Álvaro Kalix Ferro, de 41 anos, é juiz titular da Vara de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar e Crimes contra Crianças e Adolescentes da Comarca de Porto Velho, criada há seis meses. Natural de Cuiabá (MT), ele é juiz há 17 anos. Professor da escola da Magistratura do Tribunal de Justiça de Rondônia, ele é ex-presidente da Associação dos Magistrados de Rondônia (Ameron) e membro das Comissões de Prerrogativas e Direitos Humanos da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB).
Pai de dois filhos, divorciado, o juiz de Direito Álvaro Kalix Ferro faz parte da primeira diretoria do Fórum Permanente de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), do qual é representante na Região Norte.
Nesta entrevista ele fala sobre seu trabalho, principalmente na atuação na área de crimes contra crianças e adolescentes.
Rondonoticias: Quando o senhor começou a atuar na área de crimes contra a criança e o adolescente?
Álvaro Kalix Ferro: Quando cheguei em Porto Velho em 2001, vindo de Ji-Paraná, vim direto para a Vara de Crimes Contra a Criança e o Adolescente. Logo vi a necessidade de não ser um juiz que atuasse sozinho. Senti a necessidade de termos pelo menos um assistente social e um psicólogo, devido à complexidade desse tipo de crime. Além de punir o agressor é preciso lidar com a criança e o adolescente.
Rondonoticias: A Vara que o senhor dirige atua de forma diferenciada das outras?
Álvaro Kalix Ferro: Os processos precisam ter andamento mais rápido, tanto na delegacia quanto em juízo, porque precisamos minimizar a vitimização. Devemos atuar de uma forma mais humanizada, buscando apoio em uma equipe multidisciplinar, que hoje nós temos até ampliada.
Rondonoticias: Nesse caso, a sensibilidade social precisa aflorar. Não basta apenas aplicar as letras frias da lei. Quais os principais casos tratados lá?
Álvaro Kalix Ferro: Com relação aos crimes contra crianças e adolescentes, o maior número de processos é de abusos sexuais, que em sua maioria, infelizmente, ocorre no seio familiar. São casos de atentado violento ao pudor e estupros.
Rondonoticias: Em setembro de 2008 a Vara de Crimes Contra a Criança e o Adolescente também passou a atender a mulher vítima de violência doméstica. Em relação à mulher, quais são os principais crimes?
Álvaro Kalix Ferro: Temos muitos casos de ameaça e também de lesão corporal. Mas é importante dizer que a Lei Maria da Penha não abarca somente casos de lesão corporal contra a mulher. É todo tipo de ameaça, seja psicológica ou não, e também agressão sexual. Todos esses casos vão parar lá, também.
Rondonoticias: O senhor já fez um estudo sobre as causas da violência contra a mulher?
Álvaro Kalix Ferro: Historicamente é a violência do homem contra a mulher. A história recente é que trás os direitos da mulher. Até o século XX a mulher não votava. O Código Civil de 1916, que vigorou até 2002, exigia algumas atitudes da mulher e não se exigia (nada semelhante) do marido. A Constituição de 88 colocou os dois em igualdade na família.
Rondonoticias: A violência contra a mulher vem do passado?
Álvaro Kalix Ferro: Sim. A mulher é uma cidadã que precisa exercer sua cidadania. O crime de ameaça é pequeno, mas tolhe a mulher de sua cidadania. A mulher que vive sob a ameaça de apanhar ou de ser morta tem sua cidadania vilipendiada, porque vive com medo de sofrer uma represália.
Rondonoticias: E quanto à violência contra a criança?
Álvaro Kalix Ferro: Nós temos aí a estória do boto, que eu não preciso contar. Mas há casos de pai que se acha no direito de ser o primeiro homem da filha. Isso é um absurdo sob qualquer ponto de vista.
Rondonoticias: Isso é doença?
Álvaro Kalix Ferro: Não podemos taxar de pedófilos todos os que cometem crimes contra crianças e adolescentes. Existem casos onde há um desejo da prática, mesmo a pessoa sabendo que isso é contra a lei. Na maioria dos casos o infrator tem consciência do que faz. Temos somente um ou outro caso em que foi notada no infrator uma doença que o impedia de ter a plena consciência do que fazia.
Rondonoticias: O que propicia o pai a ter desejo pela filha?
Álvaro Kalix Ferro: No Poder Judiciário não temos um estudo específico sobre isso. Mas percebemos que há um desvio moral no que deve ser uma família, em como deve-se portar na família.
Rondonoticias: Isso depende de classe social?
Álvaro Kalix Ferro: Há casos tanto na classe mais baixa quanto na classe mais alta. Ocorre que, muitas vezes, quando ocorre na classe mais abastada, a denúncia deixa de chegar à Polícia, ao Judiciário.
Rondonoticias: Houve algum caso que o deixou estarrecido?
