quinta-feira, 24 de junho de 2010

Arte fora do esquadro


Vasculhando as pinturas feitas na oficina de criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, na Capital, as organizadoras do acervo depararam com uma imagem assinada pelo morador Paulo Josué. É um sujeito com uma enigmática frase: “Eu sou você”.
Não houve dúvida. Foi o título escolhido para a exposição que será inaugurada hoje, com obras de quatro frequentadores da oficina, além de intervenções criadas por 10 artistas convidados.
O evento é uma parceria da instituição com o Museu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). As curadoras da mostra chegaram a cogitar utilizar o espaço do museu, mas decidiram, por fim, montar no próprio Hospital Psiquiátrico, mais especificamente no pavilhão onde os frequentadores realizam seus trabalhos.
– No museu, a exposição poderia ficar “artificial”. Queremos propor uma integração, na medida do possível – explica Blanca Brites, professora do Instituto de Artes da UFRGS.
Em 2001, ela foi convidada por Tania Galli Fonseca, professora de Psicologia da mesma universidade, para um trabalho conjunto de pesquisa no acervo criado pelos moradores do local. Bolsistas das duas áreas – artes e psicologia social – têm trabalhado na organização, catalogação e digitalização dos cerca de 100 mil trabalhos. Coisa de louco? Nada disso.
– Queremos visualizar uma linguagem possível em pessoas consideradas impotentes ou incapazes – afirma Tania.
A “força expressiva”, como as curadoras dizem, foi o principal critério de escolha dos nomes que figuram na mostra. Dos quatro, dois já morreram: Frontino Vieira, em 1993, e Cenilda Ribeiro, em 1999. O assunto é apaixonante, impossível não se envolver. O repórter pergunta se pode conversar com os dois que ainda moram no hospital. As curadoras dizem que é difícil, mas que pode tentar. Já havia entrevistado, em outras ocasiões, gente das artes que se diz – com uma ponta de irreverência – fora da casinha. Mas seria a primeira vez que sentaria em frente a artistas que os outros julgam loucos.

Uma poética diferente
Blanca Brites, uma das curadoras da exposição, aponta orgulhosa para as pinturas de Luiz Guides – o “Seu Luiz” – dispostas lado a lado no chão de uma sala:
– Viu o que a gente quis dizer com “força expressiva”?
Ao redor, bolsistas de Artes e Psicologia da UFRGS organizam o acervo da oficina de criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Estudantes de História da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) completam a equipe. Ali perto, Tania Galli Fonseca, a outra curadora, puxa de uma pilha um trabalho de Natália Leite, que também terá sua produção representada na mostra. As obras dos frequentadores da oficina são feitas com os materiais mais básicos – tinta têmpera, giz, lápis de cor e papel, como as crianças nas aulas de educação artística no colégio. Mas o resultado é, muitas vezes, surpreendente.
Provas disso são as 80 pinturas do acervo (além de bordados assinados por Natália) da exposição Eu Sou Você, que fica em cartaz até o dia 20 de agosto no hospital. Não é a primeira vez que a produção dos moradores é levada ao público. Em 2003, o Margs recebeu uma mostra de Luiz Guides com curadoria de Blanca. Mas quando é o Hospital Psiquiátrico que recebe o público, como agora, a arte toma um significado ainda mais especial.
– Nem todos os trabalhos produzidos aqui são ótimos ou esplendorosos. Mas sobretudo os quatro pacientes – ou artistas, como gosto de chamar – cuja produção está na mostra se sustentam frente a um olhar crítico. Não há condescendência – afirma Blanca.
Em seus 126 anos de história, o hospital chegou a ter 5 mil moradores. Hoje abriga cerca de 300. Com as mudanças no protocolo do tratamento psiquiátrico, ninguém mais é interditado, como era praxe antigamente. Os moradores compõem a minoria dos pacientes. A maior parte passa por lá para atendimentos pontuais – durante uma crise, por exemplo – e depois volta para casa. O título da exposição, Eu Sou Você, reflete um momento em que é preciso se desarmar de estigmas.
– Não há como negar que eles são diferentes – pondera Tania. – Mas preferimos dizer que existem pessoas diagnosticadas e outras que ainda não foram, como nós – completa, espirituosa.
Como a mostra está instalada no espaço da oficina de criatividade, as atividades foram temporariamente deslocadas para outra sala no mesmo pavilhão. Seu Luiz, que nasceu em 1922 e teve sua primeira internação em 1950, frequenta a oficina há 20 anos, quando foi criada. Costumava ser um dos mais assíduos – e talentosos. Agora, tem cada vez mais dificuldade de locomoção e visão. Sentado em um banco em um dos prédios do hospital, não responde às perguntas da reportagem. Mal toma conhecimento.
Situação diferente é a de Natália, plenamente ativa aos 67 anos. Ao lado dos colegas da oficina de criatividade, ela está concentrada, pincel em uma das mãos e a outra segurando o papel. O repórter senta ao lado e pergunta o que ela está pintando. Logo se delineia uma casa em meio a duas figuras humanas. Como quem devolve a questão, ela se dirige às pessoas em volta:
– Quem é que mora nessa casa aqui?
Então, Natália pede a uma das funcionárias que coloque para secar. E pede um novo papel, em que pinta uma flor. É um de seus temas preferidos. Como os artistas profissionais, estes talentos intuitivos têm, à sua maneira, poéticas particulares.

