quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Efeitos da intoxicação aguda por álcool ("Ressaca")


A “ressaca” do álcool, ou veisalgia (do norueguês kveis, “mal-estar após devassidão/libertinagem”, e do grego algia, “dor”), parece ser a maneira que nosso organismo tem de nos lembrar sobre os perigos do consumo excessivo de álcool. A ressaca sempre se associa à intoxicação aguda de álcool; inicia-se cerca de 6 a 8 horas após o consumo (período em que a concentração de álcool no sangue diminui e retorna a zero, em média) e pode durar até 24 h. Ela é caracterizada por efeitos físicos e mentais adversos, com uma variedade de sintomas de “mal-estar”, sendo os mais comuns: dor de cabeça, náuseas, problemas de concentração, boca seca, tontura, desconforto gastrintestinal, cansaço, tremores, falta de apetite, sudorese, sonolência, ansiedade, e irritabilidade. No entanto, há uma variação muito grande desses sintomas (de pessoa para pessoa e de ocasião para ocasião), impossibilitando uma definição exata da ressaca1,2.
Existem várias hipóteses para explicar o aparecimento e a gravidade da ressaca. Além da quantidade de álcool consumida, outros fatores relacionados ao consumo propriamente dito (intervalo de tempo do consumo ou o tipo de bebida) podem influenciar o aparecimento da ressaca. Fatores psicológicos também parecem estar envolvidos, assim como a vulnerabilidade à dependência de álcool (como predisposição genética). Por exemplo, filhos de pais dependentes de álcool, mais vulneráveis à dependência, apresentavam ressacas mais graves do que filhos de não-dependentes, em condições comparáveis de freqüência e quantidade de álcool consumido3. A presença de alguns traços de personalidade em indivíduos com histórico familiar de alcoolismo também tem sido relacionada com a gravidade da ressaca4. Tal situação poderia favorecer o consumo de álcool, visto que, somado à vulnerabilidade genética, os indivíduos poderiam consumir mais álcool com o intuito de aliviar a sintomatologia da ressaca. Entretanto, ainda são necessários outros estudos a fim de estabelecer uma relação entre diversos fatores (genéticos e psicossociais), os efeitos do álcool e a ressaca.
Com relação à prevalência da ressaca na população em geral, presume-se que ela seja muito elevada. Alguns estudos mostram que 75% das pessoas que consumiram doses intoxicantes de álcool tiveram ressaca pelo menos uma vez na vida. Enquanto 50% dos bebedores freqüentes (consumo de uma ou duas doses por dia, de acordo com estudo5) apresentaram ressaca no último ano, 90% dos estudantes bebedores pesados episódicos (definido pelo estudo como o consumo de 5 ou mais doses em uma única ocasião) haviam sofrido ressaca5. Em geral, as pesquisas sugerem que a ressaca é um fenômeno muito prevalente, mas ainda há poucos estudos epidemiológicos para determinar com mais precisão e, especificamente, a real prevalência da ressaca em populações diferentes.

CUSTOS ECONÔMICOS DERIVADOS DA RESSACA

A ressaca é uma experiência relativamente muito freqüente entre as pessoas que consomem álcool e tem sido associada a um alto custo econômico. Contudo, é difícil separar os efeitos da ressaca dos efeitos do álcool em geral, com relação aos custos econômicos envolvidos. No trabalho e em ambientes acadêmicos, grande perda econômica associa-se a conseqüências negativas do álcool e da ressaca, como o absenteísmo (falta ao trabalho), baixa produtividade ou baixo desempenho, maior número de acidentes de trabalho e conflitos interpessoais.
Uma pesquisa nos Estados Unidos, com 2.805 trabalhadores, mostrou que o álcool afeta diretamente cerca de 15% dos trabalhadores. Mais especificamente, este estudo estimou que, entre os trabalhadores, 9,23% trabalham com ressaca, 1,68% trabalharam sob os efeitos do álcool, 1,83% beberam antes de trabalhar e 7,06% beberam durante o horário de trabalho. Assim, os custos derivados de trabalhadores que exercem a sua atividade de trabalho enquanto estão de ressaca seriam maiores do que os custos derivados de trabalhadores que bebem durante a jornada de trabalho, trabalham sob a influência de álcool, ou bebem antes do trabalho6.

