domingo, 21 de novembro de 2010

O preconceito oculto


O Brasil prefere o mito da democracia racial e fecha os olhos para a intolerância

São 113 anos sem grilhões, sem as marcas da chibata. Mas em pleno século XXI a sociedade brasileira empurra os negros e seus descendentes – ou seja, 45% da população – para uma realidade muito parecida com a das senzalas. Para camuflar a responsabilidade por ter mantido por três séculos a escravidão e submetido os afro-brasileiros ao trabalho forçado e ao cativeiro, criou-se, respaldada na miscigenação, o mito da democracia racial. Como se vivêssemos num eterno desfile de escola de samba, a igualdade entre brancos, negros, mulatinhos e tantas outras variantes de cor, criadas para não encarar o preconceito, foi pregada como uma realidade capaz de maquiar a exclusão e a intolerância racial no Brasil. Para aqueles que não conseguiam enxergar dentro de casa a desigualdade e a sua profunda dimensão racial, a separação entre o Brasil e a África do Sul do apartheid era de um enorme oceano. Enquanto aqui negros e brancos dividiam o mesmo banco do metrô, na terra de Nelson Mandela insuflavam a segregação com leis abomináveis. Do lado de cá do mapa, lutar contra o apartheid sul-africano se limitava a repudiar o governo branco do continente negro. O regime sucumbiu em 1994, quando Mandela chegou à Presidência. Com o fim da ditadura racial no país africano, ficaram mais claros o racismo, a discriminação e a intolerância em países signatários de acordos de defesa dos direitos humanos. A máscara da hipocrisia começou a cair. O Brasil é um dos mais constrangidos, mas não está só. Em todos os quadrantes do planeta, oprimidos raciais, étnicos, religiosos e sexuais estão pondo a boca no trombone para cobrar atitudes coerentes de quem lutou contra o apartheid, mas mantém no seu quintal desigualdades tão abissais quanto as vividas na África do Sul. A intolerância levou o diplomata brasileiro José Augusto Lindgren, atual cônsul-geral em San Francisco (EUA), a propor à ONU a realização de uma nova discussão sobre o preconceito pós-apartheid. A III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância foi realizada em Durban (África do Sul) entre 31 de agosto e 7 de setembro.

Desigualdade – O país de Lindgren, onde o mito da democracia racial foi nocauteado pelas estatísticas, tem contas a prestar. O mercado de trabalho é uma prova do tamanho da desigualdade: os negros ganham, em média, a metade do salário dos brancos. Os relatos e sugestões do Brasil ao mundo pós-apartheid serão definidos em um encontro nacional na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, entre os dias 6 e 8 de julho. Os organizadores dos dois eventos prevêem que o abismo entre negros e brancos concentrará as atenções tanto em Durban quanto no Rio.
O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), do Ministério do Planejamento, iniciou, em março, uma de suas pesquisas mais ambiciosas. Sob a coordenação do economista Ricardo Henriques, o instituto quer fazer um diagnóstico da desigualdade racial brasileira em todos os seus aspectos. A pesquisa deve ser concluída no fim de 2002. ISTOÉ teve acesso aos primeiros dados. Os resultados mostram que as leis existentes de nada adiantam. Um trabalhador branco ganha, em média, R$ 573 mensais. O negro, R$ 262. Nos dados do Ipea, o branco passa mais tempo na escola (6,3 anos) do que os negros (4,4 anos). Entre adultos de 25 anos, a situação é a mesma: o negro estuda 6,1 anos e o branco 8,4. O Ipea concluiu também que, se os negros tivessem a mesma escolaridade dos brancos, ainda assim seus rendimentos seriam 30% menores, de R$ 407. A diferença é fruto da discriminação no mercado de trabalho e nesse campo não houve avanços no último século.
“Precisamos de ações afirmativas para reduzir essa distância. Uma delas é garantir um tempo maior de permanência na escola para os negros”, afirma Henriques. Ele defende a adoção de cotas para negros no serviço público, nas empresas e nas universidades. O sociólogo Luiz Antônio de Souza, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, ressalta que o Brasil é um dos países mais injustos quando se trata de distribuição de renda. Como a pobreza é muito gritante e, historicamente, foi construída a imagem de que os negros são incompetentes, e por isso pobres, a questão racial foi maquiada. “Sempre se deu mais importância para a questão social, dizendo: ‘Vamos combater a pobreza que a situação racial vai ser resolvida.’ Isso não é verdade. A discriminação não está associada à pobreza. Ela é racial e, no caso dos gays, sexual. Fazer essa ligação é não aceitar o preconceito. No Brasil não se encara a questão racial como um problema”, analisa.
Souza lembra que aqui se construiu a imagem da discriminação benéfica, ou seja: o negro é muito bom para o esporte, o Carnaval, a música. “O tipo de construção ‘tem samba no pé, é bom no futebol’ serve para dizer que ele se presta apenas para a corporalidade, para o sexo. O negro não ascende socialmente em pé de igualdade com o branco. É como se ele só fosse capaz para determinadas áreas”, afirma o sociólogo. Esse tratamento diferenciado é um velho conhecido do ex-jogador e hoje treinador de futebol Cláudio Adão, 45 anos, e de sua mulher, a jornalista Paula Barreto, 42. Cláudio é negro e Paula, filha do cineasta Luiz Carlos Barreto, é branca. Eles estão casados há 23 anos e têm dois filhos. Quando começaram o namoro enfrentaram todo tipo de preconceito. “No começo, quando chegávamos aos lugares, as pessoas ficavam em silêncio. Hoje é mais sutil, mas ainda acontece. Quando um carro pára ao lado do nosso, normalmente as pessoas ficam nos olhando”, diz Paula. Há dois meses, o filho Felipe, 15 anos, que é negro, estava com três amigos brancos e queria entrar em um condomínio de luxo da Barra da Tijuca para ir a uma festinha. O segurança liberou a entrada dos rapazes brancos e Felipe foi barrado. Cláudio Adão também vê discriminação na função de técnico de futebol. “As pessoas acham que o negro só serve para jogar, correr, fazer gols, mas não é capaz de fazer estratégias, pensar”, afirma ele. “Se disputar uma vaga com dois treinadores brancos, serei eu o preterido”, lamenta.