Artistas convidados criam intervenções
A exposição Eu Sou Você é dividida em três momentos. A primeira sala é dedicada a um histórico do Hospital Psiquiátrico São Pedro. No salão principal, estão as obras de Luiz Guedes, Frontino Vieira, Natália Leite e Cenilda Ribeiro, moradores do local. Nos dois espaços externos do pavilhão – na frente e atrás do prédio – haverá intervenções de 10 artistas convidados. Leandro Selister é um deles.
Além de contribuir com uma intervenção, envolveu-se com o projeto como um todo. Criou o site http://www.eusouvoce.com.br/ , programado para entrar no ar hoje, com reproduções das obras da exposição (o catálogo impresso será lançado em agosto).
– Os trabalhos deles conservam uma espontaneidade, uma pureza que nós perdemos com o tempo. Atualmente, a arte está mais voltada para o umbigo dos artistas do que para a expressão – avalia Selister.
Também são artistas convidados Adriana Daccache, Cylene Dallegrave, Marcos Sari, Mayra Martins Redin, Paola Zordan, Rodrigo Nunez, Luis Flávio Trampo, Sérgio Dório e Vitor Butkus de Aguiar. Paralelamente à mostra, será realizado, de amanhã a quinta, na Sala 2 do Salão de Atos da UFRGS, o seminário Vidas do Fora – Habitantes do Silêncio. As inscrições estão esgotadas. Informações sobre o livro homônimo podem ser obtidas no site www.ufrgs.br/corpoarteclinica.

Terapia pela arte
A oficina de criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro foi inspirada no trabalho da psiquiatra Nise da Silveira (1905 – 1999). Alagoana radicada no Rio, foi pioneira no país na utilização da arte como alternativa às terapias agressivas em voga até a primeira metade do século 20. Em 1952, ela criou na capital carioca o Museu de Imagens do Inconsciente, referência no tema. Tanto que o nome oficial do espaço para a criatividade no hospital gaúcho é Núcleo de Atividades Expressivas Nise da Silveira. As atividades da oficina tiveram início há 20 anos e ocorrem todas as manhãs. Psicólogas, pesquisadores e voluntários que trabalham no local não direcionam de qualquer forma a produção – nem quanto ao material, nem quanto à técnica. A expressão é livre. Os trabalhos são guardados para serem posteriormente catalogados.
– É um lugar para dar vazão ao mundo interno. A linguagem oral é mais difícil para os pacientes. Assim temos acesso ao que eles querem expressar – explica Barbara Neubarth, coordenadora do acervo da oficina.
Ela mesma se curvou à sedução da arte. Formada em Psicologia com doutorado em Educação, ingressou este ano na graduação em Artes Visuais na UFRGS. A oficina não é um meio, mas um fim em si. Giselle Sanches, uma das psicólogas que trabalham na oficina, esclarece:
– Não nos preocupamos em interpretar os trabalhos. A atividade é terapêutica independentemente disso.
Uma das palestrantes do seminário que ocorre paralelamente à exposição, a artista Elida Tessler compara a forma de expressão dos pacientes com o trabalho do dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett (1906 – 1989), especialmente o livro O Inominável, em que ele radicaliza o experimento com a linguagem.
– Isso não desqualifica esses trabalhos. Muito pelo contrário, os qualifica. São formas de dizer algo de outra maneira – argumenta Elida


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