Álvaro Kalix Ferro: Temos casos absurdos. Não podemos perder nunca a capacidade de indignação. Atuamos dentro do que permite a lei atuar. Mas temos, sim, absurdos. Houve um caso de uma vítima de três anos que faleceu vítima de abuso sexual. Temos caso de uma pessoa de fora, de um jornalista. Ele disse que criança a partir de 12 anos para ele era velha, então ele abusava de crianças com menos de 12 anos, levando-as para motel. Quando a gente pensa que já viu tudo, aparece alguma coisa absurda, que ainda não tínhamos visto.
Rondonoticias: As pessoas não estão conscientes de que devem denunciar?
Álvaro Kalix Ferro: Houve um caso de uma mulher que era testemunha e a audiência teve que ser adiada. Ela se levantou e disse: “Melhor seria se eu tivesse dito que não tinha visto nada”. Eu perguntei a ela como seria um caso onde ela fosse a vítima e a testemunha dissesse a mesma coisa. Ela ficou me olhando e disse: “É, o senhor tem razão”. A sociedade precisa fazer a sua parte, sem fechar os olhos a esse tipo de coisa.
Rondonoticias: Como a população pode ajudar a Justiça em casos assim?
Álvaro Kalix Ferro: Vamos falar da escola. Às vezes a escola toma conhecimento de alguma coisa estranha acontecendo com a criança. É dever da escola fazer a denúncia ao Conselho Tutelar. Às vezes a criança chega na escola roxa, mordida no pescoço. Por que a criança está mordida no pescoço? Então vamos prestar atenção, mas sem vitimizar. Quanto menos a criança foi ouvida sobre a violência praticada, melhor para ela.
Rondonoticias: Na Vara de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar e Crimes contra Crianças e Adolescentes da Comarca de Porto Velho existe um cuidado no trato com as crianças?
Álvaro Kalix Ferro: Se algum funcionário da Vara olhar feio para uma criança, pode jogar todo nosso trabalho por terra. Pode impedir que a criança conte tudo o que aconteceu. Começamos por isso. Mas temos psicólogo, temos uma sala de atendimento às crianças com televisão e brinquedos pedagógicos, para que elas tenham confiança e se sintam acolhidas, principalmente. Em crime familiar, há o absurdo de se culpar a criança, porque o agressor está preso, porque está faltando alimento em caso. A criança muitas vezes chega à Vara ameaçada para mudar o depoimento.
Rondonoticias: Como é possível perceber que há uma ameaça para mudança de depoimento?
Álvaro Kalix Ferro: Há casos em que a criança chega e mostra que sente que está cercada por animais. E às vezes é exatamente isso mesmo o que está acontecendo.
Fonte: Rondonotícias
Foto: Luis Filipe Cabaco - Olhares Fotografia Online
Pai de dois filhos, divorciado, o juiz de Direito Álvaro Kalix Ferro faz parte da primeira diretoria do Fórum Permanente de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), do qual é representante na Região Norte.
Nesta entrevista ele fala sobre seu trabalho, principalmente na atuação na área de crimes contra crianças e adolescentes.
Rondonoticias: Quando o senhor começou a atuar na área de crimes contra a criança e o adolescente?
Álvaro Kalix Ferro: Quando cheguei em Porto Velho em 2001, vindo de Ji-Paraná, vim direto para a Vara de Crimes Contra a Criança e o Adolescente. Logo vi a necessidade de não ser um juiz que atuasse sozinho. Senti a necessidade de termos pelo menos um assistente social e um psicólogo, devido à complexidade desse tipo de crime. Além de punir o agressor é preciso lidar com a criança e o adolescente.
Rondonoticias: A Vara que o senhor dirige atua de forma diferenciada das outras?
Álvaro Kalix Ferro: Os processos precisam ter andamento mais rápido, tanto na delegacia quanto em juízo, porque precisamos minimizar a vitimização. Devemos atuar de uma forma mais humanizada, buscando apoio em uma equipe multidisciplinar, que hoje nós temos até ampliada.
Rondonoticias: Nesse caso, a sensibilidade social precisa aflorar. Não basta apenas aplicar as letras frias da lei. Quais os principais casos tratados lá?
Álvaro Kalix Ferro: Com relação aos crimes contra crianças e adolescentes, o maior número de processos é de abusos sexuais, que em sua maioria, infelizmente, ocorre no seio familiar. São casos de atentado violento ao pudor e estupros.
Rondonoticias: Em setembro de 2008 a Vara de Crimes Contra a Criança e o Adolescente também passou a atender a mulher vítima de violência doméstica. Em relação à mulher, quais são os principais crimes?
Álvaro Kalix Ferro: Temos muitos casos de ameaça e também de lesão corporal. Mas é importante dizer que a Lei Maria da Penha não abarca somente casos de lesão corporal contra a mulher. É todo tipo de ameaça, seja psicológica ou não, e também agressão sexual. Todos esses casos vão parar lá, também.
Rondonoticias: O senhor já fez um estudo sobre as causas da violência contra a mulher?
Álvaro Kalix Ferro: Historicamente é a violência do homem contra a mulher. A história recente é que trás os direitos da mulher. Até o século XX a mulher não votava. O Código Civil de 1916, que vigorou até 2002, exigia algumas atitudes da mulher e não se exigia (nada semelhante) do marido. A Constituição de 88 colocou os dois em igualdade na família.
Rondonoticias: A violência contra a mulher vem do passado?
Álvaro Kalix Ferro: Sim. A mulher é uma cidadã que precisa exercer sua cidadania. O crime de ameaça é pequeno, mas tolhe a mulher de sua cidadania. A mulher que vive sob a ameaça de apanhar ou de ser morta tem sua cidadania vilipendiada, porque vive com medo de sofrer uma represália.
Rondonoticias: E quanto à violência contra a criança?
Álvaro Kalix Ferro: Nós temos aí a estória do boto, que eu não preciso contar. Mas há casos de pai que se acha no direito de ser o primeiro homem da filha. Isso é um absurdo sob qualquer ponto de vista.
Rondonoticias: Isso é doença?
Álvaro Kalix Ferro: Não podemos taxar de pedófilos todos os que cometem crimes contra crianças e adolescentes. Existem casos onde há um desejo da prática, mesmo a pessoa sabendo que isso é contra a lei. Na maioria dos casos o infrator tem consciência do que faz. Temos somente um ou outro caso em que foi notada no infrator uma doença que o impedia de ter a plena consciência do que fazia.
Rondonoticias: O que propicia o pai a ter desejo pela filha?
Álvaro Kalix Ferro: No Poder Judiciário não temos um estudo específico sobre isso. Mas percebemos que há um desvio moral no que deve ser uma família, em como deve-se portar na família.
Rondonoticias: Isso depende de classe social?
Álvaro Kalix Ferro: Há casos tanto na classe mais baixa quanto na classe mais alta. Ocorre que, muitas vezes, quando ocorre na classe mais abastada, a denúncia deixa de chegar à Polícia, ao Judiciário.
Rondonoticias: Houve algum caso que o deixou estarrecido?
Álvaro Kalix Ferro: Temos casos absurdos. Não podemos perder nunca a capacidade de indignação. Atuamos dentro do que permite a lei atuar. Mas temos, sim, absurdos. Houve um caso de uma vítima de três anos que faleceu vítima de abuso sexual. Temos caso de uma pessoa de fora, de um jornalista. Ele disse que criança a partir de 12 anos para ele era velha, então ele abusava de crianças com menos de 12 anos, levando-as para motel. Quando a gente pensa que já viu tudo, aparece alguma coisa absurda, que ainda não tínhamos visto.
Rondonoticias: As pessoas não estão conscientes de que devem denunciar?
Álvaro Kalix Ferro: Houve um caso de uma mulher que era testemunha e a audiência teve que ser adiada. Ela se levantou e disse: “Melhor seria se eu tivesse dito que não tinha visto nada”. Eu perguntei a ela como seria um caso onde ela fosse a vítima e a testemunha dissesse a mesma coisa. Ela ficou me olhando e disse: “É, o senhor tem razão”. A sociedade precisa fazer a sua parte, sem fechar os olhos a esse tipo de coisa.
Rondonoticias: Como a população pode ajudar a Justiça em casos assim?
Álvaro Kalix Ferro: Vamos falar da escola. Às vezes a escola toma conhecimento de alguma coisa estranha acontecendo com a criança. É dever da escola fazer a denúncia ao Conselho Tutelar. Às vezes a criança chega na escola roxa, mordida no pescoço. Por que a criança está mordida no pescoço? Então vamos prestar atenção, mas sem vitimizar. Quanto menos a criança foi ouvida sobre a violência praticada, melhor para ela.
Rondonoticias: Na Vara de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar e Crimes contra Crianças e Adolescentes da Comarca de Porto Velho existe um cuidado no trato com as crianças?
Álvaro Kalix Ferro: Se algum funcionário da Vara olhar feio para uma criança, pode jogar todo nosso trabalho por terra. Pode impedir que a criança conte tudo o que aconteceu. Começamos por isso. Mas temos psicólogo, temos uma sala de atendimento às crianças com televisão e brinquedos pedagógicos, para que elas tenham confiança e se sintam acolhidas, principalmente. Em crime familiar, há o absurdo de se culpar a criança, porque o agressor está preso, porque está faltando alimento em caso. A criança muitas vezes chega à Vara ameaçada para mudar o depoimento.
Rondonoticias: Como é possível perceber que há uma ameaça para mudança de depoimento?
Álvaro Kalix Ferro: Há casos em que a criança chega e mostra que sente que está cercada por animais. E às vezes é exatamente isso mesmo o que está acontecendo.
Fonte: Rondonotícias
Foto: Luis Filipe Cabaco - Olhares Fotografia Online
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