quarta-feira, 8 de julho de 2009

Um mundo parado no tempo

Os povos de Papua Nova Guiné usam arco e flecha nas guerras entre clãs, cozinham porcos em buracos e se vestem com plumas e folhagens. Aqui, um pedaço de sua história

Cinco homens fortes carregam um pesado porco que esperneia. Eles usam apenas tapa-sexo de palha. Sua cabeça está ornada com plantas e penas de pássaros. São os membros mais importantes da comunidade e têm uma missão respeitada por todos: transformar o animal na peça principal do banquete comunitário, o mumu. O líder mais robusto – uma massa de músculos produzida pela vida árdua do campo – segura uma borduna de madeira que ele mesmo esculpiu. Os outros quatro homens, curvados, agarram o suíno com suas mãos largas. O braço levanta e a pancada no crânio é seca e certeira. O porco desmaia imediatamente. A cena é desagradável e prefiro assistir ao drama através da lente fotográfica. Os golpes seguintes são truculentos. Um esmaga o focinho e o sangue jorra em todas as direções. Calça, camisa e câmera não são poupadas.


UM PAÍS DE MEIA ILHA
Acima da Austrália, a Ilha da Nova Guiné é a segunda maior do mundo. A oeste fica a província Papua, da Indonésia. No leste fica um país independente, a Papua Nova Guiné

Sinto um nó no estômago.
Segundo os conceitos ocidentais, esse modo de matar um porco é cruel, um ato de barbarismo. Para os habitantes das montanhas e vales centrais de Papua Nova Guiné (PNG), é um rito tradicional de reunião da comunidade para uma refeição coletiva. Nessa região remota do país, não existem geladeiras e raros são os vilarejos com energia elétrica. Quando um porco é abatido, a carne precisa ser consumida logo. Como um animal alimenta de 20 a 30 pessoas, a cada sacrifício várias famílias ingerem a fonte de proteínas. O porco foi domesticado pelos habitantes locais há alguns milhares de anos. Ele ainda possui feições de porco selvagem e, quando adulto, duas enormes presas. Nas montanhas, é o animal de maior valor. O número de porcos de uma família denota seu status, e o chefe da comunidade dono de algumas dezenas de animais será mais respeitado. O porco também significa liquidez econômica: existe um intenso movimento de compra, venda e troca.
O mumu é uma marca registrada dos povos das montanhas. As ocasiões mais importantes são sempre celebradas com a refeição comunitária. Acontece para festejar a independência, um aniversário, até mesmo um funeral. Ou a inauguração de uma escola ou de uma estrada. Um bom banquete conta com dezenas de porcos.
Enquanto os líderes da comunidade estão ocupados limpando e cortando o porco abatido, as mulheres sentam-se no chão para preparar tubérculos e vegetais. Usam pedaços de bambu, afiados como facas, para descascar os alimentos. Ninguém fica de braços cruzados. Outros homens cavam um buraco, de meio metro de profundidade. Geralmente o buraco já existe, mas é preciso limpá-lo e acertar as beiradas. O que é particular no mumu é a maneira como os ingredientes são cozidos: dentro da terra.
Por cima do buraco quadrado que servirá de forno subterrâneo, dois jovens deitam longos pedaços de lenha, lado a lado, como se estivessem preparando um estrado. Quando o fogo começa a arder, um monte de pedras roliças é depositado sobre as madeiras.

Agora entendo o segredo do mumu. São as pedras que vão manter o calor constante e cozinhar tudo o que for colocado dentro da cavidade. Em 20 minutos, toda a madeira é consumida pelo fogo e se transforma em carvão.
As pedras, que estavam em cima da madeira, caem no fundo do buraco. Sobre elas e o carvão são espalhadas várias camadas de folhas de bananeira.
As mulheres aparecem com cestos de bananas verdes descascadas e depositam o conteúdo na pequena cratera.
Outros cestos – desta vez, de kau-kau (batata-doce) – também são despejados. Os flancos dos porcos cortados entram no arranjo. Pelo menos 20 homens trabalham e todos parecem saber exatamente o que deve ser feito.
Mais bananas, mais kau-kaus e mais folhas verdes – e o buraco está cheio de alimentos. No final, entram as cabeças dos porcos. Somente os focinhos aparecem, rodeados de verduras. O pacote final é recoberto com mais pedras e uma camada final de terra. Nenhuma fumacinha sai do forno: todo o vapor está preso nessa enorme panela de pressão. Em três horas, o banquete será servido.

