segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Evanildo Bechara - O mestre das letras


Professor Bechara conta da língua portuguesa, mas não só. Conversa sobre educação, papel do professor e também viagem e futebol

O professor Bechara é o homem das letras. Amante da língua portuguesa, é um dos mais respeitados gramáticos do País. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), é lembrado, pelos mais leigos, por quem já estudou com a famosa gramática da capa azul que leva o seu crivo. Autoridade no País para decidir sobre as pendências da nova ortografia, que tenta unir os países da lusofonia, Evanildo Bechara respeita a língua em suas várias modalidades. Não critica. Só não entende o porquê de usar coffeebreak quando temos “lanche” e “merenda”. Acha esnobismo.
Fala inglês, francês, alemão, espanhol e italiano. Mas nem as funções pomposas nem os longos estudos fazem do professor Bechara um homem sisudo. O pernambucano veio a Fortaleza no fim de novembro. Mostrou-se um homem tranquilo, bem-humorado, contador de causos. Falou de língua portuguesa – e isso era inevitável. Mas não só.
Contou do futebol, do campeonato de natação que ganhou, dos filhos que não seguiram as letras, da profissão de professor, das viagens que quer fazer, por mais que ache que o avião perdeu o glamour.
Com 82 anos de idade, Bechara ainda não confia na internet. Prefere o gosto tátil do livro. Tem mais de 25 mil. Um apartamento só não basta. Às vezes, a mulher não entende por que ele chega da Academia ou da universidade e vai para a biblioteca e não para de ler. “Eu sou da geração do livro”, assina, fã de Machado de Assis. Para o professor, “escrever bem é um dom que você aprimora”. E ele, que já viu tantos, ainda se assusta com os erros. Só espero – verdadeiramente – que eu não tenha cometido nenhum nestas páginas.

O POVO - Por que veio uma nova reforma ortográfica?
Evanildo Bechara - A reforma veio racionalizar e veio também economizar muitos usos ortográficos. O acordo, apesar de seus defeitos, vai prestar e está prestando relevantes serviços, porque os primeiros acordos ortográficos tinham um objetivo puramente educacional, simplificar o modo de escrever. Mas hoje não. Além desse aspecto didático e pedagógico, a ortografia tem uma importância para a difusão da língua no mundo. O português é uma das seis primeiras línguas mais faladas no mundo.

O POVO - E por que tem causado tanta polêmica por aqui?
Bechara - A polêmica nasce não necessariamente pela natureza do acordo. Nasce pela natureza da mudança. Todos nós temos aversão à mudança. Nem todo mundo concorda com o horário de verão, com a mudança da parada do ônibus. Qualquer mudança de hábito é recebida com certa repulsa. É natural. Porque a pessoa, quando escreve para os outros, tem que adaptar seu texto às regras oficiais, porque uma das coisas que prejudicam a harmonia da sociedade é a anarquia. Havendo uma anarquia ortográfica, criam-se muitos problemas.

OP - Como o senhor analisa o ensino da língua?
Bechara - Antigamente, imaginava-se que, no português, só havia uma modalidade de língua, que era a língua padrão. Então, se o aluno usava uma gíria ou se o aluno usava um verbo numa regência que não fosse a normal, a normativa, o professor dizia “Isso não se diz”. Ora, como não se diz? O primeiro corredor de aquisição de língua é a imitação. Você aprende uma língua ouvindo essa língua. Mas a língua é a expressão fiel da sociedade. E uma sociedade, por mais equilibrada que seja, apresenta frações, estruturas sociais diferentes. Então, essas diversas camadas possuem variedades de língua. Os sociolinguistas vieram mostrar que essas variedades também existem numa mesma língua. São variedades regionais, sociais, cronológicas. Cada palavra pertence à sua história, à sua sincronia, como nós dizemos.

OP - Isso contribui para a riqueza da língua, o senhor não acha?
Bechara - Exatamente. Por isso que eu defendo a tese de que o melhor ensino de uma língua é o esforço do professor em transformar o aluno num poliglota na sua própria língua. Muita gente imagina a língua como se fosse um organismo fixo e morto. Isto é, fixo, porque não admite mudanças e morto, porque não admite novidades. Mas a língua está em constantes mudanças. As mudanças pelo contato com outras línguas são os empréstimos.

