terça-feira, 20 de outubro de 2009

Balcão de direitos e prevenção de violência



Balcão de Direitos: Estratégia de Prevenção de Violência Interpessoal

Pensando sobre segurança pública, podemos dividir a violência em três partes: a primeira, representada pelo que Luke Dowdney chamou de violência armada organizada (Crianças do Tráfico – Um estudo de caso de crianças em violência armada organizada no Rio de Janeiro. Ed. 7 letras. Rio de Janeiro, 2004.): grupos mais ou menos organizados que empregam armas de fogo para apoiar sua atividade ilícita. Como exemplos claros, as atividades conhecidas como tráfico de drogas, jogo do “bicho” e milícias. A segunda parte trataria da violência criminosa individual: o sujeito que pratica crimes individualmente, ou seja, por um lado não se organiza para tal; por outro, tal qual a primeira modalidade, intenciona o crime antes do fato; prepara-se para realizá-lo. Mas há uma terceira parte da questão, infelizmente pouco analisada, tradicionalmente: a violência interpessoal, praticada geralmente por pessoas que se conhecem, ou que não intencionavam anteriormente cometer um crime, mas acabam por fazê-lo. Questão pouco analisada tradicionalmente, pretendemos aqui, ao mesmo tempo que jogar luz sobre tão importante questão – pela dimensão e pela relevância , relatar sobre uma experiência que procurou atuar exatamente para prevenir este tipo de situação.
Trata-se do Balcão de Direitos, projeto social que durante os anos de 1996 e 2006, atuou em diversas favelas cariocas (entre elas, Rocinha, Cantagalo, Morro do Pavão-Pavãozinho, Complexo da Maré, Santa Marta, e outras). Reconstruindo brevemente a trajetória do projeto, precisamos dizer que foi criado pela ONG Viva Rio, a partir da demanda de 25 lideranças comunitárias que localizaram o acesso á justiça – entendido como o direito a ter direitos – como um dos principais problemas em suas favelas.
Inicialmente, o Balcão de Direitos (que em seu início recebeu apoio do Ministério da Justiça) significava simplesmente a presença de núcleos comunitários de atendimento jurídico em favelas. Ou seja, sua equipe – composta por um advogado, estagiários de Direito e um Agente da Cidadania (liderança local) – dedicava-se a falar sobre as regras jurídicas e fazer com que demandas por ações judiciais destas localidades chegassem ao Poder Judiciário.
Entretanto, essa trajetória do Balcão de Direitos fez despertar, através da prática cotidiana, o fato de que muitas vezes o tratamento dos conflitos pela via tradicional (judicialização do conflito, em ações judiciais), tinha dois efeitos perversos: o primeiro dizia respeito à adequação; as soluções oferecidas pelo Judiciário estavam longe de atender às demandas locais. O segundo efeito perverso dizia respeito ao agravamento dos conflitos ao tratá-los pela via judicial. Relações – especialmente as permanentes, que duram no tempo, como as entre casais (mais propriamente, casais que se separam mas permanecem como pais e mães), ou entre vizinhos – que até a abordagem do projeto já vinham se tornando conflituosas, já agravadas pelas fortes emoções envolvidas, se tornavam ainda mais potencialmente violentas. A tradição de resolução de conflitos – jurídica ou não – é a oposição: as pessoas, que fazem parte da mesma relação, são colocadas como opositoras, adversárias, inimigas. Travam uma disputa pela verdade, a ‘melhor verdade’. Esta forma de tratamento dos conflitos – e das relações que o iniciam – tem como resultado a constituição de uma sociedade de opostos, que enxerga as diferenças como obstáculos à compreensão, e não como riqueza.
A solução encontrada pelo Balcão de Direitos foi substituir a via judicial por um outro tipo de processo, auto-compositivo: a mediação de conflitos. Na época pouco conhecida no Brasil, a mediação significa uma nova abordagem também das relações. Não considera a verdade como única, excludente, mas como objeto plural, construída pelas partes da relação. Não busca construir opositores, mas colaboradores na composição da solução.
Como nossa proposta é apenas relatar parte de uma experiência, não vamos nos alongar aqui falando sobre a mediação e o Balcão de Direitos. Os casos enfrentados no dia a dia do projeto servem como boa ilustração. Contemos aqui apenas alguns deles.
A primeira situação ocorreu no ano de 2000, no núcleo de atendimento instalado na Rocinha. Uma senhora chegou, desejando se separar de seu marido. O atendente começou a orientá-la sobre como proceder para entrar com a ação judicial, que documentos seriam necessários, quais seriam os próximos passos. Ao longo da conversa, ela foi revelando que a relação estava em um estágio primário de violência doméstica (relação violenta ainda estava começando, após um casamento de 12 anos), o que levou a ambos, atendente e atendida, a achar que a separação judicial comum poderia torná-lo ainda mais avançado, comprometendo sua integridade física. A opção seguinte era tentar uma medida liminar de separação de corpos, onde a cliente teria que registrar a ocorrência de ameaça ou lesão corporal em Delegacia de Polícia.
Conforme a conversa avançava, o atendente começou a perceber que ela não desejava separar-se. Ela desejava seu marido de volta, mas que ele deixasse de beber e de bater nela e no filho do casal, de apenas 11 anos. Um tratamento tradicional, o encaminhamento da questão para o judiciário, seguramente agravaria uma relação que ainda podia ser tratada através do diálogo.
Depois de um processo de mediação que durou um mês, as partes acordaram que: a. ele se comprometia a parar de beber; b. ele se comprometia a freqüentar, por livre e espontânea vontade, as reuniões dos Alcoólicos Anônimos; e c. os três – mãe, pai e filho – começariam a freqüentar o serviço de psicologia de uma universidade próxima à comunidade, parceria firmada pelo Balcão de Direitos. Este caso teve um fim interessante: cerca de seis meses depois, o atendente encontrou o casal pelas ruas da Rocinha. Ele havia parado de beber; e ela, muito feliz, acabava de sair de uma entrevista de emprego. Depois de 12 anos sendo impedida de trabalhar pelo marido, o tratamento do conflito inicialmente pela mediação, posteriormente por um serviço especializado de psicologia, transformou a relação de extremamente conflituosa em colaborativa.
Este é apenas um dos casos que mostraram que a opção por uma via dialógica, que não agrava as relações, pode ter grandes resultados. A mediação não é panacéia; em algumas situações (se por exemplo, a relação de violência estivesse em um grau um pouco mais elevado) ela não será suficiente, será necessário intervir diretamente. O erro tradicional é partir para essa intervenção – a capacidade do estado de submeter sua vontade, de exercer coerção – logo no início do conflito. Transformar em adversários aqueles que podem se tornar colaboradores.

Rio de Janeiro (RJ) · 23/9/2007
Rodolfo Noronha
Pós-graduado em Gestão de Direitos Humanos pela Universidade Cândido Mendes/RJ; Pós-graduando em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense/RJ; Mestrando do Programa de Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense/RJ.

Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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