quarta-feira, 21 de julho de 2010

G1 mostra como é a vida em comunidade quilombola de São Paulo



Estatuto da Igualdade Racial foi sancionado pelo presidente.
Antropólogo crê que documento facilitará obtenção de recursos.


O Estatuto da Igualdade Racial, sancionado na terça-feira (20) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também aborda a situação das comunidades quilombolas remanescentes no Brasil. O documento prevê melhorias no atendimento à saúde e saneamento básico, título definitivo de propriedade das terras e acesso ao crédito agrícola.
Morador da comunidade quilombola de Poça, fundada no final do século XIX no Vale do Ribeira, em São Paulo, o agricultor Nilzo Tavares da Costa tem orgulho da história de seus antepassados negros. Na área de 1.116 alqueires, vivem 41 famílias formadas por descendentes de escravos e pessoas que saíram de outros quilombos próximos.
Ele conta que alguns dos primeiros moradores eram escravos que precisaram encontrar um lugar para viver quando foram libertados, porém tinham medo de ser aprisionados novamente. Então, procuraram uma região de difícil acesso. “O único caminho que existia era o rio.”
Mesmo hoje, o acesso a Poça não é dos mais fáceis. Para chegar, é preciso percorrer a SP-193 por 18 quilômetros a partir do município de Jacupiranga (SP) e então seguir mais quatro quilômetros por uma estrada de terra. No meio da plantação de banana, as casas simples da comunidade começam a surgir.
Atualmente, quase todos os imóveis já têm energia elétrica e a água é obtida nas nascentes da região. Mas em Poça não há agentes de saúde e, em caso de doença, é preciso buscar socorro em Jacupiranga ou Eldorado (SP). Na comunidade, só há uma escola em que as crianças cursam o primário. Para prosseguir com os estudos, os alunos vão de ônibus para colégios nas cidades próximas.
As famílias sobrevivem exclusivamente do cultivo da banana. Porém, o plantio da fruta acabou promovendo o desmatamento na região. “As famílias foram aumentando e ocupando o espaço com banana. Perdemos o conceito da agricultura de subsistência. As matas foram acabando”, afirma Costa.
Nilzo lamenta a saída dos jovens da comunidade, que migram para grandes cidades, como São Paulo e Curitiba. Mas, apesar de seus problemas, a comunidade luta para preservar as tradições, como destaca o agricultor José Pupo da Rosa, de 72 anos. “Eu nasci, cresci e, se Deus quiser, vou me acabar aqui. É tão bom a gente não ser mandado por ninguém. Aqui, tenho meus filhos ao meu redor. Hoje me sinto feliz”, diz.
Reconhecimento
O agricultor Gilmar dos Santos Marinho, de 40 anos, explica que o reconhecimento do quilombo em 2008 pela Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) trouxe melhorias. “Conseguimos calcário para corrigir o bananal e pedimos aposentadoria para alguns moradores.”
A grande expectativa é que o Estatuto da Igualdade Racial facilite o processo para a comunidade obter o título das terras. “Queremos participar de um programa de habitação, mas o governo não investe sem a posse definitiva. Esbarramos nessa questão de documentação para conseguirmos mais apoio”, diz.

Facilidades
O antropólogo José Otávio Catafesto de Souza, do Laboratório de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acredita que o documento pode consolidar o acesso à terra como padrão para os remanescentes de quilombos e facilitar a obtenção de recursos que passam a ser destinados a essa população.
“Antes, como qualquer outro cidadão, essas pessoas tinham acesso a linhas normais de financiamento e a programas que o governo desenvolveu para pessoas de baixa renda. Agora, as demandas de uma perspectiva do coletivo quilombola serão atendidas. Os membros dessas comunidades poderão solicitar recursos através de projetos coletivos”, afirma.
Souza explica que apesar da obtenção do título da terra, as propriedades não podem ser comercializadas e são coletivas. Caberá ao grupo dividir os lotes de ocupação e determinar as áreas de uso comum e familiar.
Pelo estatuto, os quilombolas serão incentivados a investir na produção sustentável. “É resgatar as formas tradicionais de sustento e fazê-las, agora, assumir uma escala externa de comercialização. Isso garante uma forma de sustento e reforça a identidade de cada grupo”, diz.
O antropólogo usa a banana e todos os produtos que o cultivo pode originar como exemplo de sustentabilidade. “Além da fruta, a fibra da bananeira pode se converter artesanato, como tapetes, tecidos e peças de decoração. Há também os subprodutos da banana, como farinha de banana, banana seca, bananada. Cada produto pode ter um rótulo que identifique a comunidade e agregue valor a essa mercadoria”, diz.
O estatuto também garante a preservação dos costumes dos quilombolas. “É o reconhecimento formal dessas manifestações culturais pelo estado. O dispositivo surge para compensar a repressão das manifestações religiosas tradicionais dos grupos negros. O estado brasileiro tem a obrigação de reverter essa situação, que provocou sequelas em muitas comunidades”, afirma.
Já o geógrafo Rafael Sanzio Araujo dos Anjos, professor da Universidade de Brasília (UNB) e diretor do Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica (CIGA), defende que o mais importante seria organizar as informações sobre essas comunidades quilombolas através de um Censo. Os remanescentes de quilombos não serão identificados no Censo 2010.
“Se o governo não possui dados atualizados para organizar essas informações, todas as demandas que estão em volta dessa questão ficam frágeis, sem consistência, e com dados conflitantes. Se não foi determinado com clareza quais ações serão realizadas, qual o orçamento garantido e como as melhorias serão implantadas, as ações acabam ficando perdidas”, afirma Anjos.
Para o professor, o estatuto é o resultado de um processo em que a informação e o conhecimento sobre as comunidades não foram explorados. Os moradores dessas comunidades possuem elementos culturais que ainda não são totalmente conhecidos.
“O estatuto teria que ser mais amplo, soberano, dar tranquilidade a algumas questões. É um momento de refletir o que foi aprovado e o que poderia ter sido aprovado. Talvez tenhamos perdido a chance de iniciarmos esse milênio como um país um pouco mais avançado nessa questão”, diz.


G1

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