sábado, 11 de julho de 2009

Meninas que querem ser más

BARRA-PESADA
A fachada do colégio Domingos João Batista Spinelli, em Ribeirão Preto, onde meninas de 7ª série formaram um grupo para ameaçar e agredir colegas estudiosas

A agressão numa escola do interior de São Paulo revela a crescente participação de meninas em gangues violentas

No prédio do Ministério Público Estadual de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, 13 meninas com idade entre 11 e 15 anos esperam sentadas, ao lado dos pais, uma audiência com o promotor de justiça. Com semblante assustado e cabisbaixas, algumas roem as unhas. Outras, com fones no ouvido, ouvem música como se estivessem no sofá de casa. Todas são suspeitas de integrar o “Bonde do Capeta”, um grupo de alunas da 7ª série da Escola Estadual Domingos João Batista Spinelli, na periferia da cidade, que se juntou para ameaçar e estapear colegas mais bonitas e com notas melhores.
A agressão começou a tomar forma em março deste ano, quando os alunos marcaram um dia para ir à escola com suas melhores roupas. As “patricinhas” assistiram às aulas empetecadas e orgulhosas. No mesmo dia, outra turma de meninas combinou de aparecer de pijama. Impedidas de entrar no colégio, se revoltaram. E passaram a ameaçar as colegas bem-vestidas com mensagens agressivas no site de relacionamento Orkut. O enredo virou violência em junho. No intervalo entre as aulas, as encapetadas reuniram o “bonde” para bater em G., de 12 anos, cabelos loiros, média escolar 9. Perseguida no corredor da escola, foi agarrada, chutada e socada pelas colegas. Ganhou hematomas pelo corpo e perdeu uma mecha de cabelos, arrancado e colado pelas agressoras no portão da escola como prova de força e ameaça para outras meninas. “Não queria mais ir às aulas, mas meus pais procuraram a polícia, a direção transferiu parte das meninas e me mudou para o período da manhã”, diz G. Pais de outras oito alunas registraram boletim de ocorrência, temerosos das ameaças virtuais do grupo. A polícia tirou a página do “Bonde do Capeta” do ar e o Ministério Público agiu. “As meninas vão ser ouvidas, e por esse comportamento violento podem até ser acusadas de formação de quadrilha”, afirmou o promotor de justiça Naul Luiz Felca, que apura a história.
A participação social da mulher aumentou em todos oscampos, inclusive dentro das gangues”, diz uma socióloga
Mais que um caso pontual de violência escolar, a agressão em Ribeirão Preto aponta para um fenômeno mais amplo: garotas briguentas que tomam a iniciativa de formar ou liderar gangues. “É como se elas tivessem ficado mais corajosas, e essa valentia fosse reconhecida como um valor”, diz a socióloga Miriam Abramovay, coordenadora da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (um organismo internacional que municia os governos com estudos) e responsável por uma pesquisa de dois anos sobre gangues femininas no Distrito Federal. Casos similares aos de Ribeirão Preto são mais comuns do que parece. No fim do ano passado, a briga de duas alunas na Escola Estadual Amadeu Amaral, na Zona Leste de São Paulo, desencadeou uma minirrebelião. Entre arremessos de carteiras e arrombamentos de porta, o prejuízo de R$ 180 mil aos cofres públicos só foi estancado pela intervenção da Polícia Militar. Meses depois, uma emissora de TV de Belém, no Pará, flagrou alunas de um colégio se estapeando no centro de uma roda de meninos que formavam uma espécie de ringue humano. “As meninas querem reconhecimento da sociedade e acreditam que vão se firmar pela postura de garotas más”, diz Miriam. “Ser a mulherzinha ou a namorada do valentão não serve.”
Em muitos lugares, a belicosidade das garotas ultrapassa os muros da escola. “A presença feminina em gangues aumentou substancialmente, e o papel delas está mais importante”, diz Glória Diógenes, socióloga e secretária de Direitos Humanos de Fortaleza. “Antes, as meninas entravam nas gangues para servir de isca, atrair garotos para a briga com os rapazes. Agora entram para rivalizar com eles, dispostas a um enfrentamento contra outros grupos.”
