O índio torturado Manoel Vieira das Graças, Manoel Pankararu, nas ruínas do que sobrou do Reformatório destruído pela enchente do Rio Doce em 1979Foto: Michel Filho / Agência O Globo
Na história oficial, o Reformatório Krenak, instalado pelo governo no auge do regime militar, servia para “corrigir índios desajustados”. Para a etnia, não passou de uma “cadeia”, palco de espancamento, tortura e desaparecimentos. O Ministério Público Federal está pedindo a reparação pelas violações
RESPLENDOR (MG) - O sorriso que intensifica as rugas ao redor, no rosto de Dejanira Krenak, de 65 anos, dá lugar a um semblante consternado. Incomoda lembrar quando “não podia ser alegre, acender fogo, falar a língua, tomar um gole”. Eram algumas das proibições impostas pelo governo militar, que manteve o Reformatório Krenak na terra da etnia, de 1969 a 1972, para receber índígenas criminosos ou considerados de mau comportamento. Convênio firmado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) deu à Polícia Militar de Minas Gerais a tarefa de cuidar das aldeias da região, no Vale do Rio Doce, já cobiçada à época por fazendeiros e mineradores. Quem desobedecesse às regras ficava preso.
94 indígenas em reformatório
Não só os krenaks conheceram a “cadeia”, como eles se referem ao reformatório. Pelo menos 94 indígenas de 15 etnias levados de 11 estados passaram por lá, segundo dois inquéritos do Ministério Público Federal (MPF) em Minas que investigam essa passagem dos anos de chumbo. Manoel Vieira das Graças, de 68 anos, é um dos que chegaram no caminhão apinhado de gente. Pankararu, da aldeia Brejo dos Padres, em Tacaratu (PE), conta que foi levado à força para o presídio com o pai, depois de se envolver em uma briga:
— Botaram nós na cadeia. Sofremos demais aqui. Batiam, machucavam os índios.
Em meio às ruínas do antigo reformatório, onde diz ter passado muitos anos, Manoel mostrou o local do “cubículo”, uma solitária, pequena e abafada, onde indisciplinados passavam noites de castigo. Havia uma passagem de água que gotejava em quem estivesse lá, o que era visto como uma forma de tortura. De dia, os indígenas tinham que trabalhar na roça e na limpeza do posto militar.
Pankararu diz não gostar de ir ao local, porque rememora a “escravidão”. Manoel é citado na lista oficial de “confinados”. Os motivos para as prisões, mostra o documento, iam de embriaguez, vadiagem, homicídio, roubos, até pederastia. Mulheres também eram punidas. Laurita Felix, de 84 anos, conta que a mãe, Bastianinha, ficou detida por três meses porque “bebeu um tantinho de pinga”. Segundo ela, era comum os presos ficarem o primeiro dia sem comer ou beber:
— Eu fui levar almoço e água para dar a ela. Eles disseram: “Não vai dar, não, porque ela é muito teimosa” — lembra.
Os índios tinham que respeitar regras, como não falar a própria língua ou pedir autorização para deixar a aldeia. Para José Alfredo de Oliveira, o Cacique Nego, era uma humilhação:
— A gente tinha que sair só debaixo de ordem, igual a um ladrão, um assassino. Uma vez, passei para o lado de lá do rio para jogar uma sinuquinha, aí me prenderam, fiquei 17 dias preso.
Os desaparecimentos intrigam os krenak mais antigos. O alvo principal eram os que tentavam fugir. Se capturados, apanhavam até “vomitar sangue”, diz Laurita. Alguns sumiam depois. Entre os “chefes” do período, o que mais aparece nos relatos dos indígenas é o do “capitão Pinheiro”, hoje major reformado da PM mineira e responsável pelo controle da região na época, tido como “bravo” e “ruim”.
Em 1972, os indígenas no local foram removidos para a Fazenda Guarani, em Carmésia (MG), que o governo de Minas deu à Funai em troca das terras tradicionais dos krenak. Esperança de um recomeço, a nova morada virou um castigo. As péssimas condições e a falta de comida, agravadas por não haver rio próximo, estão registradas em documentos oficiais.
Os krenak se dispersaram nos anos 70. Muitos já haviam passado por uma primeira expulsão. É o caso de Euclides Krenak. Com 105 anos, ele ficou mais da metade da vida entre aldeias em Mato Grosso do Sul e São Paulo. Mesmo após a área ser devolvida aos krenak, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 1993, eles relutavam em voltar.
— Tive que ir atrás dele para garantir que não tinha mais polícia aqui — conta a irmã, Dejanira.
Apesar da idade, Euclides mantém ar vigilante. De tempos em tempos, olha para a janela, como se esperasse a chegada de alguém. E resume que “morreu muito índio” na terra onde quer ser enterrado.