OP - O senhor é a favor da aquisição desses estrangeirismos pela língua portuguesa?
Bechara - Desde que o estrangeirismo seja uma necessidade. Porque o estrangeirismo é um nome de uma nova música, de um novo ritmo musical, de um novo contexto filosófico...

OP - O senhor não acha que, muitas vezes, há exagero?
Bechara - Você pode considerar exagero o que você não tem o correspondente em português adequado. Aí, você tem que usar. Um acadêmico, diplomata, estudioso da língua, Sergio Corrêa da Costa, escreveu um livro muito interessante intitulado Palavras sem fronteira, que são justamente esses estrangeirismos que correm o mundo todo. Ora, se você começa a aportuguesar o estrangeirismo, ao mesmo tempo em que você recebe o estrangeirismo, você se afasta do ambiente internacional em que vive esse estrangeirismo. Vamos dar um exemplo qualquer.

OP - O verbo deletar.
Bechara - O caso do deletar. Em primeiro lugar, deletar já é uma palavra latina. Mas nos chegou do inglês e o inglês é uma língua que está aberta a todas essas aquisições novas. Essa palavra vem enriquecer o nosso léxico e não existem, como antigamente se imaginava, línguas puras. Quer dizer, línguas que não precisam das outras. O estrangeirismo é um enriquecimento para língua quando ele é útil, quando ele nos traz proveito. Agora, aquele estrangeirismo a que você se referiu, que é o estrangeirismo desnecessário, que resulta do esnobismo da pessoa, realmente deve ser posto de lado. Por exemplo, não há razão para, no intervalo de uma conferência, você dizer que está na hora do coffee break. Você tem a palavra “intervalo”, “intervalo para cafezinho”.

OP - O “lanche” resolve.
Bechara - O “lanche” resolve, que, aliás, já é uma palavra inglesa. Há a palavra “merenda”. À medida que você esnoba um aportuguesamento, você se afasta da comunidade internacional. E hoje, mais do que nunca, vivemos num mundo globalizado.

OP - O senhor fala outras línguas?
Bechara - A minha geração é uma geração que não tinha essa facilidade das viagens. Muitos intelectuais não saíram do Brasil para figurarem no quadro dos grandes intelectuais brasileiros. A nossa geração era a geração que aprendia a língua para ler. Por isso, os tradutores, quase sempre, da nossa época, eram melhores do que os tradutores de hoje. Nós nos esforçávamos para entrar nas minúcias do texto estrangeiro. Hoje, nós, intelectuais, não vivemos sem as chamadas línguas de cultura. Você tem que conhecer o inglês, o francês, o alemão, o espanhol e o italiano. E hoje já se está impondo outro conjunto de línguas. Eu conheço muitos rapazes que estão estudando o mandarim, dada a importância que a China está tomando. Outras pessoas, por questões religiosas, estão estudando o sânscrito para poderem entrar nos livros sagrados da Índia. O mundo hoje tem as viagens facilitadas. A viagem de avião hoje perdeu o seu glamour. Ao seu lado, viaja um jovem de calção, de bermuda, de chinelo. Hoje, é muito fácil viajar. Mais acessível. E isso realmente abriu os horizontes do mundo para qualquer pessoa, de modo que hoje o mundo se estreitou muito. E à medida que ele se estreita, o conhecimento de língua se impõe. O que é muito interessante você ir para um país conhecendo mais ou menos a língua que se fala nesse país.

OP - Respeitando as especificidades de cada uma, dá para falar que o português é a língua mais difícil?
Bechara - Todo mundo tem essa impressão. Não existe isso. O problema do português, como acontece em outros lugares e outras línguas, é que, às vezes, é uma língua é mal ensinada. Ou, então, o professor confunde o seu objeto de estudo. Em vez de ele ensinar a língua ao seu aluno, ele quer ensinar gramática. Ora, gramática é uma ciência. A gramática deve estar por trás do professor, porque o que deve estar entre o professor e o aluno é a língua. O aluno quer é aprender a língua.

