Reportagem presenciou forma escancarada como crianças de 12 e 13 anos se expõem à procura de quem lhe dê comida, objetos e dinheiro em troca de sexo
A prostituição infantil escancarada parece não chocar mais a população de Marcelândia (a 715 quilômetros de Cuiabá). Meninas de apenas 13 anos empurradas para a exploração sexual não são vistas como crianças: de vítimas passam a vilãs. “Elas não prestam”, comenta um morador. É comum ali encontrar garotas que deixam de lado a infância e entram no mundo da prostituição, muitas vezes trocam o sexo apenas por um pouco de comida ou por um calçado.
A pobreza e a falta de estrutura dos órgãos locais emperram o combate ao crime, que parece ter se tornado um hábito. Basta circular pela rua Domingos Martins, que liga o centro à periferia da cidade, ao entardecer, para perceber a movimentação de crianças e adolescentes que desfilam pela via de um lado para o outro na espera de alguém que reconheça nelas os traços de mulher, ainda em formação.
No vai e vem de carros, e de corpos, passa uma adolescente. O relógio marca quase 23 horas. É quarta-feira. Em um vestido curto, possivelmente para deixar o corpo de criança em evidência no contraste dos faróis, ela sobe a rua popular entre meninas de sua idade. “Eu não vendo meu corpo. Sou casada”, esclarece ela, que tem apenas 14 anos. E.B. conta que há um ano vive com o marido, de 22 anos, mas que já está em fase de separação. Morar com o rapaz, desempregado, foi uma alternativa para sair da casa da mãe. “Meu padrasto falou que não ia sustentar mulher para os outros. Eu entendi que ele me queria pra ele e resolvi casar com meu namorado”, relata, sem pudor, a menina.
Agora em fase de divórcio, ela não tem mais onde morar. Resistente a voltar para a casa da mãe devido à presença do padrasto, que trabalha como cortador de toras na mata, a adolescente enfrenta as dificuldades conjugais. No dia em que discute com o marido, ele molha seu colchão e ela dorme ao relento. Durante a conversa com a reportagem, diz com naturalidade “estou meio mal do estômago, não como há três dias”.
A jovem, com inocência de criança, se diverte ao contar que com cinco amigas, todas menores de idade, costumava freqüentar a casa de “Feio”, onde comia frutas e bolachas na cozinha enquanto a amiga de 16 anos mantinha relações sexuais com o homem no quarto. “Ele é rico. Tinha melancia, um monte de coisa na geladeira. Para minha amiga ele dava sempre R$ 50, sapato, vestido, essas coisas”, comenta.
O homem a que ela se refere é Deoclécio Monteiro. Ele foi preso em novembro pela Polícia Civil durante a Operação Castramento, para combate a pedofilia em Marcelândia. Na mesma ação, a polícia prendeu o empresário Jovino Scarpin, de 48 anos, chamado na cidade de “Sem Camisa”, apelido que ganhou pelo hábito de circular em público sem a peça de roupa.
Não há pela avenida que leva para o bairro Vila Esperança, que aglomera as famílias mais pobres da cidade, meninas que não conheçam algum menor que já saiu com “Feio” ou com “Sem Camisa”. Em interceptações telefônicas da operação, “Sem Camisa” negocia um programa com uma criança por R$ 100.
Não parece haver na cidade uma rede de prostituição infantil. “As negociações acontecem no corpo-a-corpo. São meninas de famílias muito carentes, que enxergam na oferta de uma roupa, de um calçado e, às vezes, de dinheiro, a oportunidade de ter coisas que os pais não dão.
Elas vêem as amigas andando arrumadinhas, com celular, e acabam sendo aliciadas. “Acaba sendo a opção da pessoa dentro da falta de opção”, analisa o delegado do município, Luiz Henrique de Oliveira. As vezes, as meninas faltam aula para se prostituir durante a tarde.
