quinta-feira, 5 de maio de 2011

Abusados podem se tornar abusadores?


Nem todo mundo que é roubado se torna necessariamente um ladrão. Ou toda pessoa que é agredida se torna um agressor violento, por exemplo. Nesses dois casos, o que leva uma pessoa a cometer esse tipo de violência é conjunto de fatores sociais, culturais ou neurais, que variam de acordo com cada caso.
“Cada ser humano internaliza suas experiências de vida de maneira diferente. Não existem indícios concretos de que a criança que foi abusada possa vir a se tornar um abusador. Isso vai depender muito de como cada pessoa individualmente vai lidar com essas questões” explicou o psicólogo Gutemberg Almeida. Por isso, a recuperação do pequeno depende da resposta que ela dará ao incidente.
Para a professora de Serviços Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Maria Socorro de Sousa, não existe relação da criança que foi abusada vir a se tornar um abusador no futuro. “Isso é uma questão que envolve vários outros fatores. Ainda existe uma cultural patriarcal. A maioria dos abusadores são pais ou padrastos. Mas isso também não quer dizer que todo pai ou padrasto é um abusador. Não podemos generalizar”, comentou.

Não existe perfil

Estudos do Ministério da Justiça revelam que 95,7% dos abusadores são homens. Além disso, as meninas são as principais vitimas de abuso sexual. “Se essa lógica fosse certa, as mulheres deveriam ser as principais abusadoras”, completa a professora.
Outro ponto importante ressaltado pelos especialistas é que não existe um perfil dos abusadores. “A única coisa que se pode afirmar é que a criança que foi vítima de abuso sexual não vai ter o seu desenvolvimento sexual saudável”, ressaltou o coordenador de programas do Instituto Childhood Brasil, Itamar Gonçalves.
“Não existe uma característica que diga o abusador é assim e assim. São cidadãos normais, que vão a fábrica, ao escritório, às compras, ao cinema, etc. Podem ser médicos, padres, advogados. Estão em todas as classes sociais.”

Estigmatização é erro

A estigmatização é outra coisa que pode ser preocupante. Relacionar o abuso sexual com pobreza é facilmente conectado no Brasil. Entretanto, tanto pedófilos quanto vitimas de violência sexual podem ser encontrados em todas as classes sociais. “É comum associar violência sexual a fatores isolados. Mas é uma série de acontecimentos que contribuem para alguém vir a cometer esse tipo de violência. Tem muitos mitos acerca desse assunto”, explicou Gutemberg.
“Eles são difíceis de identificar porque não existe um perfil único. Não tem como delimitar essas pessoas. Algumas características internas existem, como o relacionamento que ele tem com a criança. Os pequenos tem uma relação de confiança e afetividade com o abusador. Mas quando se vai pra questões externas, não existe características únicas. Por isso é difícil identificar esse tipo de pessoa”, completou Itamar.

Trauma pós-violência

Depois de ser abusada, elas contam a história várias vezes: primeiro para os pais ou para o profissional que descobriu a violência, depois para o conselho tutelar, o delegado, o psicólogo, o médico que faz o exame de corpo de delito e finalmente reconta perante um juiz, durante o processo judicial. A “revitimização”, como os especialistas chamam esse processo, pode ser tão traumatizante quanto a violência em si.
“A criança passa a vivenciar os danos que sofreu porque ela está relembrando e relatando tudo o que passou ao ser abusada sexualmente sem o devido tratamento. Isso faz com que ela se torne vitima novamente, mesmo só relatando os fatos”, explicou o psicólogo Gutemberg Almeida. “A principal conseqüência é que pode se aumentar mais as conseqüências do trauma na criança, dependendo do tipo de abordagem”, completou.
A criança que foi vitima de abuso ou exploração sexual chega a recontar sua história mais de três vezes. E dependendo do andamento do processo judicial contra o agressor, o último relato pode ocorrer anos depois do abuso ter ocorrido, forçando a criança a relembrar algo traumático e doloroso.

