Um balanço inédito do programa federal de regularização das terras da região mostra como ele precisa avançar para acabar com o caos fundiário
O agricultor Claudio Cunha Campos soube da boa-nova pelo rádio. Com o ouvido grudado no aparelho, escutou atento o primeiro de uma sequência de nomes. Do lado de lá, o radialista anunciava aos felizardos moradores de Concórdia do Pará, uma cidadezinha a 150 quilômetros de Belém, que em breve seriam contemplados pelo ambicioso programa do governo federal cuja pretensão é finalmente dar um fim ao caos fundiário na Amazônia.
Batizado de Terra Legal, o programa tem como meta dar, até 2014, o título definitivo a posseiros de 49 milhões de hectares de terras públicas federais. É o equivalente a 9% da Amazônia – ou duas vezes o Estado de São Paulo. Se bem conduzido, o Terra Legal poderá estimular uma economia não predatória na região e atrair empresas que não querem se arriscar a entrar em áreas em disputa. “É a única forma de conseguir um novo modelo de progresso para a Amazônia”, afirma Carlos Guedes, secretário do Terra Legal.
Aos 58 anos e com a saúde frágil, Campos vive com a mulher e alguns dos sete filhos em uma propriedade de 17 hectares em Concórdia do Pará. Sem aposentadoria nem estudo, vende açaí, cupuaçu e um pouco de farinha de mandioca que brota da terra que suou para comprar. Embora viva no imóvel desde o começo dos anos 90, nunca conseguiu provar ser dono da propriedade. Naquela noite quente de setembro, enquanto ouvia o programa A voz do Brasil, o som do rádio trouxe a notícia que Campos aguardava havia 18 anos. Teria, enfim, um documento atestando que pagou para estar ali. No dia seguinte, ele e a mulher vestiram roupas de festa e, juntos, foram à Câmara de Vereadores receber o papel. “Agora ninguém mais pode dizer que a terra não é nossa”, afirma ele.
De longe da Amazônia fica difícil imaginar que mais de 1,5 milhão de pessoas vivem e sobrevivem em terras da União. Elas têm os mais variados perfis. São pequenos agricultores como Campos, que nasceram na região. Ou são migrantes atraídos por ouro, minérios, seringais e riquezas da região. Ou eram integrantes das incursões incitadas pelos governos militares que, nos anos 70, pretendiam levar “homens sem terras para uma terra sem homens”. Com a ocupação desordenada, calcula-se que 53% das terras da Amazônia estejam em situação ilegal. São suficientes para suprir as demandas por desenvolvimento econômico, conservação da biodiversidade, água, manutenção do clima e reforma agrária. Mas o Brasil ainda não demonstrou capacidade satisfatória para administrá-las.
A incompetência é histórica. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), antigo dono da missão, tentou durante mais de três décadas colocar ordem na ocupação irregular, sem sucesso. Em 2009, o governo federal criou o Terra Legal, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). No primeiro ano, o programa, cuja meta é regularizar a situação de 300 mil posseiros em nove Estados da Amazônia (180 mil em terras federais e 120 mil em terras estaduais), teve o mérito de enfrentar um problema histórico. Mas ainda precisa avançar. “Falta controle em vários aspectos”, afirma Daniel Azeredo, procurador do Ministério Público no Pará. “Eles não têm instrumentos para evitar que as áreas tituladas venham de desmatamento ilegal ou conflitos fundiários.”
O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), um dos principais centros de pesquisa da região, fez um estudo inédito para avaliar o Terra Legal. O balanço reconhece avanços, mas aponta falhas. Um dos pontos mais polêmicos é o preço da terra. Segundo a lei, as propriedades com até um módulo fiscal (cerca de 76 hectares na média da Amazônia) devem ser doadas aos posseiros. Acima disso, a recomendação é que sejam vendidas a preços simbólicos.
O valor tem como base o preço mínimo de mercado, com cerca de 80% de desconto. Uma fazenda de 140 hectares em Marabá, no Pará, custa, no mercado, pelo menos R$ 137.500. Pelo Terra Legal, sai por R$ 22.800 – um desconto de 83% (leia o quadro abaixo). “Não podemos só partir do conceito de quanto o produtor pode pagar”, afirma Brenda Brito, pesquisadora do Imazon e uma das autoras do estudo. “Precisamos levar em conta o valor daquela terra. Estamos falando do patrimônio público.” A lógica do programa é outra. O secretário Guedes diz que os valores cobrados estão abaixo da média porque a ideia é regularizar as terras, não vendê-las. “Se estivéssemos leiloando, o preço seria de mercado. Mas queremos reconhecer o direito dessas ocupações”, afirma.
