quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Maternidade atrás das grades

Como é a vida no presídio modelo de Minas Gerais onde as detentas podem ser mães com dignidade


O pequeno e calmo G*, de apenas 9 dias, nem abre os olhos durante o passeio no colo da mãe, Carla, numa manhã de sol em um pátio de paredes cor-de-rosa. Y, 12 dias, mama com vontade, enquanto Francislaine acaricia o cabelo macio da filha recémnascida. Sorridente e esperta, M.L., 1 ano e 2 meses, faz gracinhas para Wagnéia, que, em troca, enche a menina de beijos e abraços. Doces cenas entre mulheres e seus bebês, que remetem a um dia tranquilo num parque ou numa praça ensolarada. Mas, na verdade, elas estão num lugar onde ninguém gostaria de criar um filho: um presídio. Por sorte, são detentas do Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Inaugurada em janeiro, é a primeira unidade do País com condições dignas de receber presas com filhos de até 1 ano. Uma iniciativa que faz do Estado pioneiro de um movimento pela humanização dentro do sistema prisional brasileiro, abarrotado com cerca de 30 mil mulheres num total de 470 mil confinados. O número de presas cresce 11% ao ano, enquanto o de homens aumenta a um ritmo de 4%. A expansão da população carcerária feminina trouxe o desafio evidente de lidar com cada vez mais detentas grávidas ou com filhos pequenos.
Com 47 mulheres acompanhadas de seus bebês, o Centro de Referência é livre de celas e grades nos seus quatro mil metros quadrados cercados por árvores. São alojamentos com até oito camas e oito berços, que permanecem de portas abertas, dando acesso à brinquedoteca, aos banheiros, à área para banho de sol, ao espaço com tevê. Nas paredes, fotos da família - inclusive de outros filhos - e desenhos de personagens infantis como decoração. Nos corredores, ouve-se o chorinho delicado e os gritinhos alegres dos pequenos, à vontade no lar que conhecem desde que nasceram. No alto das portas, bonequinhos coloridos com dizeres como "Seja bem-vindo", tal qual nas maternidades tradicionais. O espaço alugado foi no passado uma clínica psiquiátrica. A reforma custou ao governo estadual R$ 150 mil. E a demanda é tão expressiva que as gestantes já nem vão mais para lá (apesar do nome). Elas permanecem em uma ala no Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, em Belo Horizonte, até darem à luz e seguirem com suas crianças para o centro. A ideia é ampliar o local no ano que vem, para oferecer 100 vagas e ter capacidade para receber também as grávidas.
"Começamos a pensar nesse projeto em 2007", diz Maurício Campos Júnior, secretário de Defesa Social do Estado. "No ano seguinte, percebemos o aumento no número de mulheres presas e que elas precisavam urgentemente de uma unidade adequada às necessidades da maternidade."
Enquanto isso, no resto do País, muitos meninos e meninas passam a infância em presídios e cadeias, pois não têm quem possa cuidar deles. A maioria nem tem infraestrutura para abrigar adultos, o que dirá crianças. Superlotação, falta de condições de higiene, goteiras e infiltrações em tetos e paredes, insetos por todos os lados. Boa parte divide colchonetes com outras presas. Alguns tantos dormem direto no chão. Sem contar os maustratos que as mães sofrem e os filhos presenciam. Gestantes não costumam ter regalias. Vão para o banho frio e são obrigadas a aceitar a comida intragável - ou ficar com fome. No final de outubro, por exemplo, uma denúncia mostrou que 88 mulheres viviam presas em quatro contêineres no Presídio Feminino de Tucum, no Espírito Santo. São fatores que fazem da unidade de Vespasiano um sonho perfeito dentro do sistema prisional. As agentes penitenciárias são firmes, mas conseguem ser gentis. Todas têm formação técnica em enfermagem. Há uma equipe multidisciplinar à disposição: ginecologista, pediatra, enfermeira, psicóloga, dentista, assistente social e advogada. As presas participam de cursos de artesanato, cabeleireiro e auxiliar administrativo para, no futuro, terem maiores chances de reinserção social. Também se ocupam dos cuidados com os filhos e são responsáveis por lavarem a própria roupa e as do bebê, além de se revezarem na faxina. O clima é de paz, ornamentado por onipresentes sorrisos maternos orgulhosos.
A maioria das mulheres do sistema prisional brasileiro - 90% - está atrás das grades cumprindo pena por tráfico de drogas. Há as que atendam aos apelos do parceiro preso para lhe levar drogas na cadeia ou dar continuidade ao "negócio". Ou simplesmente vivem na companhia de traficantes e acabam consideradas cúmplices. Outras veem como sendo a saída para manter a casa. Wagnéia Aparecida Silva, 29 anos, ajeita o uniforme (camiseta branca e calça verde-água) antes de se sentar para contar sua história. Vem com a alegre M.L. no colo. "Fui representante de vendas. Fiquei viúva, faltou dinheiro, me desesperei", diz. "Amigos me disseram que no crime eu me daria bem." O marido, faz questão de frisar, era trabalhador. O segundo companheiro, pai da menina, também está preso. "Mas foi porque eu traficava e ele via eu fazer isso em casa. Ele não mexia com droga diretamente", defende. Taciana Pereira, 21 anos, mãe de J., 9 meses, diz que nunca foi criminosa. Gostava, no entanto, de ser mulher do patrão da favela pelo respeito e status da posição e o dinheiro que chegava a suas mãos. "Hoje, sei que era uma ilusão." Wagnéia e Taciana foram umas das primeiras detentas a chegar ao Centro de Referência. Gostam do conforto e da liberdade que o lugar oferece. Mas sabem que estar ali obriga suas filhas ao confinamento também. E a culpa por isso geralmente vem à noite, junto com as lágrimas.
A iniciativa do governo mineiro se adiantou à lei sancionada em maio, que obriga os Estados a oferecer espaços adequados para as presas mães poderem criar seus filhos. O projeto é de autoria da deputada federal Fátima Pelaes (PMDB), do Amapá, que luta pela sua aprovação há 14 anos. Fátima nasceu e viveu num presídio até os 3 anos de idade. A mãe dela cumpria pena por crime passional e engravidou da deputada já na prisão mista (ainda existem 426 penitenciárias nesse modelo). "Há quem diga que cadeia não é lugar de criança. Não é mesmo. Mas há milhares nessas condições, que dividem celas com outros detentos. É uma saída necessária", diz Fátima. O confinamento pode prejudicar o desenvolvimento psicológico infantil, a capacidade de aprendizado e levar ao sentimento de rejeição. Um ponto polêmico da lei é a obrigatoriedade de as crianças permanecerem até os 7 anos com a mãe. Seria muito tempo, dizem os críticos. A deputada garante que elas poderiam sair para ir à escola e que é melhor ficar com a mãe do que sozinho ou malcuidado. São Paulo é um dos primeiros Estados a se adequar. Já estão em construção dois presídios femininos, um em Tupi Paulista e outro em Tremembé, com alas especiais. Outras cinco penitenciárias estão em processo de licitação. O Ceará também estuda licitações. "Quando o homem é preso, é a mulher que mantém a unidade familiar em casa", afirma Andréa Neves, presidente do Serviço Voluntário de Assistência Social (Servas) e irmã do governador Aécio Neves. Se a presa for ela, o mais comum é que os filhos sejam entregues aos parentes e o marido a abandone. Fortalecendo a relação mãe-bebê, o risco e o impacto são menores.


