Como os adultos, as crianças têm o direito de ver respeitadas sua dignidade e integridade física e esse respeito precisa estar traduzido em lei. Não há desculpa para a ‘palmada’ ou a ‘palmadinha’
Faz séculos que as crianças mundo afora sofrem com o castigo corporal ou físico, aquele que recorre à força e inflige certo grau de dor, mesmo leve. Na maioria dos casos, trata-se de bater nas crianças (palmadas, bofetadas, surras) com a mão ou com objetos como chicote, vara, cinturão, sapato e colher de madeira. Mas pode consistir também em dar pontapés, empurrões, arranhá-las, mordê-las, obrigá-las a ficar em posturas incômodas, produzir queimaduras, obrigar a ingerir água fervendo, alimentos picantes ou a lavar a boca com sabão. Além desses há outros castigos que não são físicos, mas igualmente cruéis e degradantes, castigos em que se menospreza, se humilha, se denigre, se ameaça, se assusta ou se ridiculariza a criança.
Agora que a escala e a dimensão dessas práticas de violência aqui descritas se tornaram mais visíveis, e conhecidas suas consequências sociais, emocionais e cognitivas devastadoras para o desenvolvimento da criança e para seu comportamento como adulto, como acelerar o processo de sua eliminação? Políticos e organizações da sociedade civil e religiosas precisam rejeitar claramente a violência contra a criança. Governos devem revelar através de pesquisas o verdadeiro nível de violência contra a criança e combatê-la.
Felizmente, a luta contra as formas mais severas (e criminosas), como violência sexual, tráfico de crianças e prostituição infantil já conta com um consenso que as condena. Mas a violência sistemática nos lares , nas escolas, nas instituições continua velada e disfarçada. Mesmo que as coisas sem dúvida comecem a mudar, como demonstra o projeto de lei apresentado pelo governo brasileiro proibindo o castigo corporal, continua a haver uma atitude ambígua em relação à violência contra as crianças em todos os países.
Pelas reações iradas em entrevistas e blogs na última semana, vários pais dizendo que iriam continuar a bater em seus filhos mesmo com a lei, especialistas palpiteiros proferindo que uma "palmadinha em bebês é útil", dei-me conta de que a proibição a toda espécie de castigo corporal das crianças causa ainda enorme controvérsia. No entanto , as crianças têm exatamente o mesmo direito de ver respeitadas sua dignidade humana e sua integridade física como os adultos, e esse respeito precisa estar traduzido em lei. Não pode haver desculpa para a "palmada" ou a "palmadinha" (termos doces para que os adultos se sintam mais confortáveis). Frequentemente políticos e profissionais trivializam essa questão. Mas assim fazendo eles insultam as crianças e dão carta branca para os adultos as agredirem e torturarem. As mulheres, na sua gloriosa luta pela igualdade, fizeram do enfrentamento da violência doméstica nas suas casas um componente vital de seu combate. Hoje em dia nenhum marido ou macho ousaria defender "tapas" nas suas mulheres ou companheiras.
Claro que somente a lei não vai terminar com a violência contra a criança. É um passo necessário, mas insuficiente. A reforma legal precisa ser precedida e acompanhada por intensa promoção de práticas de relações positivas com as crianças. Para tanto, já há um enorme conjunto de orientações e práticas de "disciplina positiva" que tenta entender o que as crianças pensam e sentem, definindo objetivos no longo prazo da educação e buscando resolver problemas nas relações entre pais e crianças. Aprender a ser tolerante e não autoritário: por mais irritante que seja, crianças tendem a repetir comportamentos que foram proibidos. Isso é normal e não deve ser tomado como "lesa majestade" ao pátrio poder. Não adianta sair proferindo castigos idiotas como imobilizar crianças num quarto escuro. Melhor se esforçar por estabelecer limites. Mas não adianta berrar contra as crianças, o que fará com que concentrem sua atenção mais na raiva que nos limites. Mas sobretudo não bater nas crianças. No final os pais estarão ensinando aos filhos que baixar o cacete resolve um conflito.