As obrigações de quem recebeu o título da terra também não estão claras. Segundo a lei que instituiu o programa, os contemplados têm o compromisso de não derrubar floresta, além de recompor o que foi desmatado ilegalmente. Mas não existe uma cobrança dessas contrapartidas. “Ninguém me falou nada de reflorestar ou não desmatar mais”, diz Erivan Ferreira Baleixo, de 27 anos, morador da zona rural de Concórdia do Pará, novo proprietário de uma terra de 58 hectares. O título da terra, um documento com as informações da área, traz no verso cláusulas com as obrigações em letras quase ilegíveis. A maioria dos posseiros não sabe ler e mal consegue explicar como vai pagar pelo imóvel. Baleixo afirma que terá de pagar uma taxa por mês pela área regularizada. Não se lembra, porém, quanto é cada parcela nem quando vence a primeira.
O Terra Legal também parece ter subestimado a complexidade da questão fundiária na Amazônia. Quando surgiu, em junho de 2009, sua meta era expedir o primeiro título de terra em, no máximo, 60 dias. O feito só aconteceu em agosto, mais de 400 dias depois de seu lançamento. Por um lado, o descumprimento do cronograma é ruim porque arranha a credibilidade do programa. Por outro lado, porém, ajuda a evitar atropelos no processo, que podem abrir caminho para a grilagem de terras e estimular novos desmatamentos. Ou ainda a impulsionar mais conflitos agrários ao dar o título a posseiros em áreas ocupadas por índios e quilombolas.
Por dispensar visitas em campo nas propriedades com menos de 400 hectares, o programa pode ser ainda alvo de outra armadilha: o fracionamento de terras. Funciona assim. O dono de um grande imóvel em busca da regularização divide suas terras em pequenos pedaços. Coloca cada um deles no nome de uma pessoa diferente, que solicita o título ao governo. O programa deve avaliar os dados do cadastro, medir a área por GPS e emitir o papel. Não tem obrigação, entretanto, de checar a área em campo. Isso abre espaço para falcatruas. É praticamente impossível saber se o aspirante a dono passou a ocupar o imóvel antes da data estipulada pelo Terra Legal, dezembro de 2004. E se de fato tira o sustento daquela propriedade, requisito para ganhar o documento. A visita permitiria ainda identificar se a área está nos limites de terras indígenas ou quilombolas.
O Terra Legal peca ainda por não atacar o problema da regularização das grandes propriedades, que ocupam um terço da Amazônia. O programa abrange só as áreas com menos de 1.500 hectares. O programa prevê o leilão de áreas entre 1.500 hectares e 2.500 hectares. Acima desse teto, as terras devem voltar ao patrimônio público. Cabe ao Congresso definir seus destinos. Não se sabe, porém, como isso vai funcionar. Não houve até agora casos de transferência de terras privadas via Congresso. A falta de clareza cria um problema financeiro aos produtores agrícolas e pecuaristas. Nos últimos anos, o mercado se tornou mais exigente em relação às práticas socioambientais das empresas. Ninguém quer sua marca atrelada ao desmatamento, trabalho escravo ou grilagem de terras. Os investidores estão mais rigorosos, e os bancos já não financiam quem descumpre a lei.
Sem o título, alguns agricultores estão pagando caro para manter produtivas suas terras. É o caso de Vanderlei Ataides, de 41 anos. Ele arrenda fazendas em Paragominas, no interior do Pará, o primeiro município do Brasil a sair da lista dos campeões de desmatamento da Amazônia, criada pelo Ministério do Meio Ambiente para punir quem derruba floresta. Ataides mantém as matas de sua propriedade conforme manda a lei e está em dia com as recomendações ambientais. Apesar de atender às exigências verdes, não pode se cadastrar no Terra Legal porque a propriedade é maior que o limite atendido pelo programa. Por isso, ele e outros produtores dali não conseguem crédito em bancos públicos, com juros mais baixos. “Estou pegando financiamento em empresas a juros três vezes mais altos”, afirma ele. Para os empresários, o Terra Legal ainda não chegou.
