sexta-feira, 29 de maio de 2009

Quando o crime se mistura com a adoção

Sabe-se que o tráfico de crianças e adolescentes não é um fenômeno novo no mundo. A destinação de crianças a redes de prostituição, atividades pornográficas e trabalho escravo é registrada desde a antigüidade, em diversas regiões do planeta. O que é novo, assustador e perverso é a vinculação do tráfico com uma prática cercada dos conceitos mais favoráveis e humanitários, que é a adoção.
O modo como operam os criminosos nessa área é extremamente diversificado, envolvendo diversas pessoas e organizações.
A criança pode ser literalmente comprada de seus pais mediante pagamento de quantias ínfimas que são, às vezes, entregues a pretexto de assistir os outros irmãos. Há crianças que são raptadas de dentro de suas casas, na rua, em hospitais ou em creches onde passam o dia. Há mulheres que são contratadas para produzirem bebês mediante pagamento. Algumas dessas viajam para o exterior, onde a criança é entregue aos “pais adotivos”. Muitas mulheres viajam a países do terceiro mundo sem estarem grávidas e poucos dias depois regressam com um filho nos braços, devidamente “registrado”. Algumas vezes, a parturiente, ao internar-se na maternidade, utiliza-se da documentação de identidade da futura “mãe adotiva”, nacional ou estrangeira, em cujo nome o bebê é registrado. Há casos em que são comunicados aos pais “óbitos” de recém-nascidos, em certas clínicas que operam com venda de crianças. A Polícia Federal do Brasil possui um levantamento descritivo em que diversas das práticas enumeradas são identificadas.
Diversas irregularidades foram apuradas recentemente no Brasil, através da realização de duas Comissões Parlamentares de Inquérito, uma em nível nacional, da Câmara dos Deputados e outra estadual, da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará. Nesse último caso, as investigações resultaram na identificação de diversos advogados e de servidores do juizado de menores, envolvidos com ilegalidades em adoções, principalmente para o exterior, e provocaram o afastamento, por parte do Tribunal de Justiça, do Juiz de menores. A quadrilha, que possuía inclusive uma creche (ou “casa de engorda”), onde os bebês aguardavam seus compradores, como represália, abandonou seis crianças na porta da casa de um desembargador do Tribunal de justiça do Estado, conforme foi amplamente noticiado pela imprensa, em 1989.
A comissão da Câmara Federal constatou que “é marcante o envolvimento de juízes, advogados e funcionários públicos nessas práticas…” e também que “muito embora alguns processos de adoção estejam revestidos de procedimentos legais, são na verdade ilegítimos, pois são estruturados e organizados desobedecendo princípios éticos e baseados em atos ilícitos…”
No plano internacional, métodos ilícitos para obtenção de crianças vem sendo detectados e envolvem verdadeiras e poderosas quadrilhas, em geral operando em conexões que colocam em contacto os “produtores-vendedores” com os “compradores” de crianças. Os agentes se organizam, muitas vezes, em “escritórios de advocacia” que intermedeiam as adoções, cobrando honorários que oscilam, em geral, entre 10.000 e 20.000 dólares norte-americanos. Podem operar diretamente com casais adotantes (que optam pela chamada adoção independente), ou enviando para agências de outros países. A Organização Defesa das Crianças – Internacional DCI – publicou, em 1989, um documento (”Protección de los Derechos de los Niños en las Adopciones Internacionales”), onde está documentada a ligação existente entre o escritório de advocacia Cook & Linden, Professional Corporation, de Los Angeles, com Arlete Hilu, traficante de bebês atualmente cumprindo pena no Brasil. O mencionado escritório, sob o manto de atividade humanitária de proteção a crianças abandonadas da América Latina, oferece seus serviços não apenas nos Estados Unidos, mas em países da Europa e em Israel.
Em setembro de 1990, foi descoberto que em Serrinha, Bahia, o ex-padre e advogado italiano Luca di Nuzzo aliciava mulheres grávidas para entregar seus bebês. Consta que ele já havia enviado 300 crianças brasileiras para a Itália. Dois juízes italianos – Angelo Garnari e Cesare Martellino – estiveram no Brasil, com a finalidade de apurar o tráfico de crianças entre os dois países. Posteriormente a Polícia Federal Brasileira enviou um agente à Europa para prosseguir as investigações.
Fatos semelhantes têm sido documentados pela DCI, envolvendo crianças da Bolívia, Chile, México, Guatemala e outros. Na Argentina, em 1988/1989, foi realizada uma investigação sobre tráfico e venda de crianças, que identificou também diversos desses mecanismos naquele país.
Na América do Sul, as fronteiras são imensas, o que dificulta o controle das autoridades policiais e permite conexões “triangulares”, em que, por exemplo, crianças paraguaias são traficadas através da Argentina e crianças brasileiras através do Paraguai, por exemplo.
Não se tem uma idéia precisa do volume do tráfico e venda de crianças nessas modalidades. As dimensões dos países em que o fenômeno ocorre, a pressão exercida sobre os pais que vendem seus filhos e a conivência de parte da sociedade e de algumas instituições oficiais tornam as investigações e a prevenção extremamente difícil. Os fatos vêm à luz quando alguém denuncia, a imprensa descobre, uma mãe se arrepende ou algo “dá errado”.
Certamente esse é um desafio para a legislação nacional e internacional, para a organização policial e judiciária. Mas é também um desafio para o próprio modelo de sociedade, para a cultura que caracteriza as relações norte-sul, ainda marcadas pela idéia de “colonizador-colonizado”.
Enquanto se considerar que toda a criança pobre é um ser abandonado, desvalorizado, comparável a um objeto e enquanto se considerar o desejo de ter um filho como um direito a ser exercido a qualquer preço, será muito difícil abolir essas práticas que maculam as relações entre os países, povos e culturas.

Diga Não À Erotização Infantil

CAOP da Criança e do Adolescente

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