“O governo brasileiro reconhece a existência de discriminação. Apesar da nossa legislação, que avança, mantemos a situação em que a população negra enfrenta muito mais do que a branca pobre a falta de acesso à educação, ao mercado de trabalho, aos salários e a outros indicadores sociais e culturais”, reconhece o embaixador Gilberto Saboya, secretário de Estado de Direitos Humanos e coordenador da conferência brasileira. A maior carência do País, admite o embaixador, é de políticas públicas.
A lentidão das vitórias contra o racismo levou o teólogo Geraldo Rocha a abandonar a batina. Ele estudou em um seminário no Rio Grande do Sul durante 13 anos. “Eu era o único negro e, depois de muita discriminação, fui convidado a me retirar quando comecei a trabalhar com grupos de consciência negra”, lembra. Rocha se mudou para o Rio de Janeiro e continuou estudando teologia na PUC. Segundo ele, dos 12 mil padres no Brasil, apenas 200 são negros. O racismo, explícito ou disfarçado, faz parte de uma intolerância mais abrangente. As igrejas cristãs, por exemplo, não discriminam apenas o negro. “A Igreja é genocida. Suas pregações contra os homossexuais alimentam os grupos fascistas que matam travestis e gays”, analisa o escritor João Silvério Trevisan. Ao contrário do sistema policial intolerante com os homossexuais, o Judiciário tem se mostrado mais sensível. Já reconhece direito à pensão, à herança e à não discriminação. Em Estados como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais a legislação está mais avançada. Segundo o professor de História do Brasil na Universidade da Califórnia, James Green, a melhor proposta seria alterar a Constituição para explicitar a proibição à discriminação por orientação sexual. “ Mas não adiantam leis sem conscientizar a sociedade”, admite Green.

Fora do armário – Emerson Noronha tem 29 anos e é gay assumido. Morando hoje em São Paulo, ele não se reprime. A cidade mineira de Poços de Caldas ficou pequena para ele quando afirmou sua orientação sexual. “Nunca fui desrespeitado, mas ouvia os comentários. A sociedade está mudando, mas o preconceito é o mal da humanidade e atinge o negro, o nordestino, o travesti e até o mauricinho, símbolo da classe média alta bem-comportada”, define Noronha, que trabalha como redator de um site na internet. A atriz Zezeh Barbosa, negra, que está encenando em São Paulo a comédia Eles preferem as louras, concorda que o preconceito não se restringe aos negros e homossexuais. De acordo com ela, as louras, as gordas, as baixinhas e outros tipos também são alvo da intolerância. “Marilyn Monroe sofreu muito por ser linda e loura. Por isso, a tachavam de burra. Eu tive problemas na Escola de Arte Dramática da USP. O Brasil precisa de mais 500 anos para se livrar dos preconceitos”, afirma. A atriz acha que se o negro ou o gay ascender socialmente fica mais fácil driblar o preconceito. Talvez por isso algumas cantoras da MPB, como Cássia Eller, consigam assumir sua homossexualidade sem temer represálias nas ruas. O movimento gay brasileiro vai marcar presença na conferência da ONU, mas sabe que aprovar um tratado internacional considerando crime a discriminação sexual não será possível, uma vez que mais de 70 países consideram o homossexualismo um crime. Mas vai reivindicar políticas públicas efetivas contra a discriminação. Há também a idéia de conceder incentivos fiscais a empresas que contribuírem para minorar um dos efeitos da discriminação: a exclusão dos travestis do mercado de trabalho formal. O maior problema, porém, está nas ruas, onde um homossexual é assassinado a cada dois dias, segundo estimativa do Grupo Gay da Bahia, comandado pelo barulhento antropólogo Luiz Mott. “Nem 10% das investigações sobre essas mortes chegam a uma conclusão”, diz Cláudio Nascimento, presidente do Grupo Arco-Íris e integrante do comitê que organiza a pré-conferência brasileira. Nascimento é negro e homossexual, vítima, portanto, de múltipla discriminação. Foi expulso de casa ao assumir sua homossexualidade aos 18 anos, tentou o suicídio, perdeu seu companheiro com Aids há três anos e hoje faz do ativismo gay uma bandeira de vida. Ele integra o conselho gestor do Disque Defesa Homossexual. A Justiça já não é muito tolerante com os crimes de racismo.
Para o advogado Hédio Silva Júnior, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade, “os juízes julgam principalmente segundo suas convicções pessoais o problema racial no Brasil”. Um levantamento feito entre 3 de julho de 1951, data da Lei Afonso Arinos, e julho de 1996, já com a Lei Caó, incorporada à Constituição, que considera o racismo crime inafiançável que nunca prescreve, revela apenas nove condenações no País por discriminação. Nos últimos cinco anos, as condenações cresceram na área cível, na qual a vítima busca ressarcimento financeiro. De 1993 a 1996, a extinta Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo registrou 250 ocorrências. Cento e vinte resultaram em inquéritos e, destes, só 40 foram transformados em denúncias. Das 40 denúncias, não houve sequer uma condenação. “Como a sociedade considera o problema racial de pequena importância, os responsáveis pela aplicação do Direito são tolerantes e refletem essa concepção, evitando a condenação”, conclui o advogado.

