domingo, 11 de abril de 2010

"Abuso na infância deixa a vítima viva para a dor das memórias"


Por Elisabeth Nonnenmacher, sobrevivente de abuso sexual na infância

Os números de casos de pedofilia cometidos por funcionários das igrejas têm assustado as pessoas no mundo inteiro.
Muitos dos pedofílicos agravaram suas compulsões sexuais porque foram expostos a abusos ou se envolveram nessas práticas durante preparação para a carreira religiosa.
Ao desistirem dessa carreira, muitos desses ex-seminaristas e ex-padres constituíram famílias. E um vasto número deles passou a abusar de suas próprias crianças e de outras de seu círculo de confiança de parentes e amizades.
Meu pai foi um desses seminaristas.
Eu gostaria de mostrar às pessoas que o fim do celibato não acabaria com a pedofilia, uma vez que esse desvio de comportamento já tenha se instaurado.
O maior problema que obstrui a percepção das pessoas para o que ocorre nas igrejas e nos nossos lares é justamente o fato de a maldade e a crueldade se esconderem sob uma máscara de bondade e de amor.

INFÂNCIA ROUBADA - Minhas memórias mais remotas de ter sido abusada por meu pai vêm da época que eu ainda ia ao jardim de infância. Ele me fez prometer que guardaria os abusos em segredo como prova de meu amor por ele e para comprovar que podia confiar em mim.
Meu pai sabia que o que fazia era errado, pois me advertira que, se um dia eu contasse a alguém, ele seria preso. Contudo, ele assegurava que eu era o maior amor que ele já tivera e que Deus, por compreendê-lo, abençoava este amor.
Minha inocência e espontaneidade para a vida se transformaram em desconfiança. Meus conceitos de certo ou errado ficaram afetados por muitos anos, pois o conflito de querer amar meu pai ao mesmo tempo em que era abusada por ele me dava a sensação de que algo estava muito errado, o que me fazia duvidar do que era certo afinal.
Esta tortura de abusos durou por toda minha infância e também em minha adolescência, até que comecei a tentar me esquivar dele e a protestar contra suas investidas.
Tudo o que eu queria no começo era esquecer o que havia acontecido. Apesar disso, não me foi permitido esquecer, pois ele voltou a me assaltar sexualmente, inclusive já em idade adulta.

LEGADO DE ABUSOS - Penso que as pessoas devem ser esclarecidas sobre a extensão de tal tipo de abuso, para perceber como isso vai para muito além da própria violência sexual e como as consequências disso são ruins.
Fiquei isolada por muitos anos, sem ter a quem pedir ajuda. A vida da pessoa fica afetada no sentido mais intenso e mais extenso que qualquer tipo de violência pode causar, tanto na dimensão física, emocional e espiritual. E, ao contrário da morte, o abuso sexual na infância deixa a vítima viva para sofrer a dor das memórias, do abandono, da traição e do desamor.

PERDÃO - Ao chegar no fundo do poço, fui levada a acreditar que meu pai queria mudar. Recebi encarecidos pedidos de desculpas, acompanhado de muitas promessas de uma vida nova e pensei que ele tivesse reconhecido os danos que me causara.
Ele jurava que jamais abusaria de alguém, que eu podia acreditar nele a partir de então. Eu era a pessoa que mais queria acreditar quando ele dizia estar curado do pecado através do qual ele me atingira!
Não demorou muito para que eu ficasse sabendo que meu pai havia abusado também de outras pessoas bem antes de eu nascer.
Apesar de perdoá-lo e de tentar me reconciliar com ele para tentar buscar um relacionamento em que pudesse haver confiança, me decepcionei mais uma vez.
Ao perceber toda a farsa, comecei a enxergar que ele voltara a abusar sexualmente de crianças.

RENEGADA - Passei anos me debatendo em brigas com meu pai e ele tentando convencer as pessoas de que eu era louca, pois me submeti a longos tratamentos psicoterapêuticos, acompanhados de fortes medicamentos para me manter “sob controle”.
Todas as tentativas de fazer com que as pessoas acreditassem em mim foram inúteis. Minha rebeldia fez com que eu me tornasse uma renegada.
As pessoas da família que sabiam do abuso me hostilizavam e preferiam ignorar o problema, para evitar a confrontação com o meu pai.

