- Entre dois países e duas famílias está o garoto S., de 9 anos. Ele é filho do americano David Goldman e da brasileira Bruna Bianchi. Ela, falecida durante o parto da segunda filha, é acusada de sequestro do filho. Quem a acusa não são as leis brasileiras, mas a Convenção de Haia, um instrumento do direito internacional que o Brasil e os Estados Unidos reconhecem como legítimo. A despedida de Bruna foi para uma viagem de férias com os avôs brasileiros, mas um telefonema informou que o filho não mais voltaria aos Estados Unidos. A viagem era o prenúncio do divórcio. O reencontro do pai com o filho somente ocorreria por meio de um processo judicial. Há cinco anos, David luta na Justiça brasileira para levar o filho de volta para os Estados Unidos. Decisões desencontradas ora lhe reconhecem a paternidade roubada ora ignoram a anterioridade biológica para o cuidado do garoto, anunciando o direito de adoção do padrasto.
O que seria apenas mais um enredo sem final feliz de casamentos interculturais em um mundo globalizado converteu-se em um caso internacional que provoca as ambições jurídicas sobre como se devem regular relações familiares, afetivas e de filiação. Não se trata de um caso corriqueiro de divórcio, adoção ou guarda de crianças que alcança todos os dias os gabinetes de juízes e promotores. Se esses já são temas difíceis, pois lidam com expectativas, desejos e afetos, além da delicadeza de haver crianças envolvidas, a trama por trás do caso de S. é ainda mais complexa. Não basta reconhecer que David foi ludibriado por Bianca na despedida das férias para devolver-lhe a criança. Desde a fuga da mãe, cinco anos se passaram. Mais da metade da vida do garoto foi distante do pai biológico. Também não é suficiente apelar para as boas intenções do marido de Bianca quanto ao desejo de adoção para reconhecê-lo como pai . Há uma expectativa de reparação ética da paternidade roubada de David que desafia a autoridade da experiência da paternidade conquistada pelo padrasto. Qualquer uma dessas escolhas levanta dúvidas sobre qual a melhor decisão, não mais para o pai biológico ou para o padrasto, mas para o garoto.
S. é um menino órfão de mãe e com uma história sem direito à privacidade sobre suas relações familiares e sobre si mesmo. Sua imagem, de tão popular, já se confunde com a de uma criança da vizinhança. Seus pais biológicos, seus avôs maternos e seu primeiro advogado, hoje seu padrasto, são todos conhecidos, com rosto e nome. Há juízes de plantão em cada esquina, todos aptos a emitir a sentença sobre o retorno ou a permanência do garoto. Os argumentos são viscerais, uma intensidade peculiar que somente os temas familiares ocupam no repertório da cultura brasileira. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e a senadora Hillary Clinton já se pronunciaram, pedindo que o garoto fosse entregue a David. O caso alcançou a Suprema Corte brasileira por uma ação promovida por um partido político. De uma controvérsia familiar, a história transformou-se em uma questão quase diplomática entre os dois países, mobilizando embaixadas e cortes. Não é apenas mais um caso de adoção ou divórcio, mas também de boas relações entre países.
Essa passagem de um tema de direito de família para direito internacional é sinal de uma nova ordem social que desafia os limites nacionais como fronteiras para as controvérsias morais. Se a sociedade americana se solidariza com a ausência do filho vivida por David desde a separação e pressiona o governo brasileiro a devolver a criança em nome do direito internacional, a contraparte brasileira admira a promessa de cuidado feita pelo padrasto à mãe morta e o amor conquistado pela paternidade desejada como razões afetivas para reinterpretar os mesmos dispositivos do direito internacional. A tentativa de estabelecer acordos e tratados internacionais foi fortalecida com a cultura dos direitos humanos, após a 2ª Guerra Mundial. Mas, diferentemente dos instrumentos internacionais para regular o desencontro entre os países em situação de conflito, como são as guerras, o caso do garoto S. promove o contato entre duas narrativas jurídicas que se desconhecem como mutuamente legítimas: as leis que devem regular a privacidade dos afetos - o direito de família - e as normas que devem regular o encontro entre os povos - o direito internacional. É nesse cruzamento inusitado entre duas narrativas jurídicas que regulam esferas radicalmente distintas do bem-viver, o doméstico e o público, que as incertezas sobre o caso devem ser analisadas.
A decisão sobre o destino de S. será dada pela Justiça brasileira. Não há outra instância legítima para a resolução desse conflito senão a ordem jurídica. Aos 9 anos, o garoto encontra-se no limite da autodeterminação, mas ainda imaturo para estabelecer por si mesmo qual o melhor percurso para sua vida. Não cabe mais a pergunta de como seria a vida de S. caso não tivesse viajado sem retorno com sua mãe há cinco anos. A ilicitude da fuga não é mais um tema a ser reparado, pois Bruna está morta. Somente ela poderia ser confrontada legalmente pelo sequestro: trata-se de crime cuja autoria o acaso sentenciou sem julgamento. Qualquer decisão sobre a controvérsia precisa reconhecer que a distância do pai biológico, a orfandade da mãe e o cuidado pelo padrasto são capítulos do roteiro da vida que S. vai viver no Brasil ou nos Estados Unidos. A decisão terá que ponderar emoções e afetos desse triângulo amoroso, um campo de difícil trato para a racionalidade jurídica. A tradição normativa do direito acredita ser possível dirimir casos controversos pelos fatos, ignorando as emoções. O caso de S. desafia esse frágil pressuposto.
A decisão será uma interpretação de dispositivos nacionais e internacionais sobre o sentido do pertencimento de uma criança a um país e a uma família. Será uma sentença sobre como definir o bem-estar infantil, mas particularmente sobre o papel do pai para a socialização de uma criança feliz. As relações paternas vividas por S. terão que ser redesenhadas em suas múltiplas dimensões para a decisão sobre qual o melhor pai para o garoto: os significados do pai biológico, que acolheu os primeiros anos de vida, e do padrasto, que viveu em família e preencheu a orfandade materna. Certamente a decisão sobre onde viverá S. terá que considerar seu bem-estar como questão central, subordinando o direito brasileiro de família e o direito internacional entre os povos aos seus interesses. Mas não será apenas na ordem normativa que a solução justa para o caso será encontrada. O juiz terá que se afastar da literalidade da ordem jurídica nacional e internacional para se aproximar das emoções, das expectativas e dos afetos desses dois homens em disputa pela paternidade: uma justa sentença será aquela que anunciar o verdadeiro significado da paternidade para o bem-estar do garoto. E, ao assim fazer, o juiz também desenhará um novo capítulo sobre o sentido dos afetos e das emoções para as decisões judiciais.
Debora Diniz é professora da UnB e pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
QUARTA, 11 DE JUNHOE a batalha continua...
Por unanimidade, o Superior Tribunal Federal invalida liminar concedida na semana passada pelo ministro Marco Aurélio de Mello que impedia a entrega do menino S. para o consulado americano. Agora, o caso deve ser julgado pelo TRF do Rio de Janeiro.
O Estadão
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