A agricultura foi desenvolvida nos vales centrais há 9 mil anos. Os papuásios domesticaram várias espécies de plantas nativas
Durante o mumu, converso com Anthony Hetaya, um dos líderes do clã Yugu de Lakawanda. O assunto é guerra tribal. “Os conflitos entre clãs têm três razões: roubo de terra, de mulher ou de porco. Usamos apenas nossas armas tradicionais”, afirma. A última batalha de sua comunidade foi contra o clã Lai, na década de 80. “Perdemos. Morreram dois membros de nosso clã. Tivemos de pagar uma compensação de 175 porcos vivos.” Embora ainda haja muitos confrontos na região – a polícia e o Exército preferem não se meter –, os Yugus estão convencidos de que não vale a pena entrar em uma batalha. “Numa guerra, não dormimos nem comemos direito, as mulheres e as crianças sofrem e não temos liberdade de movimento. Quando perdemos, as compensações são altas”, diz Hetaya.
A PREPARAÇÃO DO BANQUETE
O alimento mais cultivado no país é a batata-doce (à esq.). O porco selvagem, cortado (ao centro), vai para o forno cavado na terra (à dir.), junto com bananas e tubérculos
O número de idiomas na região ajuda a entender a quantidade de confrontos: são 820. Com apenas 6 milhões de habitantes em uma área menor que o Estado da Bahia, PNG é o país de maior diversidade linguística do mundo. Basta atravessar um vale ou uma montanha para encontrar outra língua e outro grupo étnico. As diferenças entre povos tão próximos trouxeram discórdias.
A lenda de guerra tribal mais insólita é a dos homens de barro. Os guerreiros de uma tribo das montanhas de Goroka invadiram as terras de outra etnia. Atearam fogo nas casas de palha, mataram os homens e raptaram as mulheres mais jovens. Os sobreviventes fugiram, mergulhando nas águas lamacentas do Rio Asaro. Quando se reagruparam, notaram que seus corpos tinham uma coloração esbranquiçada: o barro da água do rio havia secado. Esse tom fantasmagórico inspirou o pequeno grupo a conceber um contra-ataque, aproveitando o medo dos maus espíritos. Usando uma estrutura de gravetos para criar enormes cabeças, eles moldaram, com a lama do rio, terríveis caras de fantasmas. As máscaras tinham bocas deformadas, orelhas imensas e narizes como se fossem focinhos de porco. Untaram todo o corpo com barro e usaram, como prolongação dos dedos, compridos pedaços de bambus.
À noite, os sobreviventes, camuflados como assombrações, chegaram ao vilarejo inimigo. O grupo golpeou violentamente seus dedos de bambus uns contra os outros. O barulho aterrorizante fez com que a tribo acordasse e desse de cara com os fantasmas. Apavorados, todos fugiram. O episódio de bravura e astúcia passou a ser um símbolo de PNG, e os homens de barro tornaram-se heróis nacionais.
Encontro os homens de barro em um festival cultural, o sing-sing de Monte Hagen. Mesmo iluminados por um forte sol de meio-dia, as figuras são horripilantes. Principalmente quando ameaçam nativos e estrangeiros com suas longas unhas de bambus. Mas, graças à imensa variedade de danças e trajes, meus olhos são atraídos por outras figuras menos assustadoras.
Os sing-sings aconteciam apenas em vilarejos isolados. A partir dos anos 50, o festival passou a servir como um exercício de integração nacional. Em vez de as tribos se encontrar para resolver diferenças de fronteiras agrícolas e entrar em confronto, o sing-sing pretendeu ser uma “batalha cultural”. O grupo que estivesse mais decorado e fizesse a melhor apresentação ganharia um prêmio. Como a guerra tribal continuava na memória genética, as primeiras competições acabaram gerando agitação. Os que não haviam sido premiados, inconformados com a decisão do júri, passavam ao confronto.

Conclusão: hoje, os sing-sings não oferecem mais prêmios.

Os sing-sing de Monte Hagen reúne mais de 2 mil protagonistas, todos orgulhosos de mostrar suas danças, pinturas corporais e arte plumária. Homens e mulheres da costa, da floresta e das montanhas exibem o rosto multicolorido. Sobre a cabeça, um delírio ornitológico, com plumas de aves-do- -paraíso ou papagaios endêmicos. Minha preocupação conservacionista aumenta à medida que descubro novos arranjos de plumas na cabeça dos dançarinos. Começo a questionar se, para cada festival, é necessário um massacre de pássaros raros. Sou tranquilizado por Pym Mamindi, um profundo conhecedor de sing-sings. “Essas plumas têm mais idade que os próprios dançarinos. Elas passam de geração a geração e são guardadas com muito cuidado. Hoje seria dificílimo caçar essas aves.”

Nos sing-sings, milhares de pessoas realizam alucinantes danças guerreiras. O mais famoso festival é o de Monte Hagen
Os homens, com afiadas lanças nas mãos, parecem guerreiros prontos para a batalha. As mulheres, quase todas de torso nu, exibem o corpo moreno, untado de óleo para se proteger do sol. O espetáculo é extasiante. Durante dois dias, o ritmo dos tambores mantém a efervescência do festival. É uma ode à diversidade cultural. Nos últimos 10 mil anos, a vida dos habitantes de Papua Nova Guiné dependeu dessa relação íntima com a natureza. Na hora de festejar, eles são coerentes com a força que eles mais respeitam e voltam a ser, mesmo que por poucas horas, homens pássaros e mulheres plantas. Mas o mundo moderno, junto com o sinal do celular, chega a passos rápidos. As pinturas faciais de hoje já não são naturais, mas com tinta a óleo. As lanças e os machados usados até agora nas disputas corpo a corpo podem ser, em breve, substituídos por pistolas e espingardas. Cresce o número de desocupados em cidades como Monte Hagen, junto com os índices de violência. O mumu será capaz de resistir à chegada do supermercado? O sing-sing resistirá à TV? Tenho a incômoda sensação de que posso ter assistido ao epílogo dessas culturas.

O ESPETÁCULO
Um grupo de guerreiros de Monte Hagen, caracterizado por sua pintura facial negra, branca, amarela e vermelha, canta vigorosamente ao som dos kundus, o tamborete típico. Jovens mulheres, também ornadas com as cores de Monte Hagen, saltam com energia, seguindo o ritmo inebriante dos cantos. O festival ocorre desde os anos 1950

Haroldo Castro
de Papua Nova Guiné
Época

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