Sidmara Geremias é advogada e negra. Durante uma audiência na cidade paulista de Santo Anastácio, o juiz se dirigiu a ela pensando estar falando com a ré. Ao se identificar, Sidmara teve que responder a uma série de perguntas, normalmente não formuladas por um juiz a um advogado. Passado o episódio, ela contou, sem citar nomes, o caso em uma palestra para universitários, como um exemplo claro de racismo. O juiz soube do fato e entrou com um processo de calúnia contra Sidmara. Ela ganhou do juiz e revidou, processando-o na corregedoria por abuso de autoridade. A OAB-SP resolveu fazer um ato de desagravo à Sidmara. A entidade acionou a seccional de Presidente Prudente, cidade onde ela está registrada, mas os advogados da regional tentaram boicotar o ato para preservar o juiz. Sidmara teme sofrer represálias. “O ato aconteceu, mesmo em condições precárias. Mas fui até o fim”, afirmou.

Milton Santos, O papa da geografia

Juliana Vilas
O geógrafo Milton Santos foi um dos intelectuais brasileiros mais respeitados dentro e fora do Brasil. Foi o único pesquisador fora do mundo anglo-saxão laureado com o prêmio Vautrin Lud, uma espécie de Nobel da geografia, em 1994. Vítima de câncer na próstata, ele faleceu aos 75 anos na madrugada do domingo 24, em São Paulo. Santos não brilhou somente por ter publicado mais de 40 livros no Brasil, Japão e Europa ou por ter colecionado 20 títulos honoris causa de universidades do mundo todo e prêmios internacionais. Em sua trajetória, lançou um olhar inovador e original sobre a realidade brasileira, a exclusão social e a globalização. Além disso, tentava tirar a geografia do isolamento acadêmico, combinado-a com a filosofia, a economia e a sociologia.
Mas a excepcional carreira de Milton Santos foi marcada por dificuldades. Afinal, além de nordestino – nasceu em Brotas de Macaúba, na Bahia –, era descendente de escravos emancipados. Tornou-se um dos grandes pensadores brasileiros do século XX, mesmo enfrentando diversas manifestações racistas ao longo da vida. Ele fundou a Associação dos Estudantes Secundaristas da Bahia. Porém, não se candidatou ao cargo de presidente da entidade. Disseram que, por ser negro, Santos seria incapaz de dialogar com as autoridades. Logo depois, pensou em cursar engenharia, mas desistiu ao saber que na Escola Politécnica havia resistência a alunos negros. Em 1948, formou-se em direito pela Universidade Federal da Bahia e dez anos depois concluiu doutorado em Geografia pela Universidade de Estrasburgo, na França.
As empreitadas de Santos foram além do ambiente acadêmico. Nos anos 60, foi subchefe da Casa Civil no governo Jânio Quadros e presidente da Comissão Estadual de Planejamento Econômico da Bahia. Atuou também como jornalista, no jornal A Tarde. Lecionou na UFBA até ser preso pelo regime militar. Ficou na cadeia por 60 dias e, ao sair, partiu para o Exterior. Deu aulas em universidades da França, Tanzânia, Venezuela, dos EUA, Canadá, e Reino Unido. Voltou ao Brasil em 1977.

Ana Carvalho e Aziz Filho


Isto É Independente

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