quinta-feira, 27 de maio de 2010

Crianças dependentes de crack lutam por internação

Corredor da ala infantil do São Pedro lembra escola
Foto: Marcelo Oliveira


Conseguir leito é loteria para a geração de zumbis

No Rio Grande do Sul, onde cerca de 200 mil gaúchos são usuários de crack e não existem estimativas sobre quantos destes têm menos de 12 anos, o único local que disponibiliza, pelo Sus, uma ala para tratar crianças viciadas na pedra é o Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP). Mas são apenas dez leitos. Conseguir um deles é uma difícil loteria, que depende, muitas vezes, da Justiça. Em Montenegro, um retiro que mantém uma unidade para pré-adolescentes e adolescentes já recebeu um menino de dez anos, após um apelo da própria mãe do garoto.
Hoje, na segunda matéria sobre a geração de zumbis que está se formando devido ao crack, o Diário Gaúcho mostra como estes dois locais trabalham para tentar livrar os pequenos usuários da pedra maldita.

- Metade dos leitos para craqueiros
O corredor de paredes brancas, com desenhos a tinta guache, lembra uma escola. A sala de convivência, com cortinas coloridas e brinquedos, um quarto infantil.
A decoração é parte da tentativa do HPSP de alegrar a sombria vida dos pequenos. O São Pedro mantém o Centro Integrado de Atenção Psicossocial (Ciaps) Infantil. No local, que atende a internos entre cinco e 11 anos, pelo menos 50% dos dez leitos são ocupados por vítimas da pedra.

– O número de crianças envolvidas por esta droga vem aumentando nos últimos cinco anos. A maioria tem pais usuários de drogas ou ausentes – constata o psiquiatra Ronaldo Rosa.
Sob os cuidados de enfermeiros e médicos, chamados de tios, as crianças têm atividades como musicoterapia e educação física. O dia mais esperado é a quarta-feira, com um projeto da Ufrgs que oferece aulas de Informática. Há até um blog (http:\\oficinandoemrede.blogspot.com).

No total, o tratamento no HPSP dura três semanas:
– O tempo é curto, mas tentamos descobrir quais são os problemas destes internos.

A Secretaria Estadual da Saúde informou que conta com 617 leitos no Estado para tratamento de drogados. Mas não especifica quantos são para crianças.

- Quero ter uma vida nova"
Aos 15 anos, uma garota do Interior paulista passou pela segunda vez no HPSP. Usuária de drogas desde os dez, ela engravidou aos 12 e doou o bebê para seguir no crack. Percorreu o Brasil na carona de caminhoneiros. Para ter a droga, se prostituía. Agora, está grávida pela segunda vez e voltou para São Paulo, após 15 dias no São Pedro:
– Meu organismo está limpo. Não vou trocar o meu filho novamente pelo crack. Quero ter uma vida nova.

- Números
- A unidade de desintoxicação para adultos tem 30 leitos, todos usados por craqueiros
- A unidade de adolescentes tem dez leitos, em média, 90% são para viciados na pedra
- A ala infantil tem DEZ LEITOS, em média, 50% são para dependentes de crack

- Olhar distante
Dois dias após ser internado no São Pedro, o menino de dez anos, cuja história foi publicada ontem, queria se enturmar. De pouca conversa, mais gesticulava do que falava com um garoto da mesma idade – também usuário de crack – enquanto brincavam. Cabisbaixo, não quis conversa com a enfermeira. Manteve-se calado, e distante.
Na sala de informática, esboçou o primeiro sorriso. Orientado pelos instrutores, preferiu brincar nos jogos.

– Ele chegou arredio, como todos. Mas está voltando a ser criança – afirmou a técnica em Enfermagem Fernanda Veçossi.
"Eles só querem carinho e atenção"
Há três anos lidando diretamente com os internos do HPSP, Fernanda já conhece as técnicas usadas pelos pequenos viciados.
– Os meninos chegam demonstrando malandragem e gostam de afirmar que não precisam de ajuda. Mas bastam as primeiras conversas para que eles voltem a ser apenas crianças – conta.


Fernanda costuma ouvir histórias de abandono, de famílias desgarradas e de agressões:
– Aqui eles têm comida, alguém para ouvi-los e uma rotina que não existe lá fora. Eles só querem carinho e atenção. Afinal, são apenas crianças.