O agricultor Claudio Cunha Campos soube da boa-nova pelo rádio. Com o ouvido grudado no aparelho, escutou atento o primeiro de uma sequência de nomes. Do lado de lá, o radialista anunciava aos felizardos moradores de Concórdia do Pará, uma cidadezinha a 150 quilômetros de Belém, que em breve seriam contemplados pelo ambicioso programa do governo federal cuja pretensão é finalmente dar um fim ao caos fundiário na Amazônia.
Batizado de Terra Legal, o programa tem como meta dar, até 2014, o título definitivo a posseiros de 49 milhões de hectares de terras públicas federais. É o equivalente a 9% da Amazônia – ou duas vezes o Estado de São Paulo. Se bem conduzido, o Terra Legal poderá estimular uma economia não predatória na região e atrair empresas que não querem se arriscar a entrar em áreas em disputa. “É a única forma de conseguir um novo modelo de progresso para a Amazônia”, afirma Carlos Guedes, secretário do Terra Legal.
Aos 58 anos e com a saúde frágil, Campos vive com a mulher e alguns dos sete filhos em uma propriedade de 17 hectares em Concórdia do Pará. Sem aposentadoria nem estudo, vende açaí, cupuaçu e um pouco de farinha de mandioca que brota da terra que suou para comprar. Embora viva no imóvel desde o começo dos anos 90, nunca conseguiu provar ser dono da propriedade. Naquela noite quente de setembro, enquanto ouvia o programa A voz do Brasil, o som do rádio trouxe a notícia que Campos aguardava havia 18 anos. Teria, enfim, um documento atestando que pagou para estar ali. No dia seguinte, ele e a mulher vestiram roupas de festa e, juntos, foram à Câmara de Vereadores receber o papel. “Agora ninguém mais pode dizer que a terra não é nossa”, afirma ele.
De longe da Amazônia fica difícil imaginar que mais de 1,5 milhão de pessoas vivem e sobrevivem em terras da União. Elas têm os mais variados perfis. São pequenos agricultores como Campos, que nasceram na região. Ou são migrantes atraídos por ouro, minérios, seringais e riquezas da região. Ou eram integrantes das incursões incitadas pelos governos militares que, nos anos 70, pretendiam levar “homens sem terras para uma terra sem homens”. Com a ocupação desordenada, calcula-se que 53% das terras da Amazônia estejam em situação ilegal. São suficientes para suprir as demandas por desenvolvimento econômico, conservação da biodiversidade, água, manutenção do clima e reforma agrária. Mas o Brasil ainda não demonstrou capacidade satisfatória para administrá-las.
A incompetência é histórica. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), antigo dono da missão, tentou durante mais de três décadas colocar ordem na ocupação irregular, sem sucesso. Em 2009, o governo federal criou o Terra Legal, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). No primeiro ano, o programa, cuja meta é regularizar a situação de 300 mil posseiros em nove Estados da Amazônia (180 mil em terras federais e 120 mil em terras estaduais), teve o mérito de enfrentar um problema histórico. Mas ainda precisa avançar. “Falta controle em vários aspectos”, afirma Daniel Azeredo, procurador do Ministério Público no Pará. “Eles não têm instrumentos para evitar que as áreas tituladas venham de desmatamento ilegal ou conflitos fundiários.”
O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), um dos principais centros de pesquisa da região, fez um estudo inédito para avaliar o Terra Legal. O balanço reconhece avanços, mas aponta falhas. Um dos pontos mais polêmicos é o preço da terra. Segundo a lei, as propriedades com até um módulo fiscal (cerca de 76 hectares na média da Amazônia) devem ser doadas aos posseiros. Acima disso, a recomendação é que sejam vendidas a preços simbólicos.
O valor tem como base o preço mínimo de mercado, com cerca de 80% de desconto. Uma fazenda de 140 hectares em Marabá, no Pará, custa, no mercado, pelo menos R$ 137.500. Pelo Terra Legal, sai por R$ 22.800 – um desconto de 83% (leia o quadro abaixo). “Não podemos só partir do conceito de quanto o produtor pode pagar”, afirma Brenda Brito, pesquisadora do Imazon e uma das autoras do estudo. “Precisamos levar em conta o valor daquela terra. Estamos falando do patrimônio público.” A lógica do programa é outra. O secretário Guedes diz que os valores cobrados estão abaixo da média porque a ideia é regularizar as terras, não vendê-las. “Se estivéssemos leiloando, o preço seria de mercado. Mas queremos reconhecer o direito dessas ocupações”, afirma.
