Gazeta do Povo - Vida e Cidadania - Themys Cabral
A lei seca, que veio com o propósito de instituir sanções mais rígidas contra quem mistura álcool e direção, tem se tornado letra morta nos tribunais do país. Estudo do advogado Aldo de Campos Costa, doutorando pela Universidade de Barcelona, já havia revelado que 80% dos motoristas que se recusam a fazer o teste do bafômetro ou exame de sangue são absolvidos pela Justiça brasileira. Agora, outro levantamento mostra que mesmo motoristas que concordam em fazer o teste começam a ser absolvidos, porque há desembargadores que não aceitam o bafômetro como substituto para o exame de sangue.O entendimento ainda não é unânime, mas abre precedente, já que começa a desenhar uma jurisprudência sobre o assunto. Vem sendo seguido no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Os juízes de primeiro grau do Rio Grande do Sul também têm apresentado a mesma compreensão – mesmo tendo suas decisões reformadas em segundo grau. E, até que os tribunais superiores se pronunciem sobre o assunto, ninguém sabe para que lado os outros tribunais estaduais vão pender.
Contrariando o entendimento adotado por desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, os juristas entrevistados pela reportagem defendem a validade do Decreto 6.488/08, que faz a equivalência entre o exame de sangue e o teste do bafômetro. Para o juiz da 2ª Vara de Delitos de Trânsito de Curitiba, Carlos Henrique Licheski Klein, não há impedimento para que um dispositivo da lei penal seja complementado por outras normas. Um dos exemplos, segundo ele, é a lei de tóxicos.
“A lei não especifica quais substâncias entorpecentes causam dependência. A matéria é regulada em outro diploma legal. No caso da lei seca há expressa autorização do legislador para complementação pelo executivo”, diz.
Mas alguns entrevistados dizem ter dúvidas quanto à precisão do equipamento. É o caso do advogado especialista em trânsito Marcelo Araújo e do penalista Luís Flávio Gomes. O Inmetro informa, por sua vez, que o bafômetro, quando manuseado corretamente, é confiável – mas não 100%. “Todo equipamento de medição tem margem de erro”, explica a chefe de divisão de instrumento de medição físico-químico do Inmetro, Íris Chacon.
De acordo com o Inmetro, para ser utilizado em fiscalizações de trânsito, o modelo de bafômetro tem de ser primeiro aprovado pelo instituto. Em seguida, cada exemplar utilizado também passa por uma verificação, que deve ser renovada anualmente. “Neste caso, o bafômetro recebe uma etiqueta e um certificado”, diz Íris. É preciso ainda ter cuidado com as condições de uso do equipamento.
O inspetor Fabiano Moreno, da Polícia Rodoviária Federal, diz que a discussão jurídica acerca da validade do bafômetro não afeta os procedimentos de fiscalização. “Quem se recusa a fazer o bafômetro é autuado administrativamente, independente de apresentar sinais de embriaguez. Se recusar e tiver sinais de embriaguez, fazemos um termo de constatação, com duas testemunhas do povo, e encaminhamos o condutor para a polícia civil.”
Conforme o juiz Klein, o procedimento usual, na capital paranaense, é submeter o condutor ao bafômetro e, se houver necessidade, encaminhá-lo ao Instituto Médico-Legal (IML) para realização do exame de sangue. “Isso é usual, em especial quando ocorre um acidente com vítimas”, diz.
Golpe de misericórdia
Será este o golpe de misericórdia na lei seca? Talvez sim, ao menos na esfera criminal. A nova lei modificou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) em duas partes: a administrativa e a criminal. Na parte administrativa, a lei, concordam os juristas, trouxe uma inovação de êxito. Com a nova redação dada ao CTB, o condutor embriagado, com no mínimo 0,2 gramas de álcool por litro de sangue (ou 0,1 miligramas de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões), sofre sanção administrativa, o que significa dizer: multa de R$ 975, suspensão do direito de dirigir e retenção do veículo. Neste caso, não há dúvida. Vale tudo: prova testemunhal, bafômetro, exame de sangue. O CTB prevê, inclusive, punição ao motorista que não tenha sinais de embriaguez, mas que se recuse a fazer o exame de medição de alcoolemia proposto pela autoridade de trânsito.
Já na parte criminal, a aplicação pelo poder judiciário revela que, na prática, a nova norma, pela forma que construída pelo legislador, tornou-se difícil de ser aplicada. Primeiro porque, invocando o princípio constitucional de que “ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo”, os condutores que se negaram a fazer o teste do bafômetro ou exame de sangue obtiveram absolvição em 80% dos casos. A justificativa é que sem um exame pericial que constate o grau de embriaguez dos motoristas, os juízes ficam de mãos atadas e sem outra saída, senão absolver, mesmo quando há a confissão do sujeito.
Em segundo lugar porque os juízes e desembargadores precisam seguir exatamente o que está na lei. E a regra prevê detenção de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter permissão ou habilitação especificamente para quem for flagrado “dirigindo com 0,6 gramas de álcool por litro de sangue (ou 0,3 miligramas de álcool por ar expelido pelos pulmões)”. Ocorre que alguns desembargadores e juízes entendem que só o exame de sangue é capaz de fazer essa medição com segurança.
“O referido artigo exige, para a caracterização do tipo, que se constate a presença, no sangue, de quantidade superior de seis decigramas de álcool, emergindo patente que apenas a análise do tecido sanguíneo será apta a dar tal informação”, justifica o desembargador Roberto Martins de Souza do TJ-SP, em decisão recente. O entendimento também é seguido pela desembargadora do mesmo tribunal, Fernanda Galizia Noriega. “O exame do ‘bafômetro’ não tem o condão de constatar a efetiva concentração de álcool no sangue do indivíduo. Logo, sem o exame de sangue, não há como constatar se o apelado estava embriagado e, portanto, não se pode vislumbrar a materialidade delitiva para o prosseguimento do processo.”
Juízes e desembargadores que seguem tal entendimento contestam até a validade do Decreto 6.488/08, que disciplina a equivalência entre os diferentes testes de alcoolemia. Por se tratar de matéria de Direito Penal, dizem eles, deveria ter sido elaborado pelo poder legislativo e não pelo poder executivo. “O decreto é inferior a lei. A lei amarrou a aferição ao exame de sangue e não se pode aferir esse teor sem o exame químico”, afirma o desembargador Francisco Orlando, do TJ-SP.
Fonte: UNIAD
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