A FISIOLOGIA DA RESSACA (Figura 1)

A fisiologia da ressaca é intrigante por seus sintomas se apresentarem somente após a (quase) completa eliminação do álcool e de seus metabólitos do organismo, geralmente no dia seguinte ao consumo excessivo de álcool. Existe a crença popular (não comprovada cientificamente) de que a desidratação é a principal causa dos sintomas da ressaca. Sugere-se que a ressaca e a desidratação sejam dois processos independentes que ocorrem concomitantemente, por meio de diferentes mecanismos.
Na ressaca, há mudanças fisiológicas significativas em parâmetros endócrinos (aumento nas concentrações de vasopressina, aldosterona e renina), além de acidose metabólica (redução do pH do sangue devido ao aumento de lactato, corpos cetônicos e ácidos graxos livres). Estes efeitos são também relacionados com a desidratação, podendo causar os sintomas como boca seca e sede. Como o álcool, por si mesmo, também induz a desidratação, durante a ressaca (ou durante/após o consumo não-exagerado de álcool) é essencial reidratar-se o máximo possível. Estima-se que o consumo de 50 g de álcool em 250 ml de água (aproximadamente 4 doses) causa a eliminação de 600 a 1000 ml de água em algumas horas7: o álcool é diurético (por aumentar a concentração de vasopressina, ou hormônio antidiurético) e alguns de seus efeitos, como suor, vômito e diarréia (comuns na ressaca), ainda promovem mais perda de água no organismo.
Há muitas hipóteses para explicar a fisiologia da ressaca. No entanto, todas explicam apenas parcialmente os diferentes aspectos da ressaca, ou como vários fatores são capazes de modificar seu surgimento e gravidade. Seguem abaixo as teorias mais aceitas ou discutidas atualmente, segundo Verster (2008)1, Stephens e colaboradores (2008)8, e Prat e colaboradores (2009)2.

a) A ressaca como resultado dos efeitos diretos do álcool em diferentes sistemas fisiológicos

Vários sintomas da ressaca podem ser explicados pelos efeitos diretos do álcool sobre diferentes sistemas fisiológicos. Contudo, as sobreposições existentes entre os processos fisiológicos e os diversos sintomas da ressaca dificultam o esclarecimento sobre os mecanismos envolvidos. Por exemplo, a dor de cabeça, um dos sintomas mais relatados durante a ressaca, pode ser explicada pelos efeitos de vasodilatação do álcool, ou pelo aumento de prostaglandinas e citocinas. Os efeitos do álcool, relacionados à ressaca, mais estudados recentemente são sobre o aumento de citocinas, alteração no sono e hipoglicemia.
O álcool aumenta as concentrações de algumas citocinas pró-inflamatórias, que seriam potenciais responsáveis pelos efeitos mais “cognitivos” da ressaca, como perda de memória e alterações de humor9. A diminuição da memória na ressaca estaria relacionada à ativação do sistema imunológico, que se comunica diferencialmente com o sistema nervoso central (SNC). Os efeitos causados por citocinas são muito semelhantes a diversos sintomas da ressaca, como dor de cabeça, náusea, diarréia e cansaço, sugerindo que os processos subjacentes poderiam ser os mesmos5. Outros estudos verificaram uma relação entre os níveis de citocinas e transtornos da memória em seres humanos10,11.
A hipoglicemia induzida pelo álcool pode afetar o funcionamento cerebral, levando a estados de fraqueza, cansaço e mudanças de humor, conforme observados durante a ressaca. No entanto, é preciso lembrar que a hipoglicemia induzida pelo álcool varia de acordo com o metabolismo de cada pessoa e também da ocasião em que o álcool é consumido (se o indivíduo se alimenta antes ou durante o consumo de álcool, a indução de hipoglicemia é muito menor)12.
O consumo de álcool também pode provocar alterações do sono, por interferir na atividade do cérebro e nos níveis de hormônios que regulam o sono e o “relógio biológico”. Alguns dos sintomas da ressaca são significativamente relacionados à duração e qualidade do sono, e não exatamente à quantidade de álcool consumido. Alguns autores observaram que, logo após a ingestão de altas doses de álcool, há diminuição da latência do início do sono13. No entanto, com a diminuição de álcool no sangue, período em que os sintomas da ressaca surgem, ocorrem alterações no padrão de sono e perda na qualidade do sono. Dessa maneira, os efeitos do álcool no sono poderiam explicar o cansaço e disfunção cognitiva observados durante a ressaca1,2.

