sexta-feira, 18 de novembro de 2011

"Tchau, drogado, volta amanhã"


Até a presidente Dilma parece insatisfeita com o atendimento pífio que o Brasil dá aos dependentes de álcool e drogas. Por que insistir no fracasso?

Afirmar isso ou aquilo sobre o comportamento e a personalidade da presidente Dilma é arriscado. Até os iniciados no mundo da política (o que não é, absolutamente, o meu caso) sofrem para detectar quais são os traços autênticos de Dilma. Dizem que ela é austera. Dizem que tem pavio curto. Dizem que não economiza nas broncas.
Uma amostra das descomposturas que a presidente estaria passando nos ministros e nos colaboradores foi relatada pela jornalista Vera Magalhães na interessante reportagem publicada no domingo (13/11) pelo jornal Folha de S. Paulo. O que mais chamou minha atenção foi o seguinte trecho:

“A presidente comandava uma reunião com representantes de vários ministérios para discutir o lançamento de uma política de saúde para pessoas com deficiências. Quando um funcionário do Ministério da Saúde sugeriu uma sigla para identificar a nova política, Dilma cortou:
-- O quê? Você está me sugerindo mais uma sigla? Você sabe quantas siglas tem no Ministério da Saúde? – e se pôs a enumerar várias delas. Ao citar os CAPs-AD (Centros de Atenção Psicossocial Antidrogas), voltou-se para um ministro ao seu lado:
-- Você sabia que os CAPs-AD fecham às 18h? Você chega para o drogado e fala: “Drogado, são 18h. Tchau, drogado, volta amanhã!”

Finalmente alguém no governo federal parece ter percebido o absurdo que é a estrutura de atendimento aos dependentes de álcool e drogas no Brasil. Eles e suas famílias não são os únicos afetados. Toda a sociedade sofre. A política de saúde mental do Ministério da Saúde tem sérios problemas. O principal é estar baseada muito mais em ideologia e preconceito do que em medicina.

Se quem percebeu que o serviço está mal feito foi justamente quem manda na casa, a notícia é ótima. Pode ser um sinal de que as coisas finalmente podem começar a mudar. Para melhor.

Quem tem na família um dependente químico (de drogas ou álcool) ou um doente com depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia, transtorno obsessivo-compulsivo e outros problemas psiquiátricos sabe que essa estrutura de atendimento baseada nos CAPS não dá conta do problema. Por mais bem intencionados que os defensores desse modelo sejam.

A história é antiga. No final dos anos 80 ganhou força no Brasil um movimento chamado de luta antimanicomial ou de reforma psiquiátrica. Pregava a extinção dos manicômios, nos quais os pacientes eram abandonados, maltratados e submetidos a situações degradantes.
Ninguém pretende que esses horríveis depósitos de gente renasçam no Brasil. Mas é preciso reconhecer que dependentes de álcool e drogas e doentes psiquiátricos em estado grave podem precisar de internação. Os doentes (independentemente de sua condição social) merecem uma internação em hospital adequado, com atendimento psiquiátrico eficaz e a dignidade que todo sofredor merece.

As famílias dos pacientes enfrentam hoje uma enorme dificuldade para internar quem precisa. O poeta Ferreira Gullar, que teve dois filhos esquizofrênicos, denunciou a situação numa reportagem que foi capa de ÉPOCA.

Desde 1989, cerca de 70% dos leitos psiquiátricos do país foram fechados. O Ministério da Saúde investiu nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Nesses locais, o paciente recebe medicação e acompanhamento semanal. A ideia é atendê-lo sem retirá-lo do convívio da família e da comunidade. Quando a situação do paciente complica, no entanto, os familiares não conseguem vaga num leito psiquiátrico em hospitais comuns.

Vários municípios discutem a internação compulsória de dependentes de crack, uma polêmica muito bem retratada pelos colegas Mariana Sanches, Matheus Paggi e Eduardo Zanelato nesta outra reportagem de capa. A pergunta que não quer calar é “internar onde?”

Em meio a uma verdadeira epidemia de crack, o Brasil dispõe de apenas 268 centros de atendimento de casos de álcool e drogas (CAPS-Ad). Eles funcionam apenas até as 18 horas. Só de segunda a sexta-feira.

O país inteiro tem apenas três (!!!) centros 24 horas, segundo o Ministério da Saúde. Um em Petrópolis (RJ) e dois em São Bernardo do Campo (SP). Pelo sistema de atendimento vigente no Brasil é preciso surtar em horário comercial. Não sei se a bronca de Dilma foi dirigida à pessoa certa, mas foi merecida.

