sábado, 8 de agosto de 2009

Doutores em família


Dos 5 600 escritórios de advocacia da cidade, apenas duas dezenas se dedicam exclusivamente a separações e divórcios, contratos de casamento, ações de investigação de paternidade ou planejamento sucessório para empresários. Alguns são comandados por estrelas do direito que cobram de 20 000 a 60 000 reais por uma defesa

São Paulo é a capital jurídica do país. De acordo com a seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), a cidade concentra 5 671 escritórios de advocacia, 107 000 advogados e 7 442 estagiários de direito. A maior parte desses profissionais trabalha em bancas dedicadas às áreas cível, criminal, tributária ou trabalhista. Apenas uma pequena parcela deles dedica-se exclusivamente ao direito de família, ramo em que são arquitetados contratos de casamento, separações, divórcios, ações de investigação de paternidade, testamentos, inventários e o planejamento sucessório de grandes empresas. "Em toda a cidade, não existem mais de vinte bons escritórios dedicados ao direito de família", afirma o jornalista Márcio Chaer, diretor do site Consultor Jurídico, o mais conhecido da área. São tão poucos que as principais estrelas do meio vivem se cruzando nos tribunais, ora no papel de defensor do marido, ora no de protetor dos direitos da mulher. Todos mantêm escritórios com quadros enxutos - em geral, os sócios majoritários atuam ao lado de meia dúzia de associados, além de alguns contadores encarregados de fazer os cálculos nas ações. Na firma da advogada Priscila Corrêa da Fonseca, que realiza cerca de noventa ações de separação por ano, atuam apenas doze advogados. Na de seu maior concorrente, Dilermando Cigagna Júnior, famoso por ter conseguido para a ex-mulher do empresário Flávio Maluf a maior pensão já estipulada pela Justiça brasileira - 217 000 reais mensais -, trabalham nove.
O direito de família e sucessões como é praticado hoje é relativamente novo. Embora os primeiros cursos de letras jurídicas do país, o do Largo São Francisco, em São Paulo, e o de Olinda, em Pernambuco, tenham sido criados em 11 de agosto de 1827, foi somente na segunda metade do século XX que as questões envolvendo separação, investigação de paternidade e divisão de herança passaram a ser tratadas como uma área nobre da advocacia. "Até o fim dos anos 70, a única maneira de encerrar um casamento civil era o desquite amigável ou litigioso", lembra o advogado José Roberto Pacheco Di Francesco, discípulo de um dos pioneiros do direito de família paulistano, o jurista e professor da USP Silvio Rodrigues (1917-2004). "Uma mulher desquitada que se unisse a um novo parceiro era sempre malvista. Dizia-se que ela vivia em concubinato, uma união à margem da lei."
Os atuais expoentes do ramo iniciaram a carreira nos anos 60 e 70. O sorocabano Celso Mori, 64 anos, coordenador do contencioso do Pinheiro Neto Advogados, um dos maiores escritórios da América Latina, é amigo de Cigagna desde os tempos da faculdade. "Ele foi meu calouro na USP em 1965 e, no ano seguinte, demos o trote juntos em várias garotas", conta Mori. Naquele tempo, o grande mote do direito de família eram as separações e os alunos de direito começavam a advogar antes de se formar - é de 1973 a lei que tornou obrigatório o exame da OAB, no qual os bacharéis precisam ser aprovados para poder exercer a profissão. "Os casos mais comuns eram os de homens com mais de 50 anos que haviam trocado a mulher por uma de 25 e tinham de pagar pensão vitalícia à ex", diz Cigagna. "Ainda assim, na hora de decidir quem fora o culpado pelo fim da relação, os juízes costumavam ser mais duros com as mulheres que com os homens", afirma Mori.
De lá para cá, muita coisa mudou. Em 1977 foi aprovada a Lei do Divórcio (até então existia apenas o desquite, que não permitia a formalização legal de um novo casamento civil). Priscila lembra que em sua primeira grande causa atuou contra o jurista e senador Nelson Carneiro (1910- 1996), autor da lei. "Eu defendi uma cliente que queria transformar sua separação em divórcio para poder casar-se novamente", afirma. "O ex-marido dela não aceitava, e por isso contratou Carneiro, mas eu ganhei a causa." Nessa época, teve início a rivalidade entre Priscila e Cigagna. "Nós brigamos no tribunal há trinta anos", diz ele. A mais longa contenda entre os dois durou uma década. Envolvia uma socialite que, ao final do casamento, exigia 50% do patrimônio do ex. Cigagna, defensor do marido, afirma que após dez anos de brigas ela acabou aceitando 15%. Priscila, advogada da mulher, contesta: "Eu jamais assinaria um acordo tão desfavorável para uma cliente minha".
Com exceção de Cigagna e Priscila, que são rivais declarados, os demais advogados do meio costumam ter relações cordiais. Aos 47 anos, Renata Mei Hsu Guimarães, comandante do Guimarães, Bastos, Chieco Advogados, é chamada pelos colegas de Renatinha. "Tive disputas memoráveis com Cigagna e Priscila nos tribunais, mas a agressividade jamais extrapolou os limites do fórum", diz Renata, que se nega a identificar sua clientela - por sinal, bastante estrelada. Essa discrição, aliás, foi muito importante para que ela conquistasse líderes de empresas como o Grupo Papaiz, para quem advoga desde 2004. "Por lidarem com processos que mexem com paixões e com a reputação das pessoas e que podem alterar o destino de clãs inteiros, os advogados que atuam nessa área mantêm com seus clientes uma relação de confiança quase religiosa", conta Chaer, do Consultor Jurídico. "É semelhante à que líderes espirituais como padres e pastores tinham no passado com os fiéis."
No campo da família, o sigilo é um dever de ofício e uma regra de sobrevivência. Advogados que trabalham no ramo têm de manter a diplomacia, pois é comum disputarem as mesmas contas milionárias. Luiz Kignel, 44 anos, sócio da Pompeu, Longo, Kignel & Cipullo Advogados, chegou a ser consultado para cuidar da sucessão em um gigante dos cosméticos paulistano, mas os executivos fecharam com Renata. "Esse é um meio cada vez mais competitivo, e quem se preocupa com rixa fica para trás", afirma Kignel.
É para evitar que detalhes de disputas de guarda de crianças se tornem públicos que a maioria desses casos corre em segredo de Justiça. Um exemplo recente é o do menino Sean, cuja guarda é disputada pelo pai biológico americano e pelo padrasto brasileiro, viúvo da mãe do garoto. O pai contratou o advogado paulistano Ricardo Zamariola Junior, 28 anos, sócio do escritório Tranchesi Ortiz & Andrade, com sede nos Jardins. Baseado na Convenção de Haia, o advogado pediu o retorno imediato da criança aos Estados Unidos. "A Convenção determina que é ilícito um genitor tirar o filho de seu país de residência sem a permissão expressa do outro responsável", explica Zamariola. "Retê-lo no exterior contra a vontade do pai ou da mãe também é proibido." A ação se estendeu em sigilo por mais de quatro anos. Nesse meio-tempo, a mãe de Sean pediu o divórcio e se casou com o advogado carioca João Paulo Lins e Silva. No ano passado, ela morreu ao dar à luz uma menina, e o novo companheiro passou a reivindicar a guarda de Sean, hoje com 9 anos. O caso foi parar nas manchetes do mundo todo em março deste ano, quando a secretária de Estado americana Hillary Clinton, em visita a Jerusalém, pediu que o Brasil entregasse Sean a seu pai biológico. O jovem Zamariola, então, saiu do anonimato e ganhou o direito de ter seu sobrenome adicionado ao do escritório em que atua desde 2000.

