Na internet, afegãs relatam os dramas de suas vidas em um momento no qual Estados Unidos e Afeganistão cogitam uma aproximação com o grupo radical Talibã
Após nove anos de ocupação do Afeganistão pelos Estados Unidos e seus aliados, o fim do grupo radical islâmico Talibã não parece mais uma opção factível. Há um consenso entre os líderes da coalizão de que a administração americana e o presidente afegão, Hamid Karzai, terão que fazer acordos com os membros mais moderados da facção para estabilizar o país a ponto de permitir o fim da ocupação. A opção pela negociação é elogiada por analistas e generais, mas é encarada com enorme ceticismo por organizações ligadas aos direitos humanos e, principalmente, pelas mulheres afegãs. Se o grupo radical ganhar espaço político e influência oficial nos rumos do país, as poucas liberdades que as mulheres conseguiram conquistar nos últimos anos estarão em perigo. Em quase todos os períodos da história do Afeganistão, antiga ou recente, as mulheres foram as mais afetadas pelas tragédias vividas pelo país. O governo progressista de Mohammad Daoud Khan (1973-78) foi um dos poucos no qual houve melhorias. Com ele no poder, as mulheres das maiores cidades começaram a entrar no mercado de trabalho e a desfrutar de algumas liberdades. O governo comunista que depôs Khan (em 1978) reprimia comportamentos e rituais tribais e também melhorou a situação das mulheres, tornando compulsória a educação feminina, proibindo casamentos de menores de 16 anos e abolindo o pagamento por noivas. As mulheres ganharam importância como médicas, professoras e até na política, mas a emancipação feminina parou por aí.
Durante os dez anos de ocupação soviética (1979-89), algumas conseguiram manter seus status, mas a chegada ao poder dos mujahedin (“guerreiros santos”) e, depois, do Talibã (1996-2001), colocou fim a qualquer chance de as mulheres terem algum protagonismo na história do Afeganistão. O regime draconiano do Talibã proibiu que as mulheres estudassem e trabalhassem, deixando a prostituição e a mendicância como única alternativa para muitas médicas e professoras. Só após a chegada ao poder do atual presidente, Hamid Karzai (2004), as mulheres conseguiram reiniciar a busca por direitos iguais. Este processo, no entanto, ainda é incipiente. Ao mesmo tempo que é possível ver mulheres na política e no Exército afegão – ainda que lutando contra o preconceito – há garotas sendo atacadas com ácido apenas por insistirem em frequentar uma escola. Outras são mutiladas, como Bibi Aisha, que estampa a já histórica capa da revista Time (imagens fortes) que chegou às bancas dos Estados Unidos na quinta-feira (28). Atos bárbaros como esse, perpetrados pelo Talibã, fazem com que aumente a preocupação com os direitos das mulheres à medida que o governo afegão faz esforços para negociar a paz com indíviduos moderados do grupo.
A palavra de ONGs como Human Rights Watch e Women for Afghan Women é vastamente reproduzida pela mídia. As mulheres afegãs, no entanto, têm pouquíssimas possibilidades de se fazerem ouvir pelo resto do mundo. Uma iniciativa que tem ajudado a modificar esse quadro é o Projeto de Literatura de Mulheres Afegãs (AWWP, na sigla em inglês), fundado pela escritora americana Masha Hamilton em 2009. O AWWP reúne cerca de 45 afegãs, que participam de workshops online ministrados por Masha e outras escritoras, além de poetisas, jornalistas e professoras voluntárias. O contato se dá por meio de conexões seguras na internet, e novas participantes só chegam ao projeto se forem chamadas por amigas que já recebem orientação ou por membros do AWWP que estão no Afeganistão. Os cuidados são necessários para evitar a publicidade excessiva do programa em uma sociedade na qual a subserviência da mulher é parte central do ideário coletivo.
O preconceito é uma das grandes barreiras que as escritoras do AWWP precisam superar para divulgar as histórias de seu cotidiano. "Escrevo em Farah, um província no oeste do Afeganistão com um baixo nível de educação, e muitos homens não gostam que eu escreva e não entendem por que eu faço isso", escreveu no site uma mulher identificada apenas como Seeta. "Eles tentaram me fazer parar, mas eu nunca desisto", diz. Tabasom, que também não usa seu sobrenome, caminha quatro horas até uma cidade grande para conseguir uma conexão com a internet. Ela recebeu um laptop do AWWP e conta com a ajuda do irmão, que caminha com ela sempre que Tabasom deseja publicar textos no site. Se andasse sozinha, ela provavelmente seria castigada pelo Talibã, que ainda controla a província em que ela mora e não permite que uma mulher saia sem a companhia de um homem.