O mais estranho nessa história toda é que o Ministério da Saúde parece não estar interessado em ouvir os psiquiatras. Procurei vários deles, a maioria especialista no tratamento de dependentes de álcool e drogas, para saber como receberam o comentário da presidente.

“A Dilma é muito inteligente. Se o problema chega até a presidente, ela consegue dar resolução”, afirma Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. “O problema é que ela está muito mal assessorada na área de saúde mental. Nos colocamos à disposição do Ministério da Saúde para ajudar a repensar o sistema e não fomos ouvidos”, diz.

CAPS são úteis, mas não podem ser o único recurso disponível. Sozinhos, esses centros não têm competência para prestar assistência adequada aos doentes. Fechar leitos psiquiátricos e abrir mais CAPS não resolve o problema. Sem nenhum demérito às equipes multiprofissionais que trabalham neles, esses centros deveriam ser recursos complementares. Por que o governo insiste no erro?

“Por um infantil viés ideológico, quem defende o modelo atual acredita que as dependências químicas são uma construção social e os dependentes são vítimas da injustiça social”, diz Marco Antonio Bessa, presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatra.

Na prática, a atual orientação da política de saúde mental brasileira sataniza a psiquiatria. Parte do pressuposto de que todos os psiquiatras estão mancomunados com a indústria farmacêutica e nega os avanços que essa área da medicina trouxe para a compreensão e tratamento de tantos males e aflições.

É claro que existem maus profissionais na psiquiatra -- como em qualquer outra área do conhecimento e do mercado de trabalho. É claro que a indústria tem interesses comerciais e seduz os médicos, a imprensa e o público. É claro que há exagero no diagnóstico e na medicação de “doenças” que, muitas vezes, são apenas a expressão de comportamentos fora do padrão esperado pela sociedade. Tudo isso existe e é grave.

O problema é o radicalismo. Negar os benefícios que a psiquiatria trouxe nas últimas décadas é tão grave quanto medicar e internar quem não precisa.

Diante da crise aberta pela dependência de drogas, o governo e a sociedade precisam ouvir os psiquiatras – mesmo que seja para discordar deles.

“Às vezes fico pensando que em breve as internações em UTIs, os choques para ressuscitação e as radioterapias também serão vistos como ações arbitrárias e violentas dos médicos – esses lacaios do biopoder a serviço da opressão e da exploração da humanidade”, diz Bessa.

O professor Ronaldo Laranjeira, da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), acha que a presidente precisa se informar melhor. “Se ela soubesse da missa a metade, ficaria ainda mais preocupada”, diz. “Até hoje o Ministério da Saúde não tem uma política assistencial em relação ao tratamento do crack. Nem mesmo para o alcoolismo existe um mínimo de padronização do que se deveria fazer”.
Segundo Laranjeira, os CAPS-Ad são caros e ineficientes. Cada centro custa, em média, R$ 200 mil. “Nunca conheci um CAPS que faça mais de mil atendimentos por mês. Portanto, cada consulta custa ao redor de R$ 200. A adesão ao tratamento é muito baixa e a eficácia do tratamento é absurda”, afirma.

Não se tem notícia de que algum dia o Ministério da Saúde tenha realizado uma avaliação de custo-benefício nesses locais. “Se fizesse, 90% deles teriam de ser fechados”.

Há quem acredite que na gestão Dilma a política vigente sobre drogas finalmente começa a ser questionada. Essa é a opinião de Analice Gigliotti, vice-presidente da Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro. “O comentário da presidente é absolutamente pertinente. Um dependente de drogas não escolhe a hora de querer se tratar. Não escolhe a hora de precisar de tratamento. Se pudesse escolher, não seria um dependente de drogas”.
Em vez de promover a abstinência de drogas, o objetivo dos CAPS-Ad é reduzir o consumo. É a ideia da redução de danos. “Isso é inadequado porque são muito poucos os dependentes que conseguem reduzir o uso. Eles voltam a usar drogas na mesma quantidade que usavam antes. Basta ver o que acontece com os fumantes que tentam reduzir a quantidade de cigarros. Não funciona”, diz Analice.

Durante três dias, tentei entrevistar um representante do Ministério da Saúde. Ninguém me atendeu. O governo sabe que a coisa vai mal. É bom saber que a presidenta também tomou consciência disso. Talvez esse seja o momento de reformar o que precisa ser reformado. Estou convencida de que não é a psiquiatria.

Época

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