Ele defende o pai do Sean


Ricardo Zamariola Junior, 28 anos, é especialista em casos de sequestro internacional de crianças. Formou-se pela USP em 2003 e já defendeu uma dezena de pais e mães que tiveram filhos levados para outro país pelo ex-cônjuge. Seu cliente mais famoso é o barqueiro americano David Goldman. Morador de Nova Jersey, nos Estados Unidos, ele foi casado por quatro anos com a empresária brasileira Bruna Bianchi, com quem teve um filho, Sean, atualmente com 9 anos. Em junho de 2004, Bruna trouxe o garoto para passar as férias com os avós maternos no Rio de Janeiro e não retornou. Três meses depois, Goldman contratou Zamariola. "Desde então, temos lutado em todas as esferas judiciais para que a criança retorne aos Estados Unidos", afirma o advogado. Nesse meio-tempo, Bruna casou-se novamente. No ano passado, morreu ao dar à luz uma menina. O novo marido, o advogado João Paulo Lins e Silva, passou a reivindicar a guarda de Sean, em uma disputa que, entre ações e recursos, já deu origem a dezenove medidas judiciais. "Caso o Brasil não entregue o menor a seu pai, pelo princípio da reciprocidade, outros países poderão se negar a devolver crianças retiradas daqui em condições irregulares", diz

Veja - São Paulo

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