quarta-feira, 1 de julho de 2009

Mundo droga - I

É meia-noite. Maria volta para casa. Bairro pobre, periferia, ruas quase escuras, com raras e distantes lâmpadas. Como sempre, Maria vinha do trabalho de fazer salgados, em festa de aniversário de gente rica. Vinha cansada do trabalho nas tardes e noites de pouco ganho. Tinha que madrugar, porque de dia era arrumadeira na casa rica do seu Alcides. Queria um pouco de cama, de sossego e quem sabe algum sonho feliz, afinal Deus existe... Ainda longe, divulgou agitação lá por sua casa. Tinha Rádio Patrulha, gente, movimento e faladeira alta. Apressou o passo cansado, chegou à sua casa, que já não era casa; era monte de tijolos, tudo destruído por um fogo que ainda lambia os restos do que eram telhado, porta e as duas únicas janelas. Horror, os vizinhos calavam a boca, abriam alas para ela se achegar ao que era seu e nada mais era. O cabo da RP foi delicado. Também tinha nascido na pobreza e entendia que Maria, agora, estava mais que na pobreza, sozinha no mundo. Nem queria perguntar ou falar, nem tinha olhos e lágrimas pra chorar. O cabo deu a notícia que não precisava, ela já sabia. Foi seu filho, dona Maria! Chegou doidão, xingando o mundo e todo mundo. A senhora sabe, cheio de crack, parece que de mistura também maconha. Disse que a senhora sabia, ele já tinha ameaçado, toda a rua sabia, porque Dió e Xeda eram seus amigos juntos na droga e na fogueira – último sonho e haver da dona Maria. Ninguém pulou na frente pra falar ou defender – afinal, a sua rua, seu bairro, seu alto, sua cidade, o mundo todo, era uma droga só. Não adiantava protestar nem pedir, porque a sua casa poderia ser a próxima fogueira. Fazer um B.O., o cabo disse que podia, mas já sabia. Chegariam à delegacia, já teriam advogado na porta. Não eram traficantes, apenas usuários de droga. Já eram conhecidos e não poderiam ficar presos. Veja, senhor delegado, não tem uma pedrinha qualquer no bolso!... E logo estariam de volta para as ruas e seu mundo imundo. A Maria, nesta história? Pra que ir à delegacia fazer sua queixa? O pessoal de serviço já estava cheio de histórias iguais e até piores, como o Arceu, que queimou a casa com a mãe lá dentro, saiu e sumiu no mundo... E a Antônia, o seu Pedro da carroça? A Artemira, estuprada, com a filha de quinze aninhos e sonhos, que teria de virar puta, porque a mãe tinha que comer e ficou lelé da cuca? Que mundo era este que Deus esqueceu... ou não existe?
Amigos que me leem, os nomes não são estes, mas as pessoas são. Atendo num ambulatório da pobreza, uma noite apenas por semana – mas cada vez encontro uma nova Maria, Artemira, Antônia ou Pedro. Este é o meu caminho ao redor do mundo, onde encontro alguns exemplos, mas agora é de nós todos – porque, hoje, ricos, remediados e miseráveis estão todos criados na merda social das drogas. Deste vasto adubo nascem desgraças diárias, de que nós, privilegiados, tentamos fugir – mas trombamos logo ali adiante. Todo mundo, toda a imprensa, todos os políticos e chefes de estado contam escândalos, roubos, mortes, instalam inquéritos e ordenam leis, mas a droga fica à parte, é perigosa, temida, ameaça... e o medo cala o mundo. Eu já escrevi sobre esta desgraça; tenho pensado e sofrido com seus personagens – e penso que descobri um jeito de “chegar lá”. Vou contar em outra crônica. Não tenho medo, porque o drogado não é criminoso – é vítima, precisa de tratamento.

João Gilberto Rodrigues da Cunha
Médico e pecuarista


Jornal da Manhã
Uberaba

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