- Crack domina no Recreo
Trabalhando há duas décadas na recuperação de dependentes, Otávio dos Santos Furtado mantém três unidades do Retiro Comunitário de Reabilitação Ocupacional (Recreo), em Montenegro. A dos adolescentes surgiu a partir do crescimento da procura por internação para usuários a partir dos 12 anos.
Porém, Otávio alerta para outra mudança: o aumento da procura por vagas para crianças.
– Na primeira vez que veio um menino de dez anos, precisei colocá-lo com as mulheres. Eu não tinha experiência, mas não podia negar o atendimento – diz Otávio.
Hoje, os 18 internos da unidade jovem são dependentes de crack – o mais novo tem 12 anos. A maioria conheceu a pedra antes de entrar na puberdade. A internação dura nove meses.
– O tratamento das crianças é diferente. É preciso dar amor, carinho e educação. Não termina em nove meses. A sociedade não se deu conta de que, com uma criança, precisa ser diferente – avisa Otávio.

- Por que isso está acontecendo?
Entender como crianças que mal sabem ler ou escrever já estão viciadas é o desafio.
– Famílias desestruturadas, mães e pais também dependentes. Esse é o exemplo que eles têm em casa – aponta a conselheira tutelar da Capital Salete Alminhana.


Para a também conselheira Eliane Aliano, de Viamão, em geral, nesses casos, o primeiro contato com a droga acontece em casa:
– Uma vez presenciei uma cena de um menino que sangrava há dois dias. Em vez de levá-lo ao médico, a família dava pedras para ele fumar.

Outra conselheira ressalta que, com o avanço do crack, o trabalho deles ficou mais perigoso:
– A gente entra na vila para buscar um cliente ou um soldadinho do tráfico – conta, sem revelar o nome por medo.

- Fiquei doido"
O corpo franzino lembra o de um menino de oito anos, mas o morador do Litoral Norte tem 12, um vocabulário repleto de gírias e a experiência de vida de um adulto. Há dois anos, ao ver a mãe consumir drogas após a morte de outro filho, o garoto decidiu “curtir”, como ele define:
– Pensava comigo que se a minha mãe estava nas drogas, também poderia curtir uma vida mais desnaturada.
Ele demora a dizer que já usou crack, mas acaba confessando a primeira vez:
– A mãe esqueceu uma pedra. Então, experimentei. Fiquei doido.
Na visita mais recente à família, o menino convenceu a mãe a se internar. Hoje, ambos estão na Recreo. Porém, o menino deve sair nos próximos dias:
– Não sei se não vou usar de novo. Vou ver.

- "Aprendi o que é sentimento”
Aos nove anos, um dos internos do Recreo conheceu a maconha. Aos 11 anos, serviu como mula para levar 1,5kg da droga de uma cidade a outra. No mesmo ano, descobriu o crack.
Filho de pai alcoólatra, ele levou a família a mudar de cidade na tentativa de livrá-lo das drogas. Foi em vão. Em poucos dias, voltou a usar e roubava para sustentar o vício. Hoje, aos 15 anos, o garoto lembra que parou de estudar aos dez anos.
– Uma vez, fumei crack e tentei ver televisão. Não deu certo. Eu olhava e não entendia nada de tão doidão que eu estava.

- Falta de serviço especializado dificulta
A principal reclamação de quem lida com as crianças é a ineficácia do tratamento. Depois dos 20 dias no hospital, a criança volta para casa e, quase sempre, para o vício.

– Em um dos casos que eu atendo, o menino foi internado três vezes em dois meses – diz Salete.

Segundo a promotora da Infância e Juventude da Capital Noara Lisboa, outra dificuldade aparece após a alta. O ideal seria a criação de Centros de Atenção Psicossocial Infantil.
– O único que temos não atende a viciados. A criação de unidades assim e que prestem atendimento à família é essencial – comenta Noara.
A consequência dessa falta de sequência é avassaladora. Sem acompanhamento, a chance das crianças recaírem é imensa.
– Sem falar no aumento do número de crimes, na superlotação dos abrigos, na evasão escolar, entre outros problemas – enumera a promotora da Infância e Juventude de Viamão, Daniela da Silva.

- A exceção virou regra
Para o chefe do Serviço de Psiquiatria do HPSP, Alceu Correia Filho, mandar o paciente para casa, na chamada internação domiciliar, é uma medida paliativa.
– O tratamento em casa é feito com medicamentos para controlar a impulsividade causada pela fissura – conta.
Segundo o psiquiatra, o médico deve observar se a família tem como manter a criança em casa durante o período e vigiá-la 24 horas por dia.
– O que era para ser a exceção acaba virando regra, pois não temos leitos para todos.

A campanha Crack, Nem Pensar luta pela prevenção e escolheu 20 projetos que atuam com este foco. Saiba como ajudar:
- Em http://www.portalsocial.org.br/, escolha um dos projetos, selecione o valor e clique em “doar agora”.
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- Mais informações: http://www.cracknempensar.com.br/

Zero Hora

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