O delegado pontua que a presença de instituições que combatem crimes é recente em Marcelândia. Após cinco anos sem ter um delegado no município, Luiz Henrique chegou lá em 2008. Já o Fórum foi inaugurado em 2006 e a comarca passou a ter um juiz, Anderson Candiotto. Aliadas ao Ministério Público Estadual, as autoridades priorizam o combate a exploração sexual infantil, mas a empreitada enfrenta diversos obstáculos.
Entre 2008 e 2009, 12 pessoas foram presas por violência sexual contra crianças. No Fórum correm 24 processos por abuso sexual, 21 deles cometidos contra menores de idade. O problema existe, mas além de esbarrar na cultura local que se formou ali, mães muitas vezes apóiam a prostituição das meninas, o Conselho Tutelar não tem viatura própria para fiscalizar, a Polícia Civil conta com apenas um investigador e a Polícia Militar chega a ficar semanas sem viatura quando o carro quebra.
Meninas se iludem com ofertas feitas por abusadores locais
“Eles iludem a gente. Falam que vão dar dinheiro, comida, roupa, calçado. Ainda falam que se o pai não deixar a gente voltar pra casa, eles sustentam a gente depois”, conta A.P.N., de 16 anos, sobre a abordagem dos homens que procuram as menores em busca de programas sexuais. A menor, ainda bastante franzina, nega já ter saído com algum homem da região por dinheiro. Por medo do Conselho Tutelar e dos próprios aliciadores, negar a prática é algo comum entre as adolescentes. Contudo, elas sempre conhecem alguma amiga que já se prostituiu ou ainda o faz.
Os aliciadores geralmente são homens com idade superior a 30 anos e com certa estabilidade financeira. Meninas como A.P.N. se tornam presas fáceis diante das circunstâncias, contudo, ela afirma ter escolhido um destino diferente. Com roupas largas para a sua estrutura corporal franzina, na porta da casa de madeira, a menina conta que vive com o irmão de 28 anos por não ser bem-vinda pelo pai. “Trabalho de doméstica, ganho R$ 200 por mês, aí com R$ 50 eu ajudo meu irmão”.
Com os R$ 150 que restam, a menina sobrevive. “Tive que parar de estudar há dois anos para poder trabalhar, porque meu pai não deixava minha mãe comprar nada para mim. Eu precisava de roupa, de sapato. Agora, sem estudar, eu consigo trabalhar. Um mês eu compro uma calça, no outro, uma sandália, e assim eu vou comprando as minhas coisinhas”.
Enquanto sofrem o assédio sexual fora de casa pelas ruas, dentro dela, meninas como A.P.N. precisam lidar com outro problema, o abuso sexual, geralmente realizado por padrastos, e muitas vezes pelos próprios pais biológicos. “Meu pai nunca fez nada comigo, mas tentou fazer com a minha irmã quando ela tinha sete anos. Aí meu irmão viu e minha mãe chamou a polícia. Depois, meu pai foi solto e a gente voltou a morar com ele”, conta, como quem está habituada a ouvir histórias semelhantes. Quem não tem alternativa para deixar o lar, acaba se casando.
A presidente do Conselho Tutelar de Marcelândia, Maria da Penha Matias, afirma que é comum na cidade encontrar garotas de 13 anos já amigadas. “Está muito pesada a situação da cidade, apesar de ter melhorado com a atuação do juiz e do delegado”, lamenta.
Carros de todos os tipos são vistos na ‘abordagem’Em alguns minutos em que a reportagem esteve na rua principal que leva ao bairro Vila Esperança, um dos mais pobres de Marcelândia, flagrou diversos carros abordando adolescentes na via. São caminhonetes de fazendeiros, motociclistas e até mesmo caminhões de empresas com motorista e passageiro negociando com as adolescentes.
Em uma das negociações, uma menina se aproxima do caminhão e depois chama duas amigas. Todas sobem no veículo e são levadas pelo trio de homens para algum outro lugar da cidade. As menores de idade conseguem entrar nos hotéis – há apenas um de três que se recusa a recebê-las com acompanhantes -, e nos motéis, que também fazem vista grossa ao crime.
