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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
Lei não pode depender de aplausos ou vaias
Fernando de Barros e Silva é um jornalista competente e respeitado, escreve num dos principais jornais do país, e isso é ruim: amplia a credibilidade de uma tese já popular, a de que os suspeitos devem pagar pelos crimes que lhe foram atribuídos como se já tivessem sido condenados por eles (Folha, 28/12, pág. A2).
Habeas corpus, um instrumento democrático que há mil anos é a base dos direitos humanos, vira coisa ruim, suspeita — afinal de contas, se há tanta gente que não consegue habeas corpus, que estranhos poderes terá quem o consegue? E quais os argumentos secretos que comovem a Justiça? O advogado, o profissional dedicado à defesa dos direitos humanos, é sempre pago "a peso de ouro".
Já o Estado, que joga seu peso, sua estrutura e sua equipe, a mais bem paga do funcionalismo público, a serviço da condenação (lembremos os julgamentos americanos: "O Estado da Califórnia contra Fulano de Tal"), parece que é grátis. Ninguém, nem Fernando de Barros e Silva, lembra o custo da acusação.
Chama a atenção, no embasamento das teses dos defensores da masmorra imediata e irrestrita, uma importante falha: tudo o que é dito pode ser invertido e terá o mesmo valor (ou seja, nenhum). É verdade que muitas pessoas estão presas preventivamente sem que tenham sido julgadas; é verdade que poucas têm os pedidos de soltura examinados pelo Supremo Tribunal Federal; é verdade que poucas veem seu pedido atendido "em apenas quatro meses" pelo presidente do Supremo.
Mas é verdade que muitas pessoas cometem homicídios em série e não são identificadas nem presas (portanto, comete-se uma injustiça com o Maníaco do Parque, que fez a mesma coisa e está na cadeia). É verdade que muita gente cometeu crimes do colarinho branco e não foi apanhada (portanto, Bernard Maddoff, tadinho, está sendo tratado pior do que eles).
É verdade que muitos traficantes de drogas vivem como se respeitáveis fossem — que se conceda a liberdade, portanto, ao tão injustiçado Fernandinho Beira-Mar). Quanto ao tempo, como já ensinava aquele notável físico, é relativo.
"Apenas quatro meses" talvez não sejam um período tão curto para quem está encarcerado. Do caso em si, sei apenas o que li nesta Folha. Conheço pouquíssimo o médico Roger Abdelmassih, não simpatizo nem antipatizo com ele, como pessoa. Se for culpado, seus atos serão inqualificáveis: hediondez é pouco, repugnância é pouco. Mas não se pode esquecer, mesmo ao tratar com pessoas portadoras dos mais baixos instintos, que apesar de tudo são pessoas, são seres humanos; têm direito à defesa, têm direito a advogados, têm direito a ver a lei respeitada. Lei é uma regra geral a ser aplicada num número indefinido de casos futuros.
Não pode haver uma lei para cada caso, dependendo dos aplausos ou apupos da opinião pública. Nem se pode fazer uma lei para punir especificamente um caso já ocorrido.
A tentação, aqui, é citar o episódio narrado nos Evangelhos em que a opinião pública prefere salvar Barrabás e crucificar Jesus Cristo. Mas não é preciso buscar o episódio em que o público indignado prefere um criminoso a um santo. Basta-nos um exemplo nacional: o advogado Heráclito Fontoura de Sobral Pinto. Era anticomunista, católico de ir à missa todos os dias, contrário à violência.
Mas, em nome dos direitos humanos, defendeu o líder comunista Luís Carlos Prestes, que havia liderado a revolta de 1935, e o dirigente comunista alemão Harry Berger, em cuja defesa, já que toda a legislação era ignorada, chegou a invocar a Lei de Proteção aos Animais. Berger, de tão torturado nas masmorras, acabou enlouquecendo.
Sobral Pinto tem algumas frases clássicas, destinadas a advogados, mas que certamente se aplicam à coluna irritada de Fernando de Barros e Silva: "As paixões afastam a serenidade e a imparcialidade da Justiça." "Devemos confiar indefectivelmente na virtude da Justiça." "Enfrente a ilegalidade e o autoritarismo com firmeza e certeza na vitória final do bem."
E lembremos o notável Ulysses Guimarães, parceiro desta Folha na articulação da monumental campanha das diretas-já, que sepultaria o regime militar. Antes de entrar na vida pública, foi presidente do Centro Acadêmico 11 de Agosto e advogado Ele falava sobre política, mas poderia falar sobre direito ou sobre o atual jornalismo da indignação, de pouca reportagem e muitos adjetivos (para ele, aliás, política era tudo). Dizia Ulysses: "Política não se faz com o fígado. Não é função hepática".
Por Carlos Brickmann
[Artigo publicado originalmente pela Folha de S.Paulo, desta terça-feira, 5 de janeiro]
Fonte: Conjur
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