sábado, 27 de novembro de 2010

Abuso Sexual: vergonha e dificuldade na hora de incriminar o agressor sexual

Felícia Balcon (nome fictício) estava deitada na cama, brincando com seu filho Lucas (nome fictício), de três anos. Quando de repente, ele pega um cinto que estava no chão e vai pra cima dela, imitando uma voz grossa masculina: “’Fica quietinho senão vou te dar uma surra e se você falar alguma coisa, vou machucar sua mãe e sua avó”. O garotinho ainda acrescentou: “Homem é com mulher senão vão rir de você. Mulher embaixo e homem em cima. Fica quietinho que eu vou colocar meu pipi no seu bumbum”’.
Mesmo estando bem mais forte, depois de três anos ajudada pela terapia, a mãe ainda chora várias vezes emocionada ao lembrar-se da cena tão chocante. Naquele dia teve de encarar a dura realidade de que o filho, além de ser abusado sexualmente pelo próprio pai, sofria ameaças:
Qual é a maior dificuldade enfrentada por uma mãe quando descobre que o/a filho(a) foi vítima de abuso sexual dentro da própria família e é ameaçado?
A gente perde o chão e enfrenta muitas batalhas. As pessoas não sabem o que fazer, nem por onde começar, porque não se fala muito sobre isso. Primeiro, a gente não quer acreditar que tenha realmente acontecido, que alguém seja capaz de tal “’monstruosidade”. Depois, vem a vergonha de expor o caso. Quando eu comecei a desconfiar, procurei na internet e li sobre algumas reações que as crianças apresentam quando são vítimas de abuso, mas a maioria dos casos era com crianças maiores de sete anos. Não achei nada para bebês e crianças muito pequenas. Meu filho tinha apenas três anos.
Deveria haver um serviço que mostrasse informações mais diretas para as mães e familiares de como agir nestes casos, encorajando as pessoas a buscarem ajuda, com todos os locais que devem ser procurados e um passo a passo, porque nesta hora a gente fica perdida e é preciso que alguém nos fale o que fazer.
A escola percebeu alguma mudança de comportamento do seu filho e de alguma forma te ajudou na denúncia?
A professora contou que ele bateu em um coleguinha, comportamento totalmente oposto ao que ele sempre apresentou e que, outro dia, reagiu agressivamente quando ela elogiou um casaco novo que o pai tinha dado para ele, dizendo: “Quero que ele morra!”. Mas, quando precisei de testemunhas, a diretora da escola deu um passo atrás e não queria testemunhar de jeito nenhum. Eu implorei para a professora, mas por pressão da diretoria, ela também não quis. Só foram mesmo quando a delegacia entrou em contato dizendo que elas eram obrigadas a entrar no caso, mas contaram o mínimo possível para não se envolver.
Qual foi o primeiro local que você buscou informação e como foi comunicar o abuso?
Procurei a Vara da Infância, por recomendação da minha irmã, onde me disseram que se eu suspeitava de algo deveria fazer um boletim de ocorrência na delegacia, mas esta é uma decisão muito difícil. Voltei lá alguns dias depois, para falar com a mesma assistente social, que ficou indignada porque eu ainda não tinha denunciado e me mandou pegar meu filho na escola e procurar a polícia. Na delegacia, além de ficar oito horas para conseguir ser atendida, eu senti uma reação hostil, do delegado duvidando de mim. Ouvi algo como: “Se você estiver inventando, ele pode entrar com ação e pedir muito dinheiro”. Respondi que estava fazendo aquilo com base no que tinha escutado do meu próprio filho, que era para defendê-lo e também outras crianças. Também foi muito estranho ouvir as perguntas que fizeram para ele, como se fossem para descobrir se eu o havia induzido a inventar uma história. Será que não enxergam que não tenho nada a ganhar inventando uma história, e que eu adoraria que meu filho tivesse um bom pai?
E como foi o atendimento dos profissionais de saúde?
Fui encaminhada ao Hospital Pérola Byington, que apesar de ser referência em atendimento a casos de violência sexual em São Paulo, é muito precário e não há pediatras lá, então meu filho foi atendido por uma ginecologista. Fizemos também terapia com boas profissionais, mas infelizmente o laudo delas relatando que tudo levava a crer que meu filho tinha sido abusado não teve validade no processo. O serviço deveria ser interligado, porque é a avaliação de um profissional do Estado e deveria valer como prova processual. O exame de corpo delito acabou dando inconclusivo, porque já havia se passado muitos dias do ocorrido quando fomos fazê-lo.
Como o abuso afetou toda a família?
