anos que ficou preso entre 1985 e 2003 por uma condenação de estupro. Depois de 18 anos, contudo, um exame de DNA comprovou que Avery não foi o autor do crime, e ele foi solto.
O antigo drama do americano já justificaria a grande repercussão da série, mas houve um novo desdobramento que tornou sua história ainda mais cinematográfica — e trágica. Em 2005, enquanto movia um processo contra a polícia e a promotoria responsáveis por sua prisão, Avery foi acusado de um novo crime, o assassinato de uma fotógrafa. Dois anos depois, acabou condenado à prisão perpétua. Hoje, está num presídio de segurança máxima no estado de Wisconsin.
Em “Making a murderer”, as diretoras Laura Ricciardi e Moira Demos montaram um quebra-cabeças com entrevistas, análises de peritos e material de arquivo para sustentar a inocência de Avery. Elas levantam dúvidas sobre o procedimento da Justiça e argumentam que ele foi perseguido pelas autoridades locais desde a década de 1980. De fato, a única certeza é que a série provocou um grande debate nos EUA, com gente defendendo sua soltura com a mesma gana com que outros querem mandá-lo para a forca.
A história de Avery também aumentou o debate sobre injustiças nas condenações nos EUA. A Escola de Direito da Universidade de Michigan mantém o projeto Registro Nacional de Exonerações, em que mapeia casos de liberações por erros da Justiça americana. Desde 1989, foram 1.731 pessoas soltas. O último, Ben Baker, deixou a prisão há 12 dias depois de cumprir dez de 18 anos de uma sentença por porte de cocaína e heroína em Chicago. Ele foi solto porque ficou comprovado que o policial que o investigou forjava provas contra suspeitos que se negavam a pagar suborno.
Fonte: O Globo
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