O MPF ajuizou, há um mês, ação pedindo reparação do Estado aos krenaks, que incluem desculpa pública, ações para resgate da língua tradicional e revisão territorial. O procurador da República Edmundo Antonio Dias defende a medida:
— O reformatório era um presídio sem previsão legal, destinado a confinar indígenas em razão de condutas em geral sequer previstas pela legislação penal, sem qualquer julgamento. Os índios não podiam viver sua própria cultura, praticar seus rituais. É uma continuação do processo de desterritorialização que começou com o Brasil Colônia e que foi intensificado, no século passado, durante o período do regime militar.
A Funai, em nota, reconheceu a violência sofrida pelos indígenas na ditadura e lembrou que a Comissão Nacional da Verdade estimou ao menos 8.350 indígenas mortos “em decorrência da ação direta ou da omissão de agentes governamentais”.
Além do órgão indigenista, foram acionados judicialmente a Fundação Rural Minas, o estado de Minas e o major Manoel Pinheiro. A Rural Minas informou que não colaborou com as supostas violações. Os demais não retornaram.
Visão desoladora. Família indígena observa o Rio Doce tomado por por rejeitos: cerca evita que bois bebam a água - Michel Filho / Agência O Globo
Na terra indígena Krenak, que abriga cerca de 400 pessoas em quatro mil hectares, na margem esquerda do Rio Doce, cercas foram colocadas recentemente, parte do plano de redução de danos das empresas envolvidas no rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG). A medida visa evitar que animais criados pelos indígenas, especialmente bois, bebam água do rio. Com os olhos úmidos, Irani Felix aponta incrédula para o obstáculo:
— Nunca pensei ter uma cerca impedindo a gente de chegar no rio — comenta.
O pequeno Naktã, de 5 anos, filho mais novo de Irani, reclama de não ter mais onde aprender a nadar. Apesar do chinelo do Capitão América e joguinhos no celular da mãe, que o deixam tão semelhante a qualquer garoto de fora da aldeia, a criança mostra uma relação diferente com o Rio Doce. Fala com pesar sobre o “montão de peixe” que morreu perto da casa da família. E lista córregos e riachos próximos onde ele talvez possa encontrar lambari.
Pescar e beber água é a preocupação de José Cecílio Damasceno, ou Takruko, como se apresenta logo depois de usar o nome de “branco”. O indígena fala com desespero da sujeira que tomou conta do leito do rio, chamando-o de “rio do amargor”. Além da renda obtida com o trabalho de barqueiro pela prefeitura, ele recorria ao Doce para reforçar o orçamento:
— O rio dava tudo para nós. Se eu precisava de um pacote de açúcar, pescava e vendia para os restaurantes. Agora está tudo morto.
A água mineral que vem sendo distribuída pelas empresas, segundo ele, não “mata a sede da gente”. Em todas as casas da terra indígena, há caixas azuis que armazenam a água distribuída por carros-pipa, destinada aos animais e afazeres domésticos. Na última semana, porém, as chuvas que atingiram a região têm dificultado a chegada do recurso.
— Choveu demais e, em muitas estradas, os carros-pipa não passam. Teve queda de barreira, está muito difícil — diz Douglas Krenak, líder jovem da etnia.
Barbicha, roupas esportivas, internet em casa, Douglas representa as mudanças pelas quais o povo Krenak passou ao longo do tempo. As seis aldeias que formam a terra indígena guardam pouca semelhança com o que era na década de 1960 e 1970, quando os militares passaram a comandar o local. A mata diminuiu, deu lugar a pastos, que alimentam os bois criados pelos indígenas. A comunidade se engajou num projeto de produção de leite para cooperativas, que hoje representa boa parte da renda dos moradores.
Carros, motos e antenas parabólicas são itens quase obrigatórios na porta das casas de alvenaria, bem modestas, onde os indígenas moram. O casamento com “brancos” é outra prática comum da geração jovem das aldeias. O cabelo geralmente escorrido e escuro deixou de ser regra entre a criançada que corre na frente das casas. Nem por isso, defende o procurador Edmundo Antônio Dias, perdem a condição de indígenas:
— Segundo a Convenção 169 (da OIT), povo indígena é o que se reconhece como tal, esteja ele onde estiver. Não é porque as condições mudaram, que o jovem passou a estudar, fazer faculdade, que se perdem os valores próprios deles.
O povo Krenak pede à Funai uma revisão territorial da terra indígena já demarcada. Eles reivindicam a área de Sete Salões, que fica do outro lado do rio e é parte de um parque estadual, muito visitado por turistas. Segundo a Funai, o grupo de trabalho que fará os estudos necessários à identificação e à eventual nova delimitação deverá ser retomado no primeiro semestre deste ano. Os indígenas alegam que se trata de um local sagrado, onde os antepassados viviam.
Atualmente, há no Brasil 37 terras indígenas delimitadas, 66 declaradas, oito homologadas e 434 regularizadas, fase final do procedimento, segundo a Funai. No total, são 545 áreas nas mais diferentes fases de reconhecimento.
Fonte: O Globo
Verbratec© Desktop.
Nenhum comentário:
Postar um comentário