O domínio que o Talibã tem nas duas maiores províncias do sul do Afeganistão – Helmand e Kandahar – é conhecido, mas nos últimos meses pelo menos oito províncias do norte do país estão sob pesado ataque de insurgentes. Na quarta-feira da semana passada (21), insurgentes tomaram um posto policial no distrito de Dahne Ghore, na província de Baghlan, e decapitaram seis policiais. A simples aproximação de integrantes do Talibã das cidades tem feito com que as mulheres das províncias do norte, antes a região mais segura do país, passem a usar a burca com mais frequência. É com os membros moderados deste grupo que os Estados Unidos e o governo do Afeganistão pretendem negociar. “Essas mulheres não sentem que haverá um Talibã moderado que vai preservar seus direitos de estudar, trabalhar ou mesmo de sair de casa para ir ao médico”, disse Masha Hamilton a ÉPOCA (confira a entrevista íntegra).
No site da AWWP, um dos depoimentos mais significativos é intitulado “Caro presidente Obama”. No texto, uma afegã chamada Shogofa faz um apelo para o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. “Aqui todos pensam em política, mas ninguém pensa na vida humana”, diz ela. Shogofa, em um texto que é também um protesto contra a ocupação americana – ainda mais exposta pelos escandalosos documentos divulgados pelo site Wikileaks nesta semana – segue dizendo que o Afeganistão está cansado de guerra e não precisa de armas, mas sim de educação. “Em vez de mandar um exército para matar, envie professores. Mostre ao meu povo como trabalhar unido”, diz.
O desafio dos Estados Unidos, e do resto do mundo, é gigantesco. É preciso conter as pressões para tirar as tropas do Afeganistão, e ao mesmo tempo, fazer florescer no país uma sociedade que não transforme o Afeganistão, novamente, em um buraco negro dos direitos humanos, principalmente das mulheres. Por enquanto, o país claramente não está pronto para ser abandonado. A explicação está nas palavras de Roya, uma das escritoras afegãs do AWWP. “A democracia é uma noiva azarada no nosso país, porque não há bons exemplos. É nossa amiga estranha, pois não sabemos o que ela é de verdade”.
Após nove anos de ocupação do Afeganistão pelos Estados Unidos e seus aliados, o fim do grupo radical islâmico Talibã não parece mais uma opção factível. Há um consenso entre os líderes da coalizão de que a administração americana e o presidente afegão, Hamid Karzai, terão que fazer acordos com os membros mais moderados da facção para estabilizar o país a ponto de permitir o fim da ocupação. A opção pela negociação é elogiada por analistas e generais, mas é encarada com enorme ceticismo por organizações ligadas aos direitos humanos e, principalmente, pelas mulheres afegãs. Se o grupo radical ganhar espaço político e influência oficial nos rumos do país, as poucas liberdades que as mulheres conseguiram conquistar nos últimos anos estarão em perigo. Em quase todos os períodos da história do Afeganistão, antiga ou recente, as mulheres foram as mais afetadas pelas tragédias vividas pelo país. O governo progressista de Mohammad Daoud Khan (1973-78) foi um dos poucos no qual houve melhorias. Com ele no poder, as mulheres das maiores cidades começaram a entrar no mercado de trabalho e a desfrutar de algumas liberdades. O governo comunista que depôs Khan (em 1978) reprimia comportamentos e rituais tribais e também melhorou a situação das mulheres, tornando compulsória a educação feminina, proibindo casamentos de menores de 16 anos e abolindo o pagamento por noivas. As mulheres ganharam importância como médicas, professoras e até na política, mas a emancipação feminina parou por aí.
Durante os dez anos de ocupação soviética (1979-89), algumas conseguiram manter seus status, mas a chegada ao poder dos mujahedin (“guerreiros santos”) e, depois, do Talibã (1996-2001), colocou fim a qualquer chance de as mulheres terem algum protagonismo na história do Afeganistão. O regime draconiano do Talibã proibiu que as mulheres estudassem e trabalhassem, deixando a prostituição e a mendicância como única alternativa para muitas médicas e professoras. Só após a chegada ao poder do atual presidente, Hamid Karzai (2004), as mulheres conseguiram reiniciar a busca por direitos iguais. Este processo, no entanto, ainda é incipiente. Ao mesmo tempo que é possível ver mulheres na política e no Exército afegão – ainda que lutando contra o preconceito – há garotas sendo atacadas com ácido apenas por insistirem em frequentar uma escola. Outras são mutiladas, como Bibi Aisha, que estampa a já histórica capa da revista Time (imagens fortes) que chegou às bancas dos Estados Unidos na quinta-feira (28). Atos bárbaros como esse, perpetrados pelo Talibã, fazem com que aumente a preocupação com os direitos das mulheres à medida que o governo afegão faz esforços para negociar a paz com indíviduos moderados do grupo.
