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sábado, 27 de outubro de 2012
O conto da vacina contra o HPV
Um guia para sobreviver aos vendedores
Os ingênuos que me perdoem, mas os produtos criados para melhorar a saúde são exatamente isso: produtos. Fomos condicionados a encará-los com excessiva boa vontade porque eles emprestam da medicina uma ofuscante aura de altruísmo e beneficência.
Não há razão para abandonar o senso crítico na hora de investir em saúde. Quando compramos uma máquina de lavar, um carro, um tablet, uma revista, um sabão em pó, fazemos questão de saber quais são as qualidades e as limitações daquele produto.
No mundo da saúde também deveria ser assim, mas a maioria dos consumidores é passiva, resignada, paciente. Um exemplo é o exagero que se criou em torno das vantagens da vacinação contra o papilomavírus humano (HPV)
Duas empresas disputam o mercado brasileiro. As vacinas são caras e precisam ser tomadas em três doses. A mais barata protege contra apenas dois subtipos do vírus HPV e custa cerca de R$ 280 a dose nas clínicas particulares de São Paulo. A mais cara protege contra quatro subtipos. A dose custa cerca de R$ 400.
O momento de vendê-las para quem pode pagar é agora. O Ministério da Saúde estuda a possibilidade de oferecer a vacina no SUS. É possível que o negócio seja concretizado em breve. Ainda não se sabe qual faixa etária poderá receber a imunização sem botar a mão no bolso, mas muitas famílias que gastam hoje com a vacina fariam boa economia se esperassem mais um pouco.
Por essa e por outras razões, as estratégias de marketing têm sido agressivas. As empresas oferecem descontos e promovem amplas campanhas de vacinação em universidades, associações profissionais, prefeituras.
Até aí, nenhum problema. O que me chama a atenção é a desinformação em torno do produto. Cartazes espalhados na PUC de São Paulo anunciam a sexta campanha de vacinação contra o HPV oncogênico. Um folheto preparado pelo fabricante da vacina alerta para o fato de que quatro subtipos de HPV são os responsáveis por 80% dos casos de câncer do colo do útero no mundo. Só não explica que a vacina que está sendo vendida na PUC protege contra apenas dois subtipos de HPV (o 16 e o 18).
Toda a comunidade feminina (alunas, professoras, funcionárias e dependentes) é convidada a participar. Para as interessadas, cada uma das três doses sairá por R$ 130. Entre os alunos da PUC, a desinformação é explícita. Muitas moças acham que sem a vacina estarão condenadas ao câncer. Outras acham que a vacinação também as livrará do risco de tumores de mama.
Alguns estudantes acreditam em teoria da conspiração. Estão decididos a ficar longe das injeções porque, segundo um boato de internet, a vacinação seria uma estratégia de controle populacional comandada pelos governos e pelas grandes corporações.
Assustador, não é? Se isso é o que está passando pela cabeça de universitários que fazem parte da elite econômica e cultural do país, não é absurdo imaginar que a falta de conhecimento sobre a doença no Brasil seja geral.
Nessa história de HPV, há muita gente comprando gato por lebre. Na tentativa de contribuir para o consumo consciente, preparei um guia para sobreviver aos vendedores. Se você achar que as informações são úteis, espalhe.
A vacina contra o HPV é grande coisa?
Sim. A descoberta de que o vírus pode causar câncer de colo do útero rendeu um prêmio Nobel de medicina. O impacto social da vacina pode ser enorme. Nas áreas pobres, onde as mulheres não têm acesso a exames papanicolau e os homens nunca viram um urologista, a vacina pode reduzir drasticamente os casos de câncer de colo do útero, ânus, pênis e orofaringe.
O HPV sempre provoca doença?
Não. A cada 100 indivíduos sexualmente ativos, 75 adquirem o HPV ao longo da vida. Desses, 60 eliminam o vírus naturalmente. Isso mesmo: naturalmente. Sem fazer nada contra ele, sem sequer perceber que foi infectado.
O que acontece com os 15 que permanecem infectados?
Dez terão o vírus latente, sem qualquer lesão visível. Quatro terão lesões detectadas por exames, como o papanicolau. Se não tratadas, podem virar câncer. Apenas um terá verrugas genitais. Elas são benignas, mas incomodam.
Quem tem infecção latente (sem lesões visíveis) transmite o vírus?
Não se sabe com certeza. Se houver poucas cópias virais do HPV no organismo, ele não é transmitido.
Qual parcela das mulheres infectadas pelo HPV terá câncer do colo do útero?
Apenas 0,5%. Repito: 0,5%.
Qual parcela dos homens infectados pelo HPV terá câncer de pênis?
0,05%. Sim, você leu direito. Isso não é erro de digitação: 0,05%.
Quando a pessoa pega o HPV e fica naturalmente imune ao vírus, a proteção dura para sempre?