Eu fiquei transtornada e minha família completamente abalada. O abuso sexual na classe média alta é mais velado, porque as pessoas querem abafar, não querem se expor. Minha mãe entrou em depressão. Eu passei a ter pesadelos todas as noites, sonhava que o abusador estava pegando meu filho. Sentia muito medo dele. As mães também precisam de tratamento psicológico. Hoje, elas ainda fingem que nada aconteceu e evitam tocar no assunto. Minha avó chegou a falar em algo do tipo perdoar… É muito complicado…
O que você falaria para as mães que estão passando pelo mesmo problema?
Não tenham vergonha! Vão e façam a denúncia! Procurem ajuda! Quando estamos sozinhos é mais difícil. No Hospital, eu tive contato com um grupo de mães que se apoiavam porque os filhos tinham sido abusados pelo professor na mesma escola. Percebi que somos todas iguais, independente da classe social, e passíveis de passar pelos mesmos problemas. Estejam atentas às mudanças de comportamento dos seus filhos, procurem logo ajuda médica e falem abertamente sobre sua suspeita, procurem imediatamente uma delegacia. Não tenham medo!
Você buscou ajuda de um advogado?
Como minha família achava melhor não expor o caso, cometi o erro de não procurar profissionais conhecidos, acabei pegando uma mulher muito ruim “de porta de cadeia”, indicada pelo escrivão. Ela nem apareceu na audiência. Fiquei sozinha com meu filho e minha mãe, com a psicóloga do Pérola Byinton e a professora como testemunhas. O pai (abusador) alegou que eu estava inventando tudo porque tinha ciúmes da nova namorada dele e a juíza acatou. Foi terrível ver a juíza, o promotor e o advogado fazerem perguntas para o meu filho de três anos, como se ele fosse um adulto, ele só olhava para mim assustado e mudo. Aí, o advogado de defesa se aproveitou e disse que somente o fato dele olhar para mim significava que eu o estava induzindo a inventar a história. O próprio Ministério Público pediu a absolvição do criminoso por falta de provas. Eu troquei quatro vezes de advogado. Agora estou com um escritório bom, mas tinha que ter conseguido isso antes. Meu caso foi muito mal conduzido. Ter um bom advogado é imprescindível.
Por que é tão complicado prender o agressor?
É muito mais difícil do que parece. A Justiça só considera crime, quando houve flagrante e não enxerga que está criando uma máfia de criminosos. Pesquisas sérias mostram hoje que todos os piores matadores e agressores que se utilizam de requintes de crueldade, sofreram abuso na infância. Se o ciclo não parar, estarão sendo criados novos abusadores. O maior medo de uma mãe cujo filho sofreu abuso, é que ele vire um agressor no futuro. A gente entra em desespero, não gosto nem de pensar nisso. Há casos em que o abusador é solto e ainda a mãe tem que ficar pagando indenização, ouvi um caso deste na espera do visitário público. Mesmo enfrentando todos estes problemas, inclusive correndo o risco de estar lidando com juízes de caráter duvidoso, ou até mesmo pedófilos, no julgamento, as mães não podem abafar o caso, porque precisamos proteger nossas crianças. Eu hoje luto para que o abusador perca o direito de ver meu filho. Se não persistirmos, a gente não muda esta situação. O Estado não enxerga que ao deixar o abusador em liberdade, mais casos aparecerão e quanto mais casos aparecerem, mais eles terão que se movimentar para transformar esta realidade.
O que tem feito para mudar esta situação?
No desespero, eu cheguei até a mandar uma carta ao Presidente da República e recebi uma resposta dizendo apenas que encaminhariam à área de Direitos Humanos. Hoje, estou cercada de profissionais especializados e luto muito. Sou apenas uma formiguinha, mas, juntos, podemos formar um exército. A cabeça de quem está no Judiciário precisa mudar, porque as mães das vítimas são vistas como loucas e os agressores são protegidos. Os laudos psicológicos precisam ter realmente validade nos processos e defendo que sejam formados juízes e outros profissionais especializados em abuso sexual, que haja um rol de profissionais especializados no assunto. Não quero mais viver este inferno. Espero contribuir por um mundo melhor, mais justo e humano onde as crianças tenham de fato proteção do Estado, que as mães sejam ouvidas e tratadas com respeito e dignidade, e os abusadores sejam punidos e não tenham mais chance de fazer novas vítimas. O pai do meu filho pode agora estar abusando de outras crianças impunemente.




Childhood - Pela proteção da Infância



Foto: Isabel Cruz - Olhares.com

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