Nem mesmo uma portaria baixada pelo juiz Anderson Candiotto coibiu a prática. Em março, o magistrado determinou o toque de recolher para menores de 18 anos. Desacompanhados dos responsáveis, eles não podem ficar nas ruas depois das 23 horas. A determinação diminuiu o movimento nas vias públicas, mas a falta de estrutura do Conselho Tutelar e da Polícia para fiscalizar o cumprimento faz a medida perder a eficácia.
A priorização do combate à pedofilia pelos órgãos estatais lentamente está despertando a consciência da população para o fato de que a exploração de crianças e adolescentes é crime. Em caixas de denúncia espalhadas pela cidade pelo Ministério Público Estadual, a CPI da Pedofilia recebeu diversos alertas.
Até mesmo policiais militares teriam saído com crianças da cidade. “Temos denúncias seriíssimas. No dia 15 de agosto encerraremos a CPI. São casos que vão de abuso sexual a exploração infantil”, afirmou a presidente da Comissão instalada pela Câmara de Vereadores de Marcelândia, vereadora Darci Arroio Viana. No dia 13 de agosto, os integrantes da CPI serão recebidos pelo senador Magno Malta em Brasília, que preside a CPI da Pedofilia no Congresso Nacional.
A pobreza e a falta de estrutura dos órgãos locais emperram o combate ao crime, que parece ter se tornado um hábito. Basta circular pela rua Domingos Martins, que liga o centro à periferia da cidade, ao entardecer, para perceber a movimentação de crianças e adolescentes que desfilam pela via de um lado para o outro na espera de alguém que reconheça nelas os traços de mulher, ainda em formação.
No vai e vem de carros, e de corpos, passa uma adolescente. O relógio marca quase 23 horas. É quarta-feira. Em um vestido curto, possivelmente para deixar o corpo de criança em evidência no contraste dos faróis, ela sobe a rua popular entre meninas de sua idade. “Eu não vendo meu corpo. Sou casada”, esclarece ela, que tem apenas 14 anos. E.B. conta que há um ano vive com o marido, de 22 anos, mas que já está em fase de separação. Morar com o rapaz, desempregado, foi uma alternativa para sair da casa da mãe. “Meu padrasto falou que não ia sustentar mulher para os outros. Eu entendi que ele me queria pra ele e resolvi casar com meu namorado”, relata, sem pudor, a menina.
Agora em fase de divórcio, ela não tem mais onde morar. Resistente a voltar para a casa da mãe devido à presença do padrasto, que trabalha como cortador de toras na mata, a adolescente enfrenta as dificuldades conjugais. No dia em que discute com o marido, ele molha seu colchão e ela dorme ao relento. Durante a conversa com a reportagem, diz com naturalidade “estou meio mal do estômago, não como há três dias”.
A jovem, com inocência de criança, se diverte ao contar que com cinco amigas, todas menores de idade, costumava freqüentar a casa de “Feio”, onde comia frutas e bolachas na cozinha enquanto a amiga de 16 anos mantinha relações sexuais com o homem no quarto. “Ele é rico. Tinha melancia, um monte de coisa na geladeira. Para minha amiga ele dava sempre R$ 50, sapato, vestido, essas coisas”, comenta.
O homem a que ela se refere é Deoclécio Monteiro. Ele foi preso em novembro pela Polícia Civil durante a Operação Castramento, para combate a pedofilia em Marcelândia. Na mesma ação, a polícia prendeu o empresário Jovino Scarpin, de 48 anos, chamado na cidade de “Sem Camisa”, apelido que ganhou pelo hábito de circular em público sem a peça de roupa.
Não há pela avenida que leva para o bairro Vila Esperança, que aglomera as famílias mais pobres da cidade, meninas que não conheçam algum menor que já saiu com “Feio” ou com “Sem Camisa”. Em interceptações telefônicas da operação, “Sem Camisa” negocia um programa com uma criança por R$ 100.
