segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

''Não me lembro de ter inimigos''


Defensor de causas polêmicas, Marcio Thomaz Bastos livra-se de um câncer no pulmão e quer dedicar-se à defesa das cotas

Existem apenas dois tipos de causas que Márcio Thomaz Bastos se recusa a defender: as que envolvam traficantes ou crianças. Para todas as outras que chegam à mesa do seu escritório, na avenida Faria Lima, em São Paulo, o critério é sempre o grau de dificuldade. Quanto mais complexo, melhor.
Depois de 51 anos como advogado e quatro como ministro da Justiça do presidente Lula, o criminalista mais requisitado do País poderia dar-se ao luxo de evitar saias justas. Mas preferiu correr ao encontro delas ao ser contratado por clientes como Roger Abdelmassih - o médico acusado de abusos contra clientes em sua clínica de reprodução assistida.
Além da remuneração, mais atraente, Márcio faz isso porque é ardoroso defensor do princípio de que todos são inocentes até prova em contrário. Não por acaso, fundou uma ONG, o Instituto de Defesa do Direito da Defesa, que oferece assistência jurídica grátis para casos que desafiam o maniqueísmo. Nesta entrevista à coluna, o discreto ex-ministro fala de política, da relação com Lula e anuncia uma nova bandeira: a defesa da política de cotas.

Como é a sua relação, hoje, com o presidente Lula? Falo com ele com alguma frequência. Adotei uma regra: não ligo para ele, espero ele telefonar. Toda vez que vou a Brasília procuro passar por lá, dar um abraço nas pessoas. Vejo muito a Dilma e o Gilberto Carvalho.

É uma relação mais intelectual ou mais afetiva? Muito afetiva. Gosto dele e tenho certeza de que ele gosta de mim. Rimos muito juntos. A gente se acha engraçado, gosta de conviver.

O senhor passou muito tempo tentando coibir crimes econômicos. Como é estar do outro lado? Essa tensão dialética entre acusação e defesa é fundamental para o regime democrático. Ambos os papéis são relevantes. Eu estive num posto do qual comandava a Polícia Federal e agora voltei para o lado de cá. O Rui Barbosa tem uma frase bonita que diz assim: "Eu tenho o dever de respeitar as instituições, e o direito de criticar seus integrantes." É o que faço. Tive no começo o bom senso de não atuar enquanto não despressurizasse do serviço público. Passei dez meses sem advogar.

Como avalia os vazamentos ocorridos no caso da Camargo Corrêa? São claramente ilegais. Pedimos ao juiz que apurasse. Mas acho que a imprensa, ao recebê-los, tem o direito de publicar. Quem vazou é que deve ser investigado e punido.
Muita gente acha que são vazamentos políticos... Não acredito. O perigo de vazamentos em geral é que são informações fora de contexto. Pedaços de papel que podem dizer uma coisa e outra ao mesmo tempo. No caso da Camargo, soltaram uma lista, com grande estrépito, de políticos que teriam recebido doações. Depois se viu que todas elas tinham sido declaradas à Justiça Eleitoral.

Nos contatos com Lula, chegou a falar desse caso? Fui contratado pela Camargo num certo dia em que, por coincidência, eu tinha compromisso à noite em Brasília. Lá, resolvi dar uma passada no Palácio para cumprimentar o Gilberto, como faço sempre. Perguntei sobre a Dilma. Ele respondeu que ela estava com o presidente e sugeriu que entrasse, para cumprimentá-los. Havia uma reunião com Carlos Minc, Dilma e Márcio Fortes. Fui até meio inoportuno, interrompi a reunião. Eu disse: "Só vim dar um abraço". Nunca toquei nesse assunto. Eu faço um chinese wall bem forte sobre isso.

O sr. tem clientes polêmicos, como Roger Abdelmassih. Como os escolhe? Clientes polêmicos sempre vão existir. Trabalhei nisso a vida toda. Quanto mais difícil, mais excitante, joga mais adrenalina no sangue. Não escolho muito, são os clientes que me escolhem. Normalmente aceito, com restrições.

Quais? Casos em que a vítima seja criança, por exemplo. Isso vem desde que minha filha era pequena. Tenho um bloqueio psicológico. Casos de tráfico de drogas também não aceito.

O sr. vai defender as cotas para negros na UNB? Tive uma conversa com o ministro Edson Santos. Provavelmente vou assumir a causa. Sou a favor. São políticas compensatórias. Temos uma carga secular de dívidas. É preciso que quitá-las.
A proposta do Plano Nacional de Direitos Humanos gerou uma grande polêmica. Será que ela foi vazada para distrair a atenção de algo que não se sabe o que é? Esse projeto reúne coisas dificilmente compatibilizáveis, mas ligadas pelo tema direitos humanos. Não acho que vazaram por nenhum motivo conspiratório.

Não seria melhor ter discutido um tema de cada vez? Talvez taticamente fosse melhor. Não se abririam tantas frentes de disputa. Mas o texto se parece com os do governo FHC.

No plano, o sr. é mais Vanucci e Genro ou Jobim? Eles fazem parte da tensão natural do governo. Cabe ao presidente arbitrar.
Então, o sr. é Lula... (risos). Sim, entre todos sou Lula. Mas tenho muito respeito por eles.

É a favor da revisão da Lei de Anistia? Não. Acho que a comissão para descobrir a verdade é uma iniciativa meritória. Essa sim é boa para que o País se reconcilie com sua própria história. Mas não acredito que se possa, nem juridicamente, mexer na Lei de Anistia.

Com quem o sr. não se dá? Me dou com todo mundo. Sou uma pessoa de trato fácil. Não me lembro de ter inimigos.
Depois de sua saída do governo houve operações da PF acusadas de midiáticas... Quando fomos para o governo a Polícia Federal era uma coisa. Depois de alguns anos do presidente Lula, já era outra. Era uma instituição despreparada e o presidente, logo nos três primeiros meses de governo, praticamente dobrou o efetivo. Depois, foi reequipando. Acho que (o exagero) não passou de uma doença infantil da Polícia Federal.

O que o sr. aprendeu nos quatro anos de governo? Amadureci muito, perdi um pouco as ilusões que tinha. Aprendi que o serviço público é muito difícil. Temos uma tradição ibérica de Estado pesado, cheio de estamentos e categorias. É difícil fazer as coisas andarem. Na iniciativa privada é mais fácil.

Que saída imagina para isso? Não acredito em Estado mínimo, mas em Estado forte. Mas para ele funcionar é preciso reformar o Poder Executivo, o Legislativo e o Judiciário. O serviço público precisa melhorar muito. Vou dar um exemplo. Logo no começo minha ideia era criar um sistema penitenciário federal. O plano demorou três anos para sair do papel.

O sr. andou doente. Já se recuperou? Quarenta dias depois de sair do ministério fiz um check up e o cardiologista me informou que eu tinha um câncer de pulmão. Levei um susto. Operei em uma semana. Fiz quimio com o Drauzio Varela, dezesseis sessões. Tirei metade do pulmão. O tratamento durou até 21 de novembro. Nunca vou esquecer essa data.

É a favor da lei antifumo do Serra? Totalmente. Acho que cigarro devia ser proibido como droga.

Colaboração
Débora Bergamasco debora.bergamasco@grupoestado.com.br



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