OP - O ensino do português brasileiro não se confunde com o ensino do português europeu? Ou o senhor não gosta de fazer essa distinção?
Bechara - Na realidade, não. É como se você quisesse fazer a distinção entre você, cearense, e membros da sua família. Existiu um filósofo alemão que disse que a língua era mais forte que o sangue. E você sente isso quando você sai do seu país e vai ao estrangeiro. Uma das sensações mais gostosas é quando você dobra uma esquina e ouve uma música de (Tom) Jobim, de Vinicius (de Moraes).

OP - Você se sente parte do mundo.
Bechara - Você se sente parte do mundo. É a sensação que tiveram os moradores do morro (do Alemão), no Rio de Janeiro, quando as Forças Armadas, depois de conquistarem o espaço, levantaram a bandeira. Outro dia, uma senhora estava dizendo que o momento mais emocionante foi quando ela viu, em cima do morro, a bandeira brasileira hasteada. E ela disse isso com lágrimas nos olhos. Então, quando você viaja ao estrangeiro e ouve a sua língua naquele mar de vozes, você diz: ‘Esse é um dos meus, esse é da minha pátria’. É essa emoção, esse sentimento. A língua portuguesa é unitária nas suas variedades. O país que você frequenta na Europa com o coração na boca é Portugal. Você diz assim: “Eu aqui me sinto em casa”. Manuel Bandeira chamava Portugal de “o meu avozinho”. Se você vai à Espanha ou à França ou à Itália, você não se sente tão em casa como você se sente andando por Lisboa ou andando pelo Estoril ou andando por Coimbra ou andando por Braga.

OP - O senhor tem 82 anos.
Bechara - Véspera de 83. Faço em fevereiro. Eu sou peixes.

OP - Como o senhor se atualiza?
Bechara - Jornal, eu não leio muito. Eu deixo para ler os jornais no fim de semana, porque são matérias mais substanciosas, os colaboradores são mais da minha área. Todos os colaboradores são importantes, mas, durante a semana, os colaboradores são mais da economia, dos esportes, que são atividades importantes. Quando chega sábado ou domingo, os colaboradores são mais da área de letras, de filosofia, de humanidades de um modo geral. Eu tenho uma coluna de língua portuguesa que sai aos domingos no jornal O Dia. É quase sempre respondendo às perguntas dos leitores.

OP - Qual é a dúvida mais recorrente, professor?
Bechara - Atualmente, as dúvidas mais recorrentes são de ortografia. Ou, pelo menos, de perguntas sobre como entender o acordo ortográfico. Mas são perguntas de significados de palavras, de empregos de palavras.

OP - O senhor gosta de esporte?
Bechara - Eu gosto. O meu time no Recife – a gente fica preso ao time da infância – era Náutico. E geralmente, o pernambucano que emigra e é Náutico, no Rio de Janeiro é Botafogo ou Fluminense. Se ele é Sport no Recife, ele é Flamengo. E se ele é Santa Cruz ou Barroso no Recife, ele é Vasco no Rio de Janeiro. Eu nadei pelo Náutico – aqui entre parênteses – fui campeão carioca de natação no meu tempo de criança. No Rio de Janeiro, ainda nadei pelo Tijuca Tênis Clube e também fui campeão carioca. Mas, como eu fui para estudar, era órfão de pai e precisava ascender para vir ajudar a minha mãe, que ficou com meus irmãos, eu – como se diz – meti a cara no livro e não tenho dessa opção nenhum ressentimento nem arrependimento.

OP - Algum dos seus filhos seguiu a área das letras?
Bechara - Felizmente, não.

OP - Felizmente?
Bechara - Felizmente.

OP - Por que felizmente?
Bechara - Porque viram o sacrifício com que um professor tem que vencer na vida. E esse sacrifício se demonstra pela ausência do professor junto à sua família.