No Distrito Federal, onde mais de 30 gangues disputam espaço há alguns anos em cidades-satélites como Ceilândia e Taguatinga, elas formam facções femininas que repetem a rivalidade e a agressividade dos rapazes. São garotas de 13 a 20 anos que picham, destroem orelhões, depredam pontos de ônibus e arranjam brigas públicas com as rivais. Muitas vezes furtam ou roubam para conseguir dinheiro e comprar sprays, bebidas e drogas. Com a mesma postura provocativa dos rapazes das gangues, posam para fotos com armas em punho, em imagens depois exibidas no Orkut. “As mulheres passaram a participar de forma ativa nas gangues, a ter mais presença”, diz a socióloga Miriam. “É uma reprodução do que aconteceu na sociedade: a participação social da mulher aumentou em todos os campos, inclusive dentro das gangues.” A afirmação é corroborada pelo promotor de justiça da Infância e da Juventude de São Paulo, Thales Cezar de Oliveira, responsável por parte dos casos que envolvem menores infratores na maior cidade do país. “Faltam pesquisas, mas na minha percepção houve um aumento sensível de meninas que praticam infrações em geral. Antes eu atendia em meu escritório uma ou duas meninas por mês, hoje atendo de cinco a seis por semana”, afirma Oliveira.
O fenômeno é mundial. Nos Estados Unidos, em cidades famosas por suas gangues de rapazes, como Nova York, Boston, Detroit e Los Angeles, o envolvimento de meninas e jovens mulheres também cresce. “Os dados estatísticos são escassos, mas é visível que as jovens se tornaram autônomas dentro das gangues: gostam de expor sua agressividade e se orgulham de passar pelos violentos rituais de iniciação para provar resistência e lealdade”, afirma o sociólogo Carl S. Taylor, autor de livros como Girls, gangs, women and drugs (Garotas, gangues, mulheres e drogas) e Dangerous society (Sociedade perigosa). Em países da América Central e da Europa, principalmente Inglaterra e Alemanha, meninas também participam de gangues e frequentemente as lideram.
Apesar das semelhanças entre os grupos que agem nas escolas e aqueles atuantes fora delas, os especialistas preferem ressaltar suas diferenças – com base no que se sabe sobre as gangues masculinas. Em geral, as gangues formadas fora da escola são longevas e constituídas por jovens com idade média entre 13 e 18 anos, em busca de diversão e lazer. Os passatempos variam de ir a bailes e pichar muros a atacar gangues rivais. Essas gangues podem ter de 200 a 500 integrantes, que as consideram uma segunda família. As “minigangues” escolares não ultrapassam os 30 integrantes, com idade de 11 a 15 anos e atuação muito mais pontual. “No colégio não se está numa gangue de verdade, é uma ‘ganguinha’”, diz Miriam. “São estudantes que se unem por alguma questão de intolerância ou rebeldia, mas com apenas alguns elementos de gangues, porque os estudantes têm atração por essa ideia.” O promotor Oliveira, de São Paulo, não tem simpatia por essa tipologia rígida apresentada pela socióloga. “Esse envolvimento na escola pode ser uma porta de entrada para coisas piores. Às vezes damos sorte de detectar esse comportamento cedo. E aí não se pode passar a mão na cabeça”, afirma. Ele defende a aplicação de penas aliada a acompanhamento psicológico e social dos menores.
Formar turmas e se agregar é um processo natural de afirmação dos adolescentes. Yvette Piha Lehman, psicóloga social e professora da Universidade de São Paulo, afirma que se juntar a um grupo, qualquer que seja, é a forma encontrada pelos jovens para crescer e começar a deixar a família de lado. A diferença, diz ela, está na postura do grupo. “Gangues e microgangues são formadas pelo pessoal que não quer apenas agregar, e sim confrontar. É uma forma de catalisar a raiva e o inconformismo”, diz Yvette.
Para especialistas, a melhor forma de evitar que os jovens, mulheres ou homens, se envolvam com gangues é dar visibilidade social a eles. “O jeito é canalizar a energia e a vontade de identificação com um grupo para outros lugares”, diz a socióloga Glória Diógenes. Ela participa do Projeto Enxame, que permitiu a jovens de um bairro da periferia de Fortaleza trocar a pichação e as brigas pela cultura hip-hop. “A arte é um desses lugares que garantem visibilidade e servem de comunicação com a sociedade”, diz Glória.

Rodrigo Turrer
Ribeirão Preto


Época

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