sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Na "cozinha do inferno", haitianos comem o que o mundo rejeita

Haitianos procuram alimentos, a maioria podre, acumulados em meio a roupas doadas aos desabrigados
Foto: Laryssa Borges/Terra

Rua dos Milagres, 20h em Porto Príncipe. Um comboio das Nações Unidas patrulha o bairro de Bel-Air, o mais afetado pelo terremoto que matou cerca de 230 mil haitianos em 2010. Nas ruas desertas, apenas os faróis dos caminhões militares iluminam poucos rostos - todos acuados. Em um canto, mulheres preparam o cardápio da noite: carcaça de galinha ao molho de mostarda.
A poucas quadras dali, a expressão "cozinha do inferno" é insuficiente para descrever o centro de distribuição de alimentos da região - a maior parte, podres. Roupas sujas e doadas disputam lugar com pilhas de alfaces estragadas. As vísceras de cabras, porcos e aves, destrinchados em praça pública, formam enormes fogueiras. Qualquer noção de saneamento básico é absolutamente ignorada. O odor da miscelânea ofertada pelos "chefs" inebria os olhos e nariz de forasteiros. Os haitianos barganham o alimento que o restante do mundo rejeita.
No bairro de Bel-Air, onde a maior quantidade dos mortos pelo terremoto ficou por semanas soterrada, palavras de ordem são pichadas nas redondezas dos muros do Palácio Nacional, atual sede - semi destruída - do governo René Préval. Parte da população é hostil ao olhar dos "turistas da miséria" - fotografando as mazelas alheias - a Préval, classificado como "ladrão" das doações da comunidade internacional aos haitianos, e à própria Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti).
Meia dúzia de banheiros químicos são amontoados em frente a barracas de desalojados - estas apenas um dos 123 acampamentos de desabrigados da capital haitiana. Uma jovem, em meio à lama, tenta equilibrar a vela nas mãos para ir ao toilette alagado e malcheiroso. Desinibido, um rapaz urina diante da população.
Bel-Air, 8h do dia seguinte. O mote "ousar ainda é o melhor jeito de ser bem sucedido" permanece marcado em spray nas redondezas do Palácio Nacional do Haiti. O comércio, desorganizado, tenta dar vazão a rádios, comprimidos, pães e o quê mais puder ser juntado pelos aspirantes a vendedores.
Carros seguem abandonados. Os escombros - 60 milhões de toneladas de entulho foram consequência do terremoto - entopem ruas, bueiros e canais que um dia podem ter transportado água fresca para a população do país mais pobre das Américas.
Em menos de três meses mais de 3,3 mil haitianos morreram vítimas da cólera. De todos os micro avanços ofertados ao Haiti desde o massacre provocado pelo terremoto, o saneamento básico é o maior entrave. De Bel-Air, símbolo da destruição dos tremores de terra, só resta o nome.
Laryssa Borges


Notícias Terra

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