quinta-feira, 9 de julho de 2009

Quando ensinar é uma guerra

Alunos desmotivados, indisciplina, infraestrutura precária e violência. São muitas as adversidades enfrentadas pelos professores – e o maior prejudicado é, mais uma vez, o bom ensino

Os relatos dos professores que aparecem nesta reportagem lançam luz sobre um problema hoje disseminado nas escolas – públicas e particulares – do país: a relação com os alunos é tensa, quando não violenta, e motivá-los nunca foi tão difícil. Para ensinar, é preciso enfrentar toda sorte de adversidades, da indisciplina que reina na sala de aula a, em casos mais extremos, agressões físicas. A essas situações, soma-se ainda o desafio de trabalhar, muitas vezes, em lugares onde não há sequer a infraestrutura mínima, como nas escolas em que chega a faltar energia elétrica. Um conjunto recente de números ajuda a mostrar quanto tudo isso piora o clima na sala de aula. Para se ter uma ideia, 52% dos professores ouvidos em pesquisa da International Stress Management Association (Isma), feita em São Paulo e Porto Alegre, admitem atitudes agressivas com seus alunos, tendo sido irônicos ou até rudes. Não para por aí. Os próprios professores também são vítimas do ambiente ruim: de acordo com dados da Unesco, 47% já sofreram agressões verbais vindas de alunos. Nesse contexto, não causa espanto o que conclui um estudo de abrangência nacional conduzido pela educadora Tania Zagury: ele mostra que as maiores dificuldades enfrentadas pelos professores são justamente manter a disciplina e despertar a atenção dos estudantes – duas das condições básicas para uma boa aula. Diz Tania, em coro com outros especialistas: “Não há dúvida de que o desafio de ensinar ficou maior”.
Conflitos são inerentes à relação professor-aluno, e não estão circunscritos às escolas brasileiras. “Os choques são constantes em salas de aula do mundo todo”, afirma o ex-professor François Bégaudeau, protagonista e roteirista do premiado Entre os Muros da Escola, filme que retrata a rotina de um colégio público no subúrbio de Paris, onde os alunos estão entediados, os professores vivem frustrados e o convívio é penoso – como em tantos colégios no Brasil. Uma das fontes do problema é o “choque de gerações”. Não é apenas que os professores lancem mão de referências que pouco têm a ver com o cotidiano dos estudantes: a própria moldura de pensamento nas duas pontas da sala de aula é diferente. Enquanto os professores preservam a tradição das aulas expositivas, como nas escolas do século XIX, os estudantes estão imersos numa cultura digital que estimula o raciocínio não linear. “As escolas não acompanharam as transformações na sociedade, sobretudo em relação ao uso da tecnologia, daí o desinteresse dos jovens”, diz a educadora Márcia Malavasi, da Unicamp.


As concepções do que deva ser uma aula são também desencontradas. Uma pesquisa da consultoria nGenera, feita nos Estados Unidos, mostra que 67% dos jovens consideram que estudo e trabalho precisam ser prazerosos – dados que ecoam no Brasil. Já os professores sempre associaram tais atividades ao esforço, quando não ao sacrifício. “Os alunos esperam uma aula-show e os professores não acham que deva ser assim. Existe um descompasso”, conclui Márcia. Erodiu-se, por fim, um dos pilares do trabalho de transmissão de conhecimento – o princípio de autoridade do professor. Foi um processo de longo curso, iniciado nos anos 60, com a ascensão dos movimentos estudantis e da contracultura, que puseram em xeque o conceito de hierarquia. Poderia ter sido um bom passo para as instituições de ensino caso significasse apenas o fim do autoritarismo – e não a contestação absoluta da noção de autoridade. “Crianças e adolescentes sentem que podem agir como quiserem. A escola foi prejudicada por essa permissividade”, diz o especialista Claudio de Moura Castro.

