domingo, 27 de maio de 2012

Sem educação formal, irmãos ganham prêmios


Davi e Jônatas estão com as malas prontas para a primeira viagem ao exterior: vão para a Califórnia em agosto. Ganharam as passagens e a estadia para a Campus Party americana após vencerem um concurso na edição brasileira do evento.

Por aqui, eles concorreram com mais de 7 mil "nerds", egressos dos cursos de Engenharia e Ciência da Computação. O currículo dos campeões, no entanto, é bem mais modesto. Eles abandonaram a escola antes de concluir o ensino fundamental.

Os dois foram educados pelos próprios pais, em casa. "Se eu estivesse no colégio, estaria entrando na universidade. Em casa, foquei apenas no que gosto. Não perdi tempo nas disciplinas que não me interessam", diz Davi, de 19 anos. Jônatas, um ano mais novo, alfineta: "Mesmo porque o melhor é ter uma boa ideia. Depois, se for preciso, coloco um engenheiro para programar".

A cada afirmação, os dois olham de soslaio para o pai, sentado no sofá ao lado e se segurando para ele mesmo não responder a todas as perguntas. A cada prêmio dos filhos - só nos primeiros quatro meses deste ano eles já ganharam cerca de R$ 30 mil em concursos - Cléber Nunes se convence ainda mais da decisão tomada no fim de 2005, quando Jônatas e Davi terminaram a 5.ª e a 6.ª série.

"Mas, mesmo com todos esses prêmios, ainda dizem que neguei educação para os meninos", diz o pai, referindo-se ao crime de abandono intelectual pelo qual ele e a mulher, Bernadeth Nunes, foram condenados em 2010. Também teriam de pagar uma multa, estimada hoje em R$ 9 mil, pela condenação em um processo na área cível por descumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). "Não quitamos porque temos certeza de que nossos filhos receberam instrução adequada", afirma a mãe.

Quem a vê tão convicta nem imagina que ela era terminantemente contra a decisão do marido. Tanto que, na primeira tentativa de Cleber, no fim de 2004, Bernadeth vetou a ideia. Para convencer a mulher, ele foi aos Estados Unidos, conheceu famílias que praticavam o ensino domiciliar e trouxe uma mala cheia de material sobre o tema.

Começava aí seu processo de "doutrinação" que só tem ganhado adeptos. A mais nova convertida é a pequena Ana, a caçula da família. Aos 5 anos, ela já sabe ler e escrever, é fluente em inglês e, apesar de nunca ter frequentado uma escola, tem uma opinião formada sobre o que se aprende na instituição: "Nada".

Informal. A sala de aula da menina é um cantinho do escritório coletivo que fica no térreo do sobrado em que a família vive, no município mineiro de Vargem Alegre. No espaço, as bonecas ficam junto dos livrinhos de tecido costurados por Bernadeth.

Enquanto a mãe ensina a menina a ver as horas, Jônatas desenvolve um software para informatizar as mercearias do município, e Davi é capaz de se esquecer de comer só para programar os códigos que darão origem a um programa capaz de ajudar os candidatos a vereador e a prefeito a mapear redutos eleitorais e traçar estratégias de comunicação.

Creditam todo o aprendizado à técnica implementada pelo pai, autodidata que saiu da escola no 1.º ano do ensino médio.

Assim que os tirou da colégio, Cléber os ensinou lógica, argumentação e aritmética, base a partir da qual eles poderiam estudar o que lhes conviessem. Davi e Jônatas decidiram ignorar disciplinas como química, biologia e geografia. "Por que eu deveria saber o que são rochas magmáticas?", questiona Jônatas.

Das disciplinas oficiais, ficou somente o inglês. Para estimular a fluência, Cléber comprava cursos de informática em inglês e pedia que os filhos legendassem documentários.

Atualmente, cada um faz seu currículo e seu horário. Mas nunca são menos de seis horas diárias, seis dias por semana. Jônatas, webdesigner, dispersa fácil, tanto que decidiu sair do Facebook para não perder tempo. Davi, programador, é mais centrado, cumpre à risca a grade horária colada no mural do seu quarto, ao lado de onde se vê um versículo bíblico em hebraico, idioma que ele aprendeu sozinho com o intuito de compreender melhor textos do livro sagrado.

Motivação. A retirada dos filhos da escola coincidiu com a decisão da família por uma vida mais simples e de retorno a padrões morais descritos na Bíblia.