NINHO - Os alojamentos são claros e espaçosos, com as camas das mães ao lado dos bercinhos. Personagens infantis e fotosde família decoram as paredes. O mais jovem morador, de 9 dias, no colo da mãe. Taciana brinca com a filha J.


O Centro de Referência de Vespasiano trabalha insistentemente essa ligação. Mas também foca no momento da separação. "Lembramos as mães que é apenas um até logo", diz a psicóloga Diana Mara da Silva. As crianças são encaminhadas para as famílias das presas. Raramente, garante a psicóloga, elas acabam em abrigos. "Procuramos alguém, nem que seja um parente mais distante ou um amigo, que possa cuidar bem desse bebê." Todas são gratas por estarem onde estão, pela oportunidade de poderem presenciar o primeiro ano das crianças e ter a chance de amamentar. No entanto, por melhor que seja essa fase, nada ameniza a hora de entregar o bebê. Parece ser o único assunto que faz as mães-detentas olharem com tristeza para seus filhos, demonstrando medo pelo futuro. "Dói só de pensar", diz, entre lágrimas, Francislaine Garcia, 19 anos, mãe da pequena Y. "Não quero acreditar que vai acontecer", diz a séria Carla Souza, 20 anos, mãe de G. Para Taciana, mãe de J. "não existe se preparar para se separar de filho". M.L., filha de Wagnéia, deixou a mãe na sexta-feira 20 para viver com uma tia. A detenta tem sido acompanhada de perto pela psicóloga. "Mas não há tratamento que faça alguém aceitar a dor de perder um pedaço da vida", diz, enquanto a menina lança mais um sorriso encantador para a mãe guardar de lembrança. E ter um motivo forte para nunca mais cometer qualquer ato que possa jogá-la atrás das grades.

Suzane G. Frutuoso, de Vespasiano (MG)

* Foram usadas só as iniciais das crianças para preservá-las


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