As obrigações de quem recebeu o título da terra também não estão claras. Segundo a lei que instituiu o programa, os contemplados têm o compromisso de não derrubar floresta, além de recompor o que foi desmatado ilegalmente. Mas não existe uma cobrança dessas contrapartidas. “Ninguém me falou nada de reflorestar ou não desmatar mais”, diz Erivan Ferreira Baleixo, de 27 anos, morador da zona rural de Concórdia do Pará, novo proprietário de uma terra de 58 hectares. O título da terra, um documento com as informações da área, traz no verso cláusulas com as obrigações em letras quase ilegíveis. A maioria dos posseiros não sabe ler e mal consegue explicar como vai pagar pelo imóvel. Baleixo afirma que terá de pagar uma taxa por mês pela área regularizada. Não se lembra, porém, quanto é cada parcela nem quando vence a primeira.
O Terra Legal também parece ter subestimado a complexidade da questão fundiária na Amazônia. Quando surgiu, em junho de 2009, sua meta era expedir o primeiro título de terra em, no máximo, 60 dias. O feito só aconteceu em agosto, mais de 400 dias depois de seu lançamento. Por um lado, o descumprimento do cronograma é ruim porque arranha a credibilidade do programa. Por outro lado, porém, ajuda a evitar atropelos no processo, que podem abrir caminho para a grilagem de terras e estimular novos desmatamentos. Ou ainda a impulsionar mais conflitos agrários ao dar o título a posseiros em áreas ocupadas por índios e quilombolas.
Por dispensar visitas em campo nas propriedades com menos de 400 hectares, o programa pode ser ainda alvo de outra armadilha: o fracionamento de terras. Funciona assim. O dono de um grande imóvel em busca da regularização divide suas terras em pequenos pedaços. Coloca cada um deles no nome de uma pessoa diferente, que solicita o título ao governo. O programa deve avaliar os dados do cadastro, medir a área por GPS e emitir o papel. Não tem obrigação, entretanto, de checar a área em campo. Isso abre espaço para falcatruas. É praticamente impossível saber se o aspirante a dono passou a ocupar o imóvel antes da data estipulada pelo Terra Legal, dezembro de 2004. E se de fato tira o sustento daquela propriedade, requisito para ganhar o documento. A visita permitiria ainda identificar se a área está nos limites de terras indígenas ou quilombolas.
O Terra Legal peca ainda por não atacar o problema da regularização das grandes propriedades, que ocupam um terço da Amazônia. O programa abrange só as áreas com menos de 1.500 hectares. O programa prevê o leilão de áreas entre 1.500 hectares e 2.500 hectares. Acima desse teto, as terras devem voltar ao patrimônio público. Cabe ao Congresso definir seus destinos. Não se sabe, porém, como isso vai funcionar. Não houve até agora casos de transferência de terras privadas via Congresso. A falta de clareza cria um problema financeiro aos produtores agrícolas e pecuaristas. Nos últimos anos, o mercado se tornou mais exigente em relação às práticas socioambientais das empresas. Ninguém quer sua marca atrelada ao desmatamento, trabalho escravo ou grilagem de terras. Os investidores estão mais rigorosos, e os bancos já não financiam quem descumpre a lei.
Sem o título, alguns agricultores estão pagando caro para manter produtivas suas terras. É o caso de Vanderlei Ataides, de 41 anos. Ele arrenda fazendas em Paragominas, no interior do Pará, o primeiro município do Brasil a sair da lista dos campeões de desmatamento da Amazônia, criada pelo Ministério do Meio Ambiente para punir quem derruba floresta. Ataides mantém as matas de sua propriedade conforme manda a lei e está em dia com as recomendações ambientais. Apesar de atender às exigências verdes, não pode se cadastrar no Terra Legal porque a propriedade é maior que o limite atendido pelo programa. Por isso, ele e outros produtores dali não conseguem crédito em bancos públicos, com juros mais baixos. “Estou pegando financiamento em empresas a juros três vezes mais altos”, afirma ele. Para os empresários, o Terra Legal ainda não chegou.
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