OP - Eles trabalham em quê?
Bechara - Eu tenho dois engenheiros: um, engenheiro eletrônico e outro, engenheiro elétrico. E o caçula é professor de educação física, porque o grande ideal dele era ser massagista de miss. (risos)

OP - A profissão de professor é desvalorizada ainda hoje?
Bechara - Infelizmente, é. Hoje, cada vez mais. Antigamente, o professor não ganhava melhor do que ganha hoje, mas tinha um respaldo social melhor.

OP - A tecnologia não ajudou no acesso dos livros pela internet?
Bechara - Mas isso é coisa muito recente. Eu, com 82 anos, não peguei isso. E acontece que essas informações nem sempre são vistoriadas. Se você ler uma enciclopédia, e no fim de um verbete da enciclopédia, você vê o nome do colaborador, você vê que aquilo que está escrito tem um respaldo científico. Muitas vezes, nessas informações da internet, você não sabe quem escreveu aquilo, quem disse aquilo e você, muitas vezes, ou quase sempre, não sabe se aquilo hoje está atualizado.

OP - O senhor usa a Internet?
Bechara - De um modo geral, eu sou da geração do livro. Eu gosto da Internet para uma informação rápida, mas, se quero um aprofundamento, eu geralmente não vou à Internet. A Internet é como se eu abrisse a porta de um cofre. Mas para ver o que existe lá dentro, eu prefiro outros meios e esses meios são a leitura dos livros técnicos.

OP - E para a comunicação?
Bechara - Ah, isso é uma facilidade extraordinária. Para você mandar um artigo, por exemplo. Você escreve um artigo de 20, 30 páginas e, em dois minutos, o artigo está na Alemanha, na França. Já vai digitadinho.

OP - Escrever bem é um dom ou é um processo de estudo?
Bechara - Escrever bem é um dom que você aprimora. É fruto de suor e lágrimas. Agora, escrever do ponto de vista normativo é um problema de estudo, não somente lendo dicionários e gramáticas, mas principalmente lendo os bons autores, os autores que primaram em escrever de acordo com a norma padrão.

OP - Quem o senhor indica?
Bechara - O número um é Machado de Assis, mas Machado de Assis já está um pouco afastado de nós. O número dois, três, quatro e cinco eu colocaria Manuel Bandeira, colocaria Graciliano Ramos, colocaria Cornélio Pena, Drummond.

OP - Quando o senhor lê, o senhor ainda se assusta com os erros?
Bechara - Claro, claro. Principalmente algumas novidades, para as quais você não tem muita explicação. Por exemplo, um dos hábitos comuns que aparecem na língua falada e também na língua escrita é você usar o “daqui” sem a preposição “a”. “Daqui dois dias eu vou visitar...” Mas você não tira a preposição quando você diz “daqui a pouco”. Mas você diz “daqui dois dias”, “daqui três horas”. Outra construção que está sendo introduzida é você dizer, por exemplo, “muitos milhões de homens, muitas milhões de mulheres”, enquanto a palavra “milhão” é uma palavra masculina. Tem que concordar é com o “milhão”. Esse uso está se generalizando, mas a língua é isso.

OP - A língua se faz pelo uso.
Bechara - A língua está num perpétuo devenir. Ela nunca está parada nem no tempo nem no espaço nem nas classes sociais. E isso é que dá esse colorido especial, porque a língua é o homem. O grande problema é que muitas vezes ou é mal ensinada ou o professor pensa que está ensinando língua, mas está ensinando teoria gramatical. Esse é o problema.

Perfil
Evanildo Cavalcante Bechara é recifense. Nasceu em 26 de fevereiro de 1928. É considerada a principal autoridade no Brasil para decidir sobre as pendências no novo acordo ortográfico. É professor titular e emérito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2000, é sócio-correspondente da Academia de Ciências de Lisboa e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra. É autor da Moderna Gramática Portuguesa e da Gramática Escolar da Língua Portuguesa, além de várias outras obras. Em 1971 e 1972, exerceu o cargo de professor titular visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. De 1987 a 1989, exerceu igual cargo na Universidade de Coimbra, em Portugal. É casado e tem três filhos. Atualmente, mora no Rio de Janeiro.

Daniela Nogueira


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