PARTIDA - Devido a minha frustração, por não encontrar ajuda e sem ter mais esperanças de impedir os abusos de novas vítimas, deixei o Brasil, vindo para a Austrália.
Longe das influências de minha família, consegui me fortalecer. Apesar disso, minha inquietação permanecia a mesma, pois sabia que meu pai continuava a molestar crianças.
Depois de alguns anos neste país distante, me associei à ASCA (organização de sobreviventes de abusos na infância) e tive contato com outros sobreviventes de pedofilia. Nesse envolvimento, adquiri conhecimento, apoio e reconhecimento. Encontrei novas formas de cura e ajudei a promover a consciência sobre esse crime.
Reconheci então que era meu dever alertar as pessoas para proteger novas vítimas de meu pai. Me dei conta de que eu não me perdoaria se, no fim de sua vida, eu percebesse que desperdicei a oportunidade de reivindicar meus direitos de levá-lo a enfrentar as consequências de seus atos.

ROMPENDO BARREIRAS - Resolvi quebrar o silêncio alertando pessoas em risco e as autoridades no Brasil. O que não foi fácil, porque familiares sabotaram minhas tentativas de interromper os abusos de meu pai.
Devido a essa sabotagem e o fato de não ter sido levada a sério pelas autoridades, fiz uma denúncia independente e pública, usando a tecnologia mais avançada de informação de massas da atualidade: a internet.
Em 2003, com meu último apelo, lancei o site “R-Evolução Anti Pedofílicos”.
A maior ironia de tudo isso era que os abusos que meu pai cometeu contra outras crianças se transformariam em sua autodestruição. Eu precisava apenas contar a verdade.
Mas, acima de tudo, meu alerta deu uma nova chance de vida a crianças que poderiam se tornar vítimas.

VITÓRIAS E RESISTÊNCIAS – O escândalo causado pelo lançamento da minha website fez com que as autoridades acolhessem minhas denúncias e, ao longo do processo, outras vítimas de meu pai confirmaram os abusos.
As minhas denúncias provocaram grande impacto porque o meu pai contribuiu para repressão do povo brasileiro durante a ditadura militar e posteriormente atuou na política e em esferas governamentais administrativas, tendo posição de autoridade no Ministério Público. Além disso, a nossa família se estende a nomes de importância.
Isso incomodou pessoas em posição de poder e, por causa disso, houve fortes interesses de que as notícias sobre as denúncias, identificando a pessoa do réu e a nossa família não repercutissem nacionalmente e no exterior.
Apesar de conseguir uma prisão preventiva em 2004 e condenação de mais de 10 anos em 2006, a repentina e conveniente descoberta de uma brecha na Constituição fez com que o Supremo Tribunal de Justiça do Governo Lula introduzisse a PROGRESSÃO DE PENA para crimes hediondos, reduzindo o encarceramento desses criminosos para 1/6 do período de suas sentenças originais.

EXIGINDO REPAROS - Os encobrimentos dos casos de pedofilia de padres pelo cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, têm causados choques e protestos no mundo inteiro.
Entretanto, se olharmos para o nosso quintal, a coisa não muda tanto de figura! Podemos dar o mesmo enfoque de responsabilidade a negligências cometidas pelos representantes do legislativo brasileiro, o presidente Lula e todos que têm poder para propor melhorias à legislação de modo a combater a pedofilia.
Infelizmente, as autoridades brasileiras, assim como Joseph Ratzinger, têm permitido que pedofílicos sejam beneficiados, em detrimentos de suas vítimas.
A inércia dos legisladores em Brasília faz com que a nossa luta não encontre voz para proteger as crianças e nem respaldo para o reconhecimento dos danos causados por abuso sexual na infância.
Com a progressão de pena, uma grande parte de pessoas sobreviventes de abuso e as que hoje são vítimas têm sido lesadas e retraumatizadas.
Por conta disso, quem saberá quantas crianças correm o risco de novamente serem abusadas e quantas já se encontram emocionalmente isoladas ao ter que carregar a promessa do segredo, como do maníaco que tenho por pai?
As pessoas precisam se dar conta da importância e da urgência de acabarmos com pedofilia, seja na igreja ou em nossos lares, e de fazer as pessoas perceberem como isso afeta uma nação.
Ajude a exigir mudanças na Constituição brasileira.
O poder está na união das pessoas! Todos nós podemos reagir!
Obrigada, em nome das vítimas e sobreviventes de abuso sexual na infância.

Paulo Lopes Weblog

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