Cléber abriu mão de sua empresa de produtos de aço inoxidável, como troféus e placas de honra, para fabricar as peças no quintal de casa. Bernadeth, que era decoradora e cursava Arquitetura, abandonou o curso e, desde então, dedica-se a cuidar da casa e a alfabetizar a filha.

Por fim, trocaram a cidade de Timóteo, com 80 mil habitantes, pela pequena Vargem Alegre, de apenas 7 mil moradores e quase nenhuma opção de lazer. "O pai nos comunicou sobre a mudança. No começo, estranhamos, mas agora já me acostumei com o passeio na pracinha da igreja", diz Davi.

Vez ou outra, jogam futebol com os vizinhos e viajam a Timóteo para encontrar os primos e os ex-amigos de escola. No dia a dia, e sem TV em casa, os cinco estudam, trabalham, fazem as refeições e divertem-se assistindo a vídeos do Youtube. Mas não cansa ficar tanto tempo juntos? Pelo jeito, não. Como acompanhantes da viagem à Califórnia, os meninos não hesitaram: vão levar o pai e a mãe.

Educadores divergem sobre metodologia de ensino fora da escola

Profissionais da educação divergem sobre a possibilidade de pais educarem seus filhos em casa, fora do ambiente escolar. A pedagoga Maria Celi Chaves Vasconcelos, professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na Universidade Católica de Petrópolis, fez uma pesquisa de pós-doutorado analisando a prática no Brasil e em Portugal. Aqui, a legislação não permite. Lá é liberado, dentro de algumas regras - entre elas, avaliação periódica.

"Apesar de ser um tema envolto em preconceito, que ainda recebe muitas críticas, as mudanças estão começando e mostram que existem outras maneiras de educar as crianças que não seja na escola", diz Maria.

Para o pedagogo Fábio Stopa Schebella, diretor pedagógico da Associação Nacional de Ensino Domiciliar, o preconceito contra o método é falta de informação. Ele, que já deu aulas em escolas regulares, hoje presta consultoria pedagógica para algumas famílias que ensinam os filhos em casa.

"Há uma crença equivocada de que as crianças que são educadas em casa não se socializam ou não aprendem direito. E isso é um erro. Elas têm rendimento até melhor, tanto na parte intelectual quanto social", afirma.

Equívoco. Quem tira os filhos da escola lhes rouba a oportunidade de se desenvolver integralmente, diz a professora Silvia Colello, da Faculdade de Educação da USP. "Nem a baixa qualidade e a falta de segurança das escolas justificam uma opção radical como essa. Esse tipo de ensino pode preparar a pessoa para o trabalho, mas não para o mundo."

Além disso, segundo Silvia, há um problema curricular. Em casa, muitos pais optam por privilegiar os temas de interesse do filho em detrimento de outras disciplinas. "É interessante que a família esteja atenta para captar os interesses e aptidões, mas cabe aos pais abrir perspectivas para novos interesses. Como é que o adolescente diz que não gosta de física, se ele nunca estudou a disciplina?"

O argumento de que é direito dos pais decidir o modelo mais apropriado de ensino é rebatido pelos educadores contrários à educação domiciliar: o direito da criança de frequentar a escola é que deve prevalecer.

A aceitação dos filhos a esse modelo de ensino, argumenta a pedagoga, tem mais relação com a falta de opção do que com a satisfação. "A maioria das crianças ou nunca foi à escola ou dela foi tirada muito cedo. Não têm parâmetros para comparar porque não conheceram o lado de cá."

Leis brasileiras não permitem ensino em casa

A legislação brasileira em vigor determina que os pais ou responsáveis matriculem as crianças na rede regular de ensino - o que torna ilegal, portanto, a prática do ensino domiciliar.

O artigo 6 da lei 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases) diz que "é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos 6 anos de idade, no ensino fundamental". Já o artigo 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que os pais ou o responsável têm a obrigação de matricular os filhos ou pupilos na rede regular de ensino.

O Código Penal, em seu artigo 246, diz que é crime de abandono intelectual "deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar".

As famílias que defendem a educação fora da escola se baseiam no artigo 26.3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, um tratado internacional ratificado pelo Brasil, que diz "que os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos".

O Ministério da Educação informou, por meio de sua assessoria, que não se manifesta em relação ao tema, pois se trata de uma questão jurídica/legal.

Permissão. Embora a legislação não permita a prática, há um projeto de lei do deputado Lincoln Portela (PR-MG) em tramitação na Câmara dos Deputados pedindo a regulamentação da educação básica domiciliar. O ensino deve ser realizada pelos pais, mas com supervisão e avaliação periódica.

Estadão

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