Nem sempre. É possível que um indivíduo que tenha adquirido o vírus em algum momento da vida e ficado naturalmente imune por muito tempo volte a adquirir o mesmo HPV se for exposto a ele novamente.
Quem pega o HPV nunca mais se livra dele?
Não é verdade. Com tratamento adequado, a pessoa que não eliminou o vírus naturalmente pode se curar e deixar de transmiti-lo.
Se tomar a vacina, a pessoa fica livre de todos os tipos de HPV?
Não. Existem cerca de 200 tipos de HPV. A vacina Gardasil, da Merck Sharp & Dohme, é quadrivalente. Ou seja: protege contra os tipos 6, 11, 16 e 18. Eles são responsáveis por 70% dos tumores do colo do útero e por 90% das verrugas genitais. A vacina Cervarix, da GlaxoSmithkline, é bivalente. Protege contra os tipos 16 e 18, que podem provocar câncer.
Quem toma a vacina pode adoecer por causa de outros tipos de HPV?
Sim. As vacinas não protegem contra todos os tipos causadores de lesões genitais e câncer. É possível que no futuro surjam uma segunda geração de vacinas, capazes de oferecer proteção contra um número maior de subtipos do vírus.
Quem tomou a vacina pode contrair a doença?
Pode. As vacinas protegem contra alguns tipos virais (e não todos) e sua eficácia não é total – gira em torno de 80%. A possibilidade de infecção existe, mas o risco de desenvolver a doença é baixo. É possível que o corpo se livre do vírus sem manifestar nenhum sintoma ou reação.
Quanto tempo dura a imunidade conferida pela vacina?
O tempo de proteção ainda não foi estabelecido. Daí a importância de seguir as pessoas vacinadas, o que está ocorrendo em diversos países, sob os olhares atentos da Organização Mundial da Saúde. Até agora, passados cerca de dez anos de seguimento de jovens vacinadas durante os ensaios clínicos, as duas vacinas registram o mesmo tempo de proteção. Espera-se que o mesmo ocorra em relação aos meninos e rapazes que estão sendo acompanhados há menos tempo.
Depois de cinco anos, é preciso tomar a vacina outra vez?
Até o momento, não há nenhuma indicação de necessidade de reforço.
É possível fazer um teste para saber se a pessoa já teve contato com o vírus e, dessa forma, evitar gastos desnecessários com a vacina?
É possível, mas não serve para muita coisa. O teste é capaz de indicar que a pessoa teve contato com o HPV, mas não revela qual foi o subtipo. Mesmo que a pessoa soubesse qual foi o subtipo que causou a infecção, a vacina pode protegê-las contra os outros subtipos.
Qual é o melhor momento para tomar a vacina?
O ideal é recebê-la antes do início da vida sexual. Quem não é mais virgem também pode ter benefícios. Mesmo que a pessoa tenha sido infectada por um dos tipos de HPV, a vacina quadrivalente pode protegê-la de outros três tipos. Ainda que o câncer de pênis seja raro, os rapazes também podem ser vacinados. Isso ajuda a quebrar a cadeia de transmissão. Com mais rapazes vacinados, a chance de transmissão do vírus para as moças cai bastante. No caso dos homossexuais, o risco de câncer anal também diminui.
A mulher vacinada pode deixar de fazer o exame papanicolau?
Não. A vacina não protege contra todas as causas de câncer do colo do útero. O exame que detecta lesões pré-cancerosas causadas por outros tipos do HPV continua sendo fundamental. Se descobertas precocemente pelo exame, elas lesões podem ser tratadas e nunca virar um câncer.
A vacina é segura?
Os estudos sugerem que sim. Ela não é feita com o próprio vírus, e sim com partículas virais criadas em laboratório. Elas não contêm o DNA do vírus. Cerca de 85% das voluntárias relataram efeitos colaterais leves. Dor de cabeça, febre branda, pequeno inchaço no braço. Os sintomas desaparecem no dia seguinte. Nos estudos internacionais, houve casos de morte súbita. Nenhuma das mortes, porém, pôde ser relacionado ao uso da vacina.
Quem toma a vacina pode dispensar a camisinha?
Não. A camisinha é fundamental para evitar o risco de contrair outros tipos de HPV e outras doenças sexualmente transmissíveis, como a aids.
A camisinha é suficiente para proteger contra o HPV?
Nem sempre. O HPV pode estar no escroto ou no ânus, regiões em que a camisinha não chega, e ser transmitido durante a relação em qualquer tipo de prática (vaginal, anal e oral).
Vale a pena comprar a vacina?
Depende da situação econômica de cada um. Se para pagar as doses, a família precisar economizar em educação e em alimentação, esqueça a vacina. Se você gasta esse valor em roupas, aparelhos eletrônicos ou qualquer outro supérfluo, talvez seja mais vantajoso investir em saúde.
Por tudo isso, depois de analisar os benefícios e as limitações das vacinas, tenho uma única certeza: criar pânico na população por causa do HPV é uma leviandade.
Cristiane Segatto
Época
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