Etan Patz desapareceu há 30 anos e a ferida ainda está aberta
Porque hoje se celebra o Dia Internacional das Crianças Desaparecidas, convêm relembrar como foi criado este dia:
Por todas as crianças desaparecidas para que um dia possam voltar a casa, para todas as familias para que um dia possa acabar o seu sofrimento.
Nova Iorque, 25 de Maio de 1979. Um miúdo de seis anos sai de casa para a curta caminhada até à paragem do autocarro. Nunca mais foi visto. É o Dia Internacional das Crianças desaparecidas.
Por Luís Francisco
Duas vezes por ano, nos mesmos dois dias, Stan Patz pega numa folha de papel, vira o lado impresso para baixo e escreve uma mensagem sempre igual: "O que fizeste ao meu rapazinho?" Todos os anos, duas vezes por ano, Jose Ramos, detido numa prisão federal, ilude a pergunta. Não responde. Não confessa. Não desfaz o mistério que dura há 30 anos.
A 25 de Maio de 1979, Etan Patz, seis anos, desapareceu em Nova Iorque, no curto trajecto entre a sua casa no Soho e a paragem do autocarro da escola. Nunca foi encontrado.A arrepiante história sacudiu a América naquele tempo, mas algo neste caso (como, afinal, sucedeu com Maddie McCann) o tornou especial.
Tão especial que a cara de Etan foi a primeira a aparecer nos pacotes de leite como forma de procurar informações e, em 1983, o Presidente Ronald Reagan declarou 25 Maio o Dia Nacional das Crianças Desaparecidas.
Três anos depois, a data assumiu dimensão internacional. Neste dia, Stan, pai de Etan, pega num dos cartazes originais feitos com a foto do filho, escreve a sua eterna pergunta e remete a carta para a penitenciária do estado da Pensilvânia. E repete a rotina a cada aniversário do filho.
Perguntaram-lhe há cinco anos se ainda esperava uma resposta. "Não, mas quero que ele saiba que não esquecemos o que nos fez." Depois daquele dia, a vida dos Patz nunca mais foi a mesma. E tudo começou com a decisão de, pela primeira vez, deixar a criança ir sozinha até à paragem do autocarro.
Era uma curta caminhada de dois quarteirões, quase toda ela visível da escada de incêndio do prédio onde vivia, num bairro tranquilo da cidade e por ruas movimentadas. "Quase todos os outros miúdos vão sozinhos, por que é que eu não posso ir?", insistia Etan. Um dia, os pais cederam.No livro After Etan: The Missing Child Case That Held America Captive (cujo primeiro capítulo pode ser lido em http://abcnews.go.com/2020/story?id=7577234&page=1), a autora, Lisa R. Cohen, descreve como a mãe, Julie, se lembra de seguir Etan com o olhar durante quase metade do trajecto, até depois de atravessar a primeira rua rumo à esquina que dava acesso ao local onde apanharia o autocarro da escola.
E como resistiu à tentação de ficar ali até ao fim, à porta do prédio, a guardar o filho com os olhos, porque o mais novo (Ari, de dois anos) tinha ficado no apartamento, acompanhado de um amigo da mesma idade que lá dormira nessa noite.
A irmã Shira de oito anos e uma grande dificuldade para sair da cama), tinha de ser apressada a tomar o pequeno-almoço e o marido, Stan, fotógrafo profissional, ficara mais um bocado na cama depois de ter trabalhado noite dentro na véspera.Falsas memórias . As horas mais dramáticas da vida desta mulher e da sua família foram recuperadas mais tarde numa sessão de hipnose, com o intuito de descobrir algum pormenor que desse pistas sobre o desaparecimento de Etan.
Descobriu-se aí que Julie, uma ama que, daí a alguns minutos, receberia em sua casa oito crianças para tomar conta, criou uma falsa memória desse dia: na verdade, depois de o filho atravessar a rua, ela não foi à escada de incêndio para vigiar enquanto Etan dobrava a esquina. Foi ver dos pequenos, despachar a filha para a escola, tomar um banho rápido. Não viu Etan dobrar a esquina. Ele, provavelmente, não a dobrou.
A paragem de autocarro ficava em frente a um bar espanhol e ninguém se lembra de ver o miúdo ali. Também ninguém avisou a mãe de que Etan não tinha ido às aulas nesse dia. Era sexta-feira, véspera do fim-de-semana grande do Memorial Day, toda a gente fazia planos, talvez o mundo andasse distraído. A meio da tarde, Julie reparou que o filho tardava a chegar da escola.
Demorou apenas alguns minutos até a dúvida se transformar em agonia. Um telefonema para a escola, outro para a casa do melhor amigo. Etan nunca tinha, sequer, entrado no autocarro. Desaparecera nas escassas dezenas de metros em que caminhara sozinho, na primeira vez que os seus pais o autorizaram a fazê-lo.