Não parece haver na cidade uma rede de prostituição infantil. “As negociações acontecem no corpo-a-corpo. São meninas de famílias muito carentes, que enxergam na oferta de uma roupa, de um calçado e, às vezes, de dinheiro, a oportunidade de ter coisas que os pais não dão.
Elas vêem as amigas andando arrumadinhas, com celular, e acabam sendo aliciadas. “Acaba sendo a opção da pessoa dentro da falta de opção”, analisa o delegado do município, Luiz Henrique de Oliveira. As vezes, as meninas faltam aula para se prostituir durante a tarde.
O delegado pontua que a presença de instituições que combatem crimes é recente em Marcelândia. Após cinco anos sem ter um delegado no município, Luiz Henrique chegou lá em 2008. Já o Fórum foi inaugurado em 2006 e a comarca passou a ter um juiz, Anderson Candiotto. Aliadas ao Ministério Público Estadual, as autoridades priorizam o combate a exploração sexual infantil, mas a empreitada enfrenta diversos obstáculos.
Entre 2008 e 2009, 12 pessoas foram presas por violência sexual contra crianças. No Fórum correm 24 processos por abuso sexual, 21 deles cometidos contra menores de idade. O problema existe, mas além de esbarrar na cultura local que se formou ali, mães muitas vezes apóiam a prostituição das meninas, o Conselho Tutelar não tem viatura própria para fiscalizar, a Polícia Civil conta com apenas um investigador e a Polícia Militar chega a ficar semanas sem viatura quando o carro quebra.
Meninas se iludem com ofertas feitas por abusadores locais
“Eles iludem a gente. Falam que vão dar dinheiro, comida, roupa, calçado. Ainda falam que se o pai não deixar a gente voltar pra casa, eles sustentam a gente depois”, conta A.P.N., de 16 anos, sobre a abordagem dos homens que procuram as menores em busca de programas sexuais. A menor, ainda bastante franzina, nega já ter saído com algum homem da região por dinheiro. Por medo do Conselho Tutelar e dos próprios aliciadores, negar a prática é algo comum entre as adolescentes. Contudo, elas sempre conhecem alguma amiga que já se prostituiu ou ainda o faz.
Os aliciadores geralmente são homens com idade superior a 30 anos e com certa estabilidade financeira. Meninas como A.P.N. se tornam presas fáceis diante das circunstâncias, contudo, ela afirma ter escolhido um destino diferente. Com roupas largas para a sua estrutura corporal franzina, na porta da casa de madeira, a menina conta que vive com o irmão de 28 anos por não ser bem-vinda pelo pai. “Trabalho de doméstica, ganho R$ 200 por mês, aí com R$ 50 eu ajudo meu irmão”.
Com os R$ 150 que restam, a menina sobrevive. “Tive que parar de estudar há dois anos para poder trabalhar, porque meu pai não deixava minha mãe comprar nada para mim. Eu precisava de roupa, de sapato. Agora, sem estudar, eu consigo trabalhar. Um mês eu compro uma calça, no outro, uma sandália, e assim eu vou comprando as minhas coisinhas”.
Enquanto sofrem o assédio sexual fora de casa pelas ruas, dentro dela, meninas como A.P.N. precisam lidar com outro problema, o abuso sexual, geralmente realizado por padrastos, e muitas vezes pelos próprios pais biológicos. “Meu pai nunca fez nada comigo, mas tentou fazer com a minha irmã quando ela tinha sete anos. Aí meu irmão viu e minha mãe chamou a polícia. Depois, meu pai foi solto e a gente voltou a morar com ele”, conta, como quem está habituada a ouvir histórias semelhantes. Quem não tem alternativa para deixar o lar, acaba se casando.
A presidente do Conselho Tutelar de Marcelândia, Maria da Penha Matias, afirma que é comum na cidade encontrar garotas de 13 anos já amigadas. “Está muito pesada a situação da cidade, apesar de ter melhorado com a atuação do juiz e do delegado”, lamenta.
Carros de todos os tipos