Como a natureza humana é a mesma nos dois lados do Atlântico, não se deve ficar surpreso com o escândalo que está triturando a reputação dos parlamentares na Inglaterra. Munido de um disquete com as despesas feitas nos últimos quatro anos por membros da Câmara dos Comuns, o equivalente à Câmara dos Deputados, o jornal The Daily Telegraph vem publicando um furo por dia e provocando um terremoto político. O arquivo mostra que os deputados com direito a verba para bancar moradia em Londres faziam uma folia com o dinheiro do contribuinte inglês. Pediam reembolso por gastos para consertar quadra de tênis, limpar fosso de sua casa de campo, aparar a cerca viva ou comprar cadeiras de massagem e televisão de tela plana. Os mais descarados cobraram por hipotecas que já estavam quitadas ou por reformas que valorizaram seus imóveis pessoais, logo vendidos por um bom dinheiro. Houve deputado espetando na conta até aluguel de filme pornográfico. Os comentaristas dizem que o Parlamento inglês, em seus 700 anos de vida, jamais chegou tão perto do fundo do poço.
Em duas semanas, já começou uma aglomeração no patíbulo. Primeiro, roloram três cabeças miúdas. Na terça-feira passada, caiu uma cabeça coroada. O presidente da Câmara dos Comuns, Michael Martin, ganhou dois motivos para entrar para a história. Fez o discurso mais rápido de que se tem notícia (34 segundos) e anunciou sua renúncia ao cargo (o que não acontecia havia 314 anos). Martin, um ex-metalúrgico que presidia a Câmara desde 2000, não foi flagrado pedindo reembolso de gastos tão esdrúxulos. Pelo menos, não desta vez. Renunciou porque, sendo presidente da casa, tinha responsabilidade sobre a bandalheira, além de ser conhecido pela infinita tolerância com gastos abusivos. (No ano passado, soube-se que sua mulher tinha uma tara por andar de táxi com dinheiro público. Gastara 14 000 reais em um ano.) Agora, Martin fez um tremendo esforço para impedir que a farra dos colegas viesse a público. Uma vez estampada no Telegraph, recorreu à saída clássica dos caídos: queria investigar como o arquivo vazou para o jornal. A Scotland Yard fez que nem ouviu o pedido.
A exemplo da farra brasileira das passagens aéreas, em que mais de 250 deputados fizeram turismo no exterior à custa do contribuinte, o escândalo inglês também não faz discriminação partidária. Pegou trabalhistas, conservadores e democratas liberais. Até os cinco deputados do Sinn Fein, partido republicano irlandês, que se recusam a assumir a cadeira no Parlamento, não se recusaram a meter a mão no dinheiro. Alugaram três casas em Londres, todas da mesma família, pagando 11 500 reais por imóveis que não valem 4 500. Mas a faxina está em andamento. O primeiro-ministro Gordon Brown, na toada da redução de danos, disse que todos os deputados trabalhistas enrolados no escândalo serão proibidos de se candidatar à reeleição – pela lei, o próximo pleito terá de ser convocado até junho do ano que vem. Seu maior rival, o conservador David Cameron, tomou a mesma providência. Como o número de envolvidos passa de 170, com risco de aumentar ainda mais, a renovação do Parlamento inglês na próxima eleição poderá ser extraordinariamente grande.
Na essência, a bandalheira inglesa não é diferente da farra das passagens aéreas no Congresso brasileiro. Nos dois casos, os políticos se aproveitaram de uma regulamentação pouco clara sobre o uso da verba pública e se apropriaram do dinheiro fazendo despesas que nem de longe são necessárias para o cumprimento de seu ofício. É óbvio que o espírito da norma inglesa não contempla os táxis de lady Mary Martin nem as 28 toneladas de esterco para adubar o jardim de sir Peter Viggers. No caso brasileiro, é igualmente óbvio que os contribuintes pagam passagens aéreas para que os parlamentares possam cumprir seu dever, indo e vindo para Brasília, e não para levar o deputado Michel Temer e esposa para um passeio a Paris. Até hoje se especula que o enorme progresso dos Estados Unidos em relação ao Brasil se deve ao fato de que americanos herdaram uma suposta superioridade dos ingleses sobre nossos ancestrais portugueses. Os escândalos dos dois países, com gênese tão parecida, são uma diminuta prova de que isso é lorota. A diferença, a brutal diferença, está nas instituições em cada sociedade.