Foi essa sensação de culpa que corroeu os Patz nas primeiras horas, enquanto centenas de polícias faziam buscas pelo bairro e a América se comovia com o drama de um miúdo risonho e independente, de uma família que podia ser, afinal, qualquer uma. Num artigo escrito para a New York Magazine (http://nymag.com/news/features/56441/) a propósito de mais um aniversário do desaparecimento de Ethan, Lisa R. Cohen recorda que uma geração de nova-iorquinos criada a brincar na rua com os amigos e a regressar a casa apenas para o jantar percebeu que esses tempos nunca mais se repetiriam.
O medo triunfara. A longa investigaçãoRamos, o homem que Stan acusa de ser responsável pelo desaparecimento e morte do filho, será libertado em 2012 após cumprir pena por pedofilia e abuso de menores. E só está na prisão porque um procurador de Nova Iorque, Stuart Gabrois, dedicou anos da sua vida a investigar o caso de Etan.
Várias provas circunstanciais (fotos de miúdos louros na manilha de esgotos onde vivia na altura; o facto de ter namorado com a rapariga que semanas antes tinha acompanhado Etan até à escola, durante uma greve dos motoristas; queixas de tentativas de aliciamento de jovens) apontavam Ramos como a única pista verdadeiramente viável para explicar o desaparecimento do rapaz.
Mas a justiça desistiu do caso porque não encontrou maneira de incriminar o vadio que ganhava a vida a recolher e a vender ferro-velho pelas ruas de Nova Iorque.Tudo o resto, as dezenas de pistas investigadas (a polícia de Nova Iorque chegou a ir a Israel), as centenas de telefonemas com denúncias ou informações sobre avistamentos da criança (que os pais anotavam sempre em intermináveis caderninhos), os falsos alarmes e as decepções, as palmadinhas nas costas, tudo isso deu em nada.
Até o cerco da imprensa afrouxou e os anos foram trazendo o esquecimento.No fundo, os Patz agradeceram o anonimato: logo na noite do desaparecimento, o repórter fotográfico de um tablóide, depois de fazer fotos dos pais, dirigiu-se à mãe: "Agora arranje-me aí umas lágrimas, para eu não ter de cá voltar quando encontrarem o corpo!
"Eles não se mudaram, porque Etan podia, um dia, aparecer. E também porque se recusaram a apagar todas as boas memórias que tinham daquela casa. Também nunca trocaram o número de telefone, porque Etan o sabia de cor. E, assim, continuaram durante anos a receber telefonemas com falsas pistas ou ofertas de ajuda, gestos de boa vontade que, com o tempo, se foram transformando numa tortura cruel. Quase a confissão.Mas eles não desistiram. Nem eles nem Stuart Gabrois, cujo chefe na altura era Rudolph Giuliani, futuro mayor de Nova Iorque.
Quando, finalmente, se descobriu o paradeiro de Jose Ramos, acusado de um crime na Pensilvânia, o procurador pediu para ser nomeado para o caso e interrogou-o. Ouviu do suspeito a confissão de que teria estado com um rapazinho nessa tarde de Maio de 1979, mas a criança recusara os seus avanços sexuais e ele a acompanhara até à estação de metro. Ramos estaria "90 por cento seguro" de que se tratava de Etan. Mas depois pediu um advogado e nunca mais admitiu qualquer ligação ao caso. Nem mesmo quando Gabrois conseguiu, em 1990, que ele fosse condenado a passar até um máximo de 20 anos na prisão por causa dos crimes cometidos na Pensilvânia.
Só que o procurador não estava preparado para desistir. Colocou informadores a partilhar a cela com Ramos e eles ouviram-no falar de detalhes que só alguém que conhecesse bem o caso poderia saber. Um dia, já perante o segundo companheiro de cela ali colocado por Gabrois para lhe "sacar" uma confissão, Ramos admitiu ter tido sexo com Etan, depois de o ter levado de Prince Street com uma simples frase: "Olá, lembras-te de mim? Sou o amigo da Sandy [a rapariga que acompanhara o miúdo nas semanas anteriores]."
Triste acaso ou instinto de sobrevivência, a verdade é que, tão perto da confissão definitiva, o presidiário faz nova marcha-atrás e descobre que o seu confessor era, afinal, um "bufo". Perante o cenário da libertação iminente de Jose Ramos, Stuart Gabrois e Stan Patz decidem avançar com um processo cível por homicídio por negligência. Para o fazerem, os pais têm de assumir legalmente que Etan morreu. É o que fazem.
Ganham o processo em 2004. Têm direito a uma indemnização de dois milhões de dólares que nunca receberão nem querem receber. Já nada trará Etan de volta. Mas Stan continua a escrever a Jose duas vezes por ano perguntando-lhe o que fez ao seu "rapazinho". Sempre na folha de papel onde, há muitos anos, alguém imprimiu o último sorriso de uma criança e a palavra "Desaparecido".
Jornal Público PT
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