A palavra de ONGs como Human Rights Watch e Women for Afghan Women é vastamente reproduzida pela mídia. As mulheres afegãs, no entanto, têm pouquíssimas possibilidades de se fazerem ouvir pelo resto do mundo. Uma iniciativa que tem ajudado a modificar esse quadro é o Projeto de Literatura de Mulheres Afegãs (AWWP, na sigla em inglês), fundado pela escritora americana Masha Hamilton em 2009. O AWWP reúne cerca de 45 afegãs, que participam de workshops online ministrados por Masha e outras escritoras, além de poetisas, jornalistas e professoras voluntárias. O contato se dá por meio de conexões seguras na internet, e novas participantes só chegam ao projeto se forem chamadas por amigas que já recebem orientação ou por membros do AWWP que estão no Afeganistão. Os cuidados são necessários para evitar a publicidade excessiva do programa em uma sociedade na qual a subserviência da mulher é parte central do ideário coletivo.
O preconceito é uma das grandes barreiras que as escritoras do AWWP precisam superar para divulgar as histórias de seu cotidiano. "Escrevo em Farah, um província no oeste do Afeganistão com um baixo nível de educação, e muitos homens não gostam que eu escreva e não entendem por que eu faço isso", escreveu no site uma mulher identificada apenas como Seeta. "Eles tentaram me fazer parar, mas eu nunca desisto", diz. Tabasom, que também não usa seu sobrenome, caminha quatro horas até uma cidade grande para conseguir uma conexão com a internet. Ela recebeu um laptop do AWWP e conta com a ajuda do irmão, que caminha com ela sempre que Tabasom deseja publicar textos no site. Se andasse sozinha, ela provavelmente seria castigada pelo Talibã, que ainda controla a província em que ela mora e não permite que uma mulher saia sem a companhia de um homem.
O domínio que o Talibã tem nas duas maiores províncias do sul do Afeganistão – Helmand e Kandahar – é conhecido, mas nos últimos meses pelo menos oito províncias do norte do país estão sob pesado ataque de insurgentes. Na quarta-feira da semana passada (21), insurgentes tomaram um posto policial no distrito de Dahne Ghore, na província de Baghlan, e decapitaram seis policiais. A simples aproximação de integrantes do Talibã das cidades tem feito com que as mulheres das províncias do norte, antes a região mais segura do país, passem a usar a burca com mais frequência. É com os membros moderados deste grupo que os Estados Unidos e o governo do Afeganistão pretendem negociar. “Essas mulheres não sentem que haverá um Talibã moderado que vai preservar seus direitos de estudar, trabalhar ou mesmo de sair de casa para ir ao médico”, disse Masha Hamilton a ÉPOCA (confira a entrevista íntegra).
No site da AWWP, um dos depoimentos mais significativos é intitulado “Caro presidente Obama”. No texto, uma afegã chamada Shogofa faz um apelo para o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. “Aqui todos pensam em política, mas ninguém pensa na vida humana”, diz ela. Shogofa, em um texto que é também um protesto contra a ocupação americana – ainda mais exposta pelos escandalosos documentos divulgados pelo site Wikileaks nesta semana – segue dizendo que o Afeganistão está cansado de guerra e não precisa de armas, mas sim de educação. “Em vez de mandar um exército para matar, envie professores. Mostre ao meu povo como trabalhar unido”, diz.
O desafio dos Estados Unidos, e do resto do mundo, é gigantesco. É preciso conter as pressões para tirar as tropas do Afeganistão, e ao mesmo tempo, fazer florescer no país uma sociedade que não transforme o Afeganistão, novamente, em um buraco negro dos direitos humanos, principalmente das mulheres. Por enquanto, o país claramente não está pronto para ser abandonado. A explicação está nas palavras de Roya, uma das escritoras afegãs do AWWP. “A democracia é uma noiva azarada no nosso país, porque não há bons exemplos. É nossa amiga estranha, pois não sabemos o que ela é de verdade”.
José Antonio Lima
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