Mas pais e mães não podem ser totalmente culpados por desconhecerem essas alternativas. Há enorme responsabilidade dos governos em criar estruturas de formação dos pais, ajudando-os a superar a violência contra seus filhos. As raízes da violência nas crianças e nos futuros adultos está na violência sistemática dos adultos contra eles. Logo, é do maior interesse dos governos e de toda a sociedade que essa violência contra as crianças autorizada por lei seja eliminada. A combinação de investimento em prevenção, como educação dos pais e professores, mecanismos para ouvir as vítimas e as crianças e legislação é a forma mais efetiva para reduzir e eliminar a violência contra a criança. Nenhuma violência contra a criança pode continuar a ser justificada e disfarçada como amor, educação, disciplina.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO É COMISSIONADO E RELATOR DA CRIANÇA DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS DA OEA
Estadão
Faz séculos que as crianças mundo afora sofrem com o castigo corporal ou físico, aquele que recorre à força e inflige certo grau de dor, mesmo leve. Na maioria dos casos, trata-se de bater nas crianças (palmadas, bofetadas, surras) com a mão ou com objetos como chicote, vara, cinturão, sapato e colher de madeira. Mas pode consistir também em dar pontapés, empurrões, arranhá-las, mordê-las, obrigá-las a ficar em posturas incômodas, produzir queimaduras, obrigar a ingerir água fervendo, alimentos picantes ou a lavar a boca com sabão. Além desses há outros castigos que não são físicos, mas igualmente cruéis e degradantes, castigos em que se menospreza, se humilha, se denigre, se ameaça, se assusta ou se ridiculariza a criança.
Agora que a escala e a dimensão dessas práticas de violência aqui descritas se tornaram mais visíveis, e conhecidas suas consequências sociais, emocionais e cognitivas devastadoras para o desenvolvimento da criança e para seu comportamento como adulto, como acelerar o processo de sua eliminação? Políticos e organizações da sociedade civil e religiosas precisam rejeitar claramente a violência contra a criança. Governos devem revelar através de pesquisas o verdadeiro nível de violência contra a criança e combatê-la.
Felizmente, a luta contra as formas mais severas (e criminosas), como violência sexual, tráfico de crianças e prostituição infantil já conta com um consenso que as condena. Mas a violência sistemática nos lares , nas escolas, nas instituições continua velada e disfarçada. Mesmo que as coisas sem dúvida comecem a mudar, como demonstra o projeto de lei apresentado pelo governo brasileiro proibindo o castigo corporal, continua a haver uma atitude ambígua em relação à violência contra as crianças em todos os países.
Pelas reações iradas em entrevistas e blogs na última semana, vários pais dizendo que iriam continuar a bater em seus filhos mesmo com a lei, especialistas palpiteiros proferindo que uma "palmadinha em bebês é útil", dei-me conta de que a proibição a toda espécie de castigo corporal das crianças causa ainda enorme controvérsia. No entanto , as crianças têm exatamente o mesmo direito de ver respeitadas sua dignidade humana e sua integridade física como os adultos, e esse respeito precisa estar traduzido em lei. Não pode haver desculpa para a "palmada" ou a "palmadinha" (termos doces para que os adultos se sintam mais confortáveis). Frequentemente políticos e profissionais trivializam essa questão. Mas assim fazendo eles insultam as crianças e dão carta branca para os adultos as agredirem e torturarem. As mulheres, na sua gloriosa luta pela igualdade, fizeram do enfrentamento da violência doméstica nas suas casas um componente vital de seu combate. Hoje em dia nenhum marido ou macho ousaria defender "tapas" nas suas mulheres ou companheiras.
Claro que somente a lei não vai terminar com a violência contra a criança. É um passo necessário, mas insuficiente. A reforma legal precisa ser precedida e acompanhada por intensa promoção de práticas de relações positivas com as crianças. Para tanto, já há um enorme conjunto de orientações e práticas de "disciplina positiva" que tenta entender o que as crianças pensam e sentem, definindo objetivos no longo prazo da educação e buscando resolver problemas nas relações entre pais e crianças. Aprender a ser tolerante e não autoritário: por mais irritante que seja, crianças tendem a repetir comportamentos que foram proibidos. Isso é normal e não deve ser tomado como "lesa majestade" ao pátrio poder. Não adianta sair proferindo castigos idiotas como imobilizar crianças num quarto escuro. Melhor se esforçar por estabelecer limites. Mas não adianta berrar contra as crianças, o que fará com que concentrem sua atenção mais na raiva que nos limites. Mas sobretudo não bater nas crianças. No final os pais estarão ensinando aos filhos que baixar o cacete resolve um conflito.
Mas pais e mães não podem ser totalmente culpados por desconhecerem essas alternativas. Há enorme responsabilidade dos governos em criar estruturas de formação dos pais, ajudando-os a superar a violência contra seus filhos. As raízes da violência nas crianças e nos futuros adultos está na violência sistemática dos adultos contra eles. Logo, é do maior interesse dos governos e de toda a sociedade que essa violência contra as crianças autorizada por lei seja eliminada. A combinação de investimento em prevenção, como educação dos pais e professores, mecanismos para ouvir as vítimas e as crianças e legislação é a forma mais efetiva para reduzir e eliminar a violência contra a criança. Nenhuma violência contra a criança pode continuar a ser justificada e disfarçada como amor, educação, disciplina.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO É COMISSIONADO E RELATOR DA CRIANÇA DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS DA OEA
Estadão
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