Em Londres, os envolvidos vêm sendo punidos com a proibição de se candidatar à reeleição por seus líderes partidários, a opinião pública está indignada e estuda-se mudar a gestão do Parlamento. O primeiro-ministro Gordon Brown acha que chegou ao fim a era da autorregulação, que se assemelha a "um clube de cavalheiros do século XIX". Em vez disso, uma comissão independente do Parlamento pode ficar encarregada de definir as normas dos gastos. Em Brasília, todos que usaram as passagens aéreas em benefício pessoal estão anistiados, ninguém foi criticado por líder nenhum, a opinião pública parece mais cansada do que indignada e estuda-se uma regulamentação mais clara para o uso das passagens. É melhor do que nada. Mas falta debater medidas que, indo ao fulcro da questão, resultem em instituições cujo funcionamento independa da boa vontade e da honestidade de uns e outros. Uma comissão independente para fazer as normas, como se estuda na Inglaterra? Um órgão externo para fiscalizar o Congresso administrativamente, como já acontece na Justiça? Sem uma discussão fértil, desperdiça-se o potencial pedagógico dos escândalos. Na Inglaterra, pode-se antever que o caso resultará num Parlamento melhor, ou menos galhofeiro. No Brasil, é uma pena que não se possa dizer o mesmo.
Na essência, a bandalheira inglesa não é diferente da farra das passagens aéreas no Congresso brasileiro. Nos dois casos, os políticos se aproveitaram de uma regulamentação pouco clara sobre o uso da verba pública e se apropriaram do dinheiro fazendo despesas que nem de longe são necessárias para o cumprimento de seu ofício. É óbvio que o espírito da norma inglesa não contempla os táxis de lady Mary Martin nem as 28 toneladas de esterco para adubar o jardim de sir Peter Viggers. No caso brasileiro, é igualmente óbvio que os contribuintes pagam passagens aéreas para que os parlamentares possam cumprir seu dever, indo e vindo para Brasília, e não para levar o deputado Michel Temer e esposa para um passeio a Paris. Até hoje se especula que o enorme progresso dos Estados Unidos em relação ao Brasil se deve ao fato de que americanos herdaram uma suposta superioridade dos ingleses sobre nossos ancestrais portugueses. Os escândalos dos dois países, com gênese tão parecida, são uma diminuta prova de que isso é lorota. A diferença, a brutal diferença, está nas instituições em cada sociedade.
Em Londres, os envolvidos vêm sendo punidos com a proibição de se candidatar à reeleição por seus líderes partidários, a opinião pública está indignada e estuda-se mudar a gestão do Parlamento. O primeiro-ministro Gordon Brown acha que chegou ao fim a era da autorregulação, que se assemelha a "um clube de cavalheiros do século XIX". Em vez disso, uma comissão independente do Parlamento pode ficar encarregada de definir as normas dos gastos. Em Brasília, todos que usaram as passagens aéreas em benefício pessoal estão anistiados, ninguém foi criticado por líder nenhum, a opinião pública parece mais cansada do que indignada e estuda-se uma regulamentação mais clara para o uso das passagens. É melhor do que nada. Mas falta debater medidas que, indo ao fulcro da questão, resultem em instituições cujo funcionamento independa da boa vontade e da honestidade de uns e outros. Uma comissão independente para fazer as normas, como se estuda na Inglaterra? Um órgão externo para fiscalizar o Congresso administrativamente, como já acontece na Justiça? Sem uma discussão fértil, desperdiça-se o potencial pedagógico dos escândalos. Na Inglaterra, pode-se antever que o caso resultará num Parlamento melhor, ou menos galhofeiro. No Brasil, é uma pena que não se possa dizer o mesmo.
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