Processo mal feito pode aumentar o trauma

Para o advogado Renato Roseno, o processo de escutar o depoimento da criança tem problemas sérios. “O procedimento é mal feito e isso também causa violência e aprofunda o trauma. A criança tem que passar por muitos locais e o sistema inteiro é falho”, completou.
Um problema muito sério é que o depoimento da criança é relatado nas mesmas condições de quem recebe um depoimento de um adulto. “Geralmente, elas são ouvidas como qualquer adulto, às vezes, na frente do abusador ou da mãe que foi omissa. E isso é uma questão complicadíssima para a criança”, explicou a psicóloga e professora da Universidade Estácio de Sá (RJ), Beatrice Marinho.
“Muitas vezes não se leva em consideração as necessidades da criança. Não se faz um atendimento cuidadoso ou a longo prazo. A criança é apenas uma fonte da informação e não é como um sujeito de direito”, comentou Renato. Para o advogado, não basta apenas responsabilizar o agressor. “A rede de atendimento tem que restaurar a dignidade da vítima, fortalecê-la. Senão traumatiza a criança e ela desiste de dar o depoimento”, completa.

Formas de evitar a revitimização

Existem algumas saídas para evitar que o depoimento da criança a revitimize. “Ter um profissional especifico da psicologia ou de qualquer outra área que mexa com esse tipo tratamento é uma solução”, comentou Gutemberg.
“Eu acredito que é necessário repensar se todas as vezes que uma criança sofre violência sexual é necessária a presença dela no tribunal”, disse Renato. “Os laudos sociais, médicos e, psicológicos podem evitar que seja necessário que os pequenos tenham que ir ao tribunal”, completou.
Fazer um relatório único com o depoimento da criança, para que não se precise mais relatar o abuso é uma das saídas. Outro ponto que precisa ser pensado é a “humanização” de todo o sistema de atendimento. “É importante lembrar que o depoimento da criança tem que ser dada de forma humanizada, levando em conta principalmente ela, a vítima. E isso vale pra todo processo”, finalizou Renato.

Depoimento sem dano

Um dos projetos que visa minimizar os traumas causados em crianças e adolescentes que são levados a relatar os casos de abuso sofrido é o projeto “Depoimento sem Dano”. A metodologia da ação consiste em preparar uma sala especial, isolada e decorada com temas infantis, onde a criança, por intermédio de um psicólogo ou assistente social, daria o seu depoimento, que seria todo filmado. O profissional que estivesse conversando com a criança estaria com um ponto eletrônico ouvindo as perguntas solicitadas por um juiz que assistiria ao depoimento pelo vídeo do lado de fora da sala.
“Eu sou juiz há 22 anos e desde a primeira semana notei que essa tarefa de ouvir crianças no sistema de justiça muitas e muitas vezes era inapropriado: o local onde elas falam é o mesmo onde os adultos prestam depoimentos, o ambiente é formal, não existia uma preparação nem uma capacitação dos profissionais”, contou o juiz e criador do projeto, Daltoé Cesar. “O processo de ficar recontando causava traumas na criança a ponto dela não mais contar o ocorrido e a pessoa que seria responsabilizada não era”, completou.
Implantado inicialmente na da 2ª Vara de Infância e Juventude de Porto Alegre, atualmente o projeto é aplicado em 26 comarcas do Estado, além de vários outros locais pelo Brasil. Um dos principais objetivos do projeto é diminuir o número de vezes que a criança precise relatar o abuso. Para isso, é criado um fluxo municipal onde a criança daria seu depoimento uma única vez e quem precisasse escutar depois, assistira apenas o vídeo.
“O fato de falar sobre o mesmo fato várias vezes, relembrando, não é um processo curativo. Ela esta relatando para que pessoas tomem decisões com base nesse relato. Com esse fluxo, ela não precisaria estar relatando várias vezes”, completa.
O juiz ainda lembrou a dificuldade de se produzir provas para responsabilizar o agressor. “Não da pra comprovar por exames médicos. O relato da vitima é muito importante para punir o agressor.”

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