b) A ressaca como conseqüência dos efeitos de congêneres nas bebidas alcoólicas

As bebidas alcoólicas contêm diversos congêneres, que são compostos quimicamente relacionados ao álcool, produzidos durante a fermentação alcoólica ou adicionados durante o processo de produção da bebida, incluindo o metanol, aminas, amidas, cetonas, polifenóis, e outras substâncias que dão sabor e cor às bebidas alcoólicas. Esses congêneres podem exercer diversos efeitos no organismo, sendo os efeitos tóxicos considerados potenciais causadores de alguns sintomas da ressaca.
Um dos congêneres mais estudados é o metanol, cujo metabolismo se correlaciona com o estabelecimento da sintomatologia da ressaca14 e também exerce diversos efeitos no SNC. Nota-se que as bebidas alcoólicas com maiores níveis de metanol induzem mais efeitos tóxicos e ressaca. Em paralelo, o consumo de bebidas alcoólicas com alta concentração de congêneres (vinho tinto, uísque, conhaque e tequila) aumenta a freqüência e intensidade dos sintomas da ressaca, em comparação a bebidas “claras”, como rum, gin e vodka, geralmente com pouco aditivos15.

c) A ressaca como uma crise de abstinência

Uma hipótese sustenta que a ressaca seria como uma primeira fase de abstinência alcoólica aguda, com base em vários pontos em comum na sintomatologia da ressaca e abstinência, tais como: dor de cabeça, náuseas, tremor e prejuízo cognitivo. Muitas vezes, as pessoas bebem para aliviar esses sintomas, tanto na ressaca ou na crise de abstinência; porém, o uso do álcool como um “remédio” para a ressaca não permite a recuperação do organismo, e o álcool continua a exercer seus efeitos.
Pelo fato da sintomatologia ser semelhante, foi sugerido que ambos os processos talvez envolvam um mecanismo biológico comum. Contudo, diversos estudos apontam para uma série de diferenças entre a ressaca e a abstinência alcoólica: as alterações hormonais e hemodinâmicas são diferentes; a síndrome de abstinência requer o consumo de álcool anterior e contínuo de grandes doses de álcool por um longo período de tempo, enquanto a ressaca pode surgir após uma única ingestão de álcool; durante a ressaca não há uma diminuição da atividade cerebral, ao contrário da hiper-excitabilidade do SNC observada durante a abstinência de álcool. Sendo assim, a maior parte dos pesquisadores acredita que a ressaca é um fenômeno diferente da abstinência alcoólica.

d) A ressaca como resultado dos efeitos do acetaldeído

No organismo, o álcool é metabolizado pela enzima álcool desidrogenase e transformado em acetaldeído (substância tóxica ao organismo). Este, por sua vez, é metabolizado pela enzima acetaldeído desidrogenase e transformado em acetato, gás carbônico e água. Em altas concentrações, o acetaldeído é capaz de produzir efeitos tóxicos adversos (como taquicardia, sudorese, náusea e vômito); e, como estes sintomas também estão associados à ressaca, alguns pesquisadores têm sugerido que este metabólito pode contribuir para ressaca. Entretanto, alguns estudos mostram que o acetaldeído não é acumulado em concentrações tão altas no organismo durante a ressaca. Assim, o papel do acetaldeído na ressaca ainda não está bem estabelecido.

CONCLUSÕES

Provavelmente, a ressaca é uma das conseqüências negativas da ingestão aguda de álcool mais vivenciada pela população geral. No entanto, este fenômeno não foi totalmente elucidado, apesar de sua elevada prevalência (principalmente em jovens) e os custos econômicos gerados por ela. As pesquisas científicas ainda caminham lentamente, sendo limitadas principalmente pela falta de um instrumento validado para medir a ressaca (devido à grande variabilidade e subjetividade dos sintomas). Além disso, a maioria dos estudos relatados em humanos, até o presente momento, não foi capaz de avaliar uma grande amostra de pessoas, geralmente apresentando menos de 200 indivíduos. Outros fatores como o impacto do gênero, alimentos e fumo sobre a gravidade da ressaca também merecem atenção no futuro. Há vários aspectos que precisam ser esclarecidos, a fim de prevenir e reduzir as conseqüências negativas clínicas, econômicas e sociais relacionadas à ressaca.

CISA

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