Descobri recentemente que sou portador da Síndrome da Dependência, doença reconhecida pela Organização Mundial de Saúde e classificada no seu Código Internacional de Doenças, o CID X, sob o código F-19. No meu caso, o diagnóstico psiquiátrico foi construído com base na manifestação de sintomas de uma das formas de compulsão, a Síndrome da Dependência Química, que submete o indivíduo portador à uma vida de adicção ou totalmente controlada pelo uso de drogas.
Uma doença de evolução progressiva, incurável, desmoralizante e fatal. Na condição de adicto em processo de recuperação, me percebi capacitado para oferecer uma possível proposta de contribuição positiva à ampliação do debate responsável, sobre o consumo compulsivo de drogas na sociedade brasileira.
Reconheço este espaço como um cenário de discussão do tema, amplamente generoso e de livre alcance para a reflexão sobre a real necessidade do enfrentamento qualificado do problema como uma questão de saúde pública em unidades hospitalares e sobre as estratégias de tratamento utilizadas para a recuperação de dependentes químicos.
Então decidi oferecer–lhes a oportunidade de partilhar em tempo real das minhas impressões sobre o período de confinamento, através de relatos tão freqüentes quanto possíveis, da experiência no espaço de internação ao qual espontaneamente optei por me submeter ao tratamento da doença.
Chamam – me Visconde.
Um homem de pele negra, ligeiramente magro e com idade registrada no momento presente de 48 anos, 06 meses e 15 dias de vida profundamente atribulada e dolorosamente sofrida.Carrego na alma as marcas cruéis da violência física, psicológica e sexual sofridas da infância à puberdade, vividas sob o signo da negligência, em condições sócio–econômicas situadas abaixo da linha da pobreza.
Sem liberdade de escolha, fui objeto de fatos criminosos numa realidade que ainda hoje segue me atormentando como produto dos rotineiros maus tratos, infligidos ritualisticamente por meus pais e justificados equivocadamente pelas suas compreensões religiosas fundamentalistas.
Meu processo de educação escolar formal foi integralmente construído em unidades do setor público de educação, coroado pela conclusão do curso de graduação universitária na área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, com posterior e consistente exercício profissional, em espaços de atuação com exigência de saberes e habilidades, diversificadamente técnicos.
Sendo eu o segundo filho de uma prole familiar de dez rebentos, divididos em 08 indivíduos do sexo masculino e 02 do sexo feminino, consegui meu primeiro emprego formal aos 21 anos de idade.
O trabalho realizado consistia na atuação como carregador de macas de ambulâncias, numa unidade de atendimento de emergência do setor de Políticas Públicas de Saúde.
Esta oportunidade profissional representou o ponto de partida para a constituição de uma relativa emancipação sócio–econômica pessoal, marcada pela assinatura do primeiro contrato individual de aluguel residencial.
Tratava-se de um apartamento de quarto e sala, localizado no bairro da Ilha do Governador – RJ, onde morei alguns anos sozinho.Com o passar dos anos, fui privilegiadamente agraciado com a paternidade de três filhos, com idade atual variando entre 13, 19 e 28 anos de idade, dos quais apenas o casal mais jovem reside em minha companhia.
Motivo suficiente para tornar extremamente penosa a realidade de expor e concretizar a decisão espontânea mais radical de minha vida.Isto aconteceu durante a sessão de psicoterapia individual, quando esforcei-me intensamente para reunir coragem suficiente e comunicar a Elen, a profissional que me assiste neste processo de tratamento, a concretização da decisão extrema de internar-me para tratar minha dependência química.
Há quase duas décadas me empenho em dar continuidade a este processo terapêutico, no qual objetivo entrar em profundo contato com a minha alma, um exercício imensurável e infindável de desafio em busca do auto-conhecimento, que possibilite auxiliar a cicatrização das minhas profundas feridas.
Atitude vital à compreensão da construção dos hábitos inconscientes, das práticas e comportamentos auto-flagelantes e destrutivos, objetivando reunir ferramentas para a desconstrução dos dispositivos de gatilhos internos que resultam em rotinas de auto-punição, motivadas por uma imensa sensação de culpa que não é minha.
Acredito que este é um movimento crucial para interromper a sofrida, dolorosa e degradante vida ativa de uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas.Após a sessão de terapia rumei para o consultório do Dr. Audir, psiquiatra com especialização psicanalítica, que ao longo dos últimos doze meses tem me prestado assistência médico-farmacológica, objetivada a redução do consumo de drogas e das manifestações mais severas da abstinência.
O tratamento ambulatorial desta Síndrome, obedece uma rotina de consultas semanais em seu consultório.
Já na consulta anterior solicitei-lhe a minha internação e naquela ocasião, o Dr. Audir prescreveu-me uma nova medicação para uso diário durante sete dias e falou que após esse prazo, faria nova avaliação da resposta do meu organismo ao remédio e sobre o pedido de internação.
Logo ao chegar, tratei de comunicar-lhe minha irredutível convicção em relação a necessidade de internar-me, por dois motivos muito claros para mim. Em primeiro lugar, para proteger-me de mim mesmo, uma vez que a idéia de suicídio como uma solução libertadora começara a ficar cada vez mais freqüente e atraente em meus pensamentos cotidianos.Outro argumento apontado refere-se à necessidade de construir uma rotina disciplinar para a administração da medicação, alimentação e sono, que forçosamente durante o confinamento hospitalar me propiciaria fortalecimento orgânico, mental e interdição dos caminhos tão fartamente disponíveis ao consumo das drogas.
Tenho clara consciência sobre o significado desta estratégia terapêutica, como etapa de um tratamento focado na recuperação da Síndrome da Dependência Química e do peso de minha capacidade de renúncia para alcançar um resultado positivo no tratamento.O fator negativo reside no meu histórico de uso das substâncias. O consumo de tabaco foi iniciado aos dezesseis anos de idade, do álcool aos dezessete, da maconha à partir dos trinta e da cocaína aos trinta e três anos de existência.
O uso experimental de drogas do começo evoluiu para o uso recreativo eventual e gradativamente tornou-se freqüente, até que nos últimos três anos transformou-se no uso abusivo do consumo compulsivo e diário.
Progressivamente esta situação passou a acarretar conseqüências de aspecto físicos, mentais e espirituais, inevitavelmente produzindo interferências danosas nas minhas atividades profissionais, cujo foco reside na intervenção direta junto à população que vive em situação de rua - não raro dependentes químicos - e na assistência às vítimas da violência intra-familiar, o que me coloca numa situação de vida bastante próxima de suas histórias pessoais.
Com o passar dos anos, a impotência diante da doença começou a acarretar significativas dificuldades econômicas e aceleradamente levou-me a um quadro de incontrolável caos no âmbito financeiro orçamentário, uma vez que não consigo conter o volume de despesas pessoais, bem superior a minha receita mensal.
As atribulações não cessam e passaram a produzir um processo de infindável sofrimento afetivo, marcado pelos transtornos resultantes da interferência das drogas no relacionamento conjugal e familiar, comprometidos pela situação de isolamento do agravamento progressivo da doença.
Amanhã estarei efetivamente me internando, caso seja confirmada a vaga para tal. Sendo assim, passarei a narrar a realidade do confinamento de tratamento.
Blog - Sobredrogas
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