A situação de ensino tende a refletir relações sociais deterioradas fora da escola. É assim nos bairros de imigrantes na França, nos guetos americanos ou nas áreas mais pobres em grandes cidades brasileiras. Os altos índices de violência no Brasil tornam ainda mais difícil, por vezes impossível, a tarefa de ensinar. Em uma pesquisa da Unesco, 20% dos alunos brasileiros de escolas públicas acusam a presença de gangues em seu colégio e 10%, de tráfico de drogas. “Cheguei sonhando aplicar Piaget, mas logo entendi que, antes, precisava humanizar alunos vindos de ruas e lares dominados pela brutalidade”, conta Marcelo Rolim, 42 anos, diretor de uma escola estadual na favela do Acari, no Rio de Janeiro. A violência pode se tornar tão acentuada a ponto de os professores terem medo de repreender os alunos. “Quando é preciso se preocupar com segurança, o ensino acaba ficando em segundo plano”, reconhece Isabel Ribeiro, 35 anos, professora numa escola pública de Brasília onde alguns dos alunos já foram parar na delegacia por furto e porte de drogas. Mesmo quando a violência não alcança tais níveis, os professores percebem o ambiente hostil, em que manter a ordem é missão duríssima. Piora o cenário não contarem com o apoio dos pais, que, se não estão ausentes, aparecem para defender os filhos. “Eles costumam ficar incondicionalmente do lado dos filhos”, diz a psicóloga Marilda Lipp, da PUC de Campinas. “Não impõem limites em casa e impedem que se faça isso na escola.”

Existe o consenso de que contar com professores experientes e qualificados seria um bom começo para enfrentar a crise que se instaurou nas escolas – só que mais da metade deles no Brasil não tem sequer formação naquelas matérias que ensinam. A motivação dos alunos aumentaria, afinal, se os professores fossem melhores. Agrava a situação o fato de que muitas escolas tampouco oferecem condições básicas para o trabalho. Basta dizer que 1 milhão de alunos frequentam colégios onde não há saneamento básico e 600 000 vão a escolas que não têm nem luz elétrica. O que isso significa? “Os estudantes vivem com dor de cabeça pela ausência de luz, têm dificuldade de concentração, e meu esforço para chamar atenção precisa ser redobrado”, diz Jane Maria Nunes, 34 anos, professora de uma escola na Ilha de Marajó, no Pará. Cenário não muito melhor se vê em Santa Quitéria, no sertão do Cea-rá, onde, sem contarem com transporte escolar adequado, as crianças empreendem viagens de até duas horas – sendo uma hora do percurso a pé – para chegar à sala de aula. “Meu desafio, antes de tudo, é mantê-las acordadas”, reconhece o professor Vadísio Saraiva, 32 anos. Investir na infraestrutura básica das escolas, portanto, também poderia ajudar. Além disso, a experiência mostra que, quando os pais participam da vida escolar e mantêm um bom canal com os professores, o ambiente melhora muito – como no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos melhores do país no ranking do Enem (veja o quadro).
É esperado que um ambiente ruim influencie negativamente o aprendizado, mas só agora se sabe quanto – e não é pouco. A maior pesquisa nessa área, feita pela Unesco em quinze países, e também no Brasil, mediu o impacto de sessenta fatores sobre a nota dos estudantes. Entre alguns indicadores já tradicionais em estudos do gênero – como tamanho das classes e nível de formação dos professores –, desta vez incluiu-se a variável “clima emocional em sala de aula”. Item que traduz algo como a tranquilidade com que o professor consegue executar seu trabalho, o relacionamento com os alunos e o nível de violência na escola. Conclusão: nada tem tanto impacto sobre o desempenho dos alunos como essa variável. Nas escolas em que o clima é considerado bom, as notas dos estudantes são 36% mais altas do que a média em testes de linguagem e 46% maiores em matemática. “Um bom ambiente tem mais peso do que todos os demais fatores somados, o que chama atenção para a necessidade de investir nessa direção”, avalia o filósofo chileno Juan Casassus, coordenador do estudo da Unesco. Tornar mais harmoniosas as relações na escola, portanto, não é relevante apenas para reduzir o stress dos professores e a desmotivação dos alunos. É, antes de tudo, decisivo para fazer a educação avançar.
Com reportagem de Cíntia Borsato, Marana Borges e Renata Betti

O medo da sala de aula
A professora de português Isabel Ribeiro, 35 anos, está com medo. Só neste ano, nove alunos do colégio público onde ela trabalha, no Distrito Federal, foram parar na delegacia por crimes como furto e porte de drogas – todos praticados dentro da escola. Muitos dos alunos ali pertencem a gangues e alguns, condenados pela Justiça, cumprem pena em liberdade. Nesse ambiente de tensão, é difícil impor a disciplina e ensinar. “Eu e meus colegas não temos coragem nem de pedir silêncio, e dá medo até de reprovar um aluno”, reconhece Isabel, que, dia desses, foi ameaçada por um estudante. “Vou quebrar a sua cara”, ele dizia, apenas porque a professora, fazendo valer uma regra da escola, lhe pediu que tirasse o boné. Como o rapaz passou a rondar suas salas de aula, numa atitude de intimidação, Isabel registrou boletim de ocorrência. “É difícil focar no ensino. Penso antes na minha segurança.”

Quarenta ameaças de morte

O professor de educação física Marcelo Rolim, 42 anos, chegou a uma escola estadual em Acari, no subúrbio carioca, com a ambição de aplicar Piaget e dar aulas de ginástica ao som de Ravel – mas encontrou ali paredes cravejadas com 108 tiros e uma favela dominada por três facções do tráfico de drogas. Há quinze anos, o ambiente na escola era de guerra, tanto pelos tiroteios quase diários no entorno quanto pela violência entre os alunos, a metade deles envolvida com o tráfico. Marcelo contabiliza quarenta amea-ças de morte feitas por alunos. “Certa vez, um deles me apontou uma arma dentro do banheiro. Achei que não sairia vivo.” Já como diretor, ele se empenhou para transformar a escola num lugar pacífico – e teve êxito. Foi à casa dos estudantes a fim de se aproximar dos pais e apelou até para as lideranças do tráfico. Seu atual esforço é para despertar o interesse desses alunos sem nenhum estímulo. Tarefa duríssima. Outro dia, Marcelo ajudava um grupo a entender a regra de três aplicando jargão local: “Lembrem que letras e números ficam sempre em lados opostos. É como o lado A e o lado B (como são conhecidas as facções do tráfico em Acari)”. Os alunos entenderam.

Pais e professores em lados opostos


A bióloga Luciana Soares, 30 anos, acaba de abandonar as aulas de ciências que dava em escolas particulares de Minas Gerais havia uma década. Preferiu ensinar na pré-escola. Ela só decidiu mudar depois de muitas frustrações. “É gritaria e conversa o tempo todo. Às vezes, os alunos simplesmente não querem aprender.” Não são raras as ocasiões em que a bagunça descamba para a falta de respeito. Recentemente, Luciana tentava apartar uma briga entre alunas da 5ª série quando levou um tapa na cara. Não contou com o apoio dos pais nesta nem em outras situações críticas. Já chegou até a ouvir de um deles: “Nosso filho é ótimo. Você é que não está ensinando direito”. A atitude dos pais certamente encorajava a dos filhos. “Faço essa tarefa se eu quiser. É meu pai que está pagando”, eles diziam. Luciana se sentia solitária – e impotente. “Agora estou feliz, ensinando crianças com quem consigo estabelecer uma relação de confiança e respeito.”

Duas aulas ao mesmo tempo


Dez minutos em uma sala, dez noutra. Nos últimos três meses, foi essa a maratona diária do professor de português Paulo Henrique Medeiros, 27 anos, na escola estadual de Cotaxé, no interior do Espírito Santo. Ali, como em outras escolas do país, não havia professores em número suficiente para todas as classes. Daí a necessidade de ele se desdobrar para tomar conta de duas salas de aula ao mesmo tempo. Parece impossível – e é. Bastava que Paulo saísse da sala para que os estudantes iniciassem um frenético entra e sai. O problema foi resolvido, recentemente, com a contratação de professores temporários. Ainda assim, mesmo quando o professor está em sala, reina a indisciplina. Os alunos não prestam atenção, e com frequência Paulo Henrique se vê falando sozinho. “Fico exaurido e com a sensação de que não ensinei nada direito. Imagine o que é não conseguir concluir um único raciocínio.” O ambiente para o aprendizado não poderia ser mais adverso e a frustração de Paulo, maior. “Sei que essas crianças não têm grandes perspectivas, e isso é o fim para um professor.”

Lição sem luz


A professora Jane Maria Nunes, 34 anos, prepara suas aulas à luz de velas e redige a mão cada uma das provas que aplica. A energia elétrica ainda não chegou à escola municipal onde ela leciona, na zona rural de Curralinho, município paraense que fica na Ilha de Marajó. Ali, também faltam água potável, merenda, biblioteca, material didático e até carteiras para os estudantes. “Já tive de dividir lápis ao meio porque não havia o suficiente para todo mundo”, diz a professora. A infraestrutura paupérrima impõe um desafio a mais para Jane. “Como a sala é escura, os alunos vivem com dor de cabeça e têm enorme dificuldade para se concentrar.” Fugir do esquema giz e lousa também não é trivial. Atividades consideradas básicas por professores, como exibir um vídeo, são impraticáveis na escola. As paredes – divisórias de madeira que nem sequer chegam ao teto – também não ajudam. Por meio de suas frestas, passa o som de uma sala para outra. “Não dá para programar aulas com muito barulho porque atrapalham a sala ao lado”, resigna-se Jane. “É uma verdadeira loucura ensinar nessas condições.”

Clima bom, notas altas
No Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp-UFRJ), os três laboratórios de ciências estão desativados, faltam ventiladores e não se vê sinal dos recursos tecnológicos tão comuns nos melhores colégios particulares do país. À primeira vista, parece uma escola pública como outra qualquer. A diferença do CAp leva mais tempo para ser percebida – mas é decisiva para explicar o fato de o colégio ter aparecido em 17º lugar no último ranking do Enem, à frente de 20 000 escolas públicas e particulares. Ali, o ambiente das aulas é excepcionalmente bom. “Em 25 anos, só vi dois casos de agressão de alunos contra professores”, contabiliza Miriam Kaiuca, vice-diretora. Como a escola conta com o suporte da UFRJ, seus docentes recebem salário mais alto do que a média (algo como 3 500 reais), 70% têm pelo menos o mestrado e – eis um fator determinante – nada menos que 90% deles trabalham em regime de dedicação exclusiva, raridade no Brasil. Diz o estudante Noah Miranda, 17 anos, do 3º ano do ensino médio: “Nosso contato com os professores é permanente e o vínculo que nos une, muito forte”. Ele e os outros alunos ainda participam de decisões cruciais na escola, como a eleição da diretoria, na qual têm voto. “O clima é de harmonia, não de guerra”, resume Noah.
Os pais também participam ativamente da vida escolar, o que contribui para o avanço dos filhos e também para o bom ambiente no colégio. Já na matrícula, eles são entrevistados pela coordenação, que, desse modo, consegue conhecer melhor cada família. Os professores reservam ainda um horário para atender os pais individualmente, pelo menos uma vez por semana. Fora isso, a escola é um espaço para festas, shows e eventos esportivos, os quais a Associação de Pais ajuda a organizar. Tudo isso aproxima não só as famílias, mas os alunos da escola. Tanto que, já adultos, muitos decidem colocar os próprios filhos no CAp. É o caso da advogada Fernanda Freitas, 35 anos, que, no ano passado, matriculou lá seu filho Guilherme, de 8: “Quis que frequentasse uma escola da qual me orgulho até hoje”.

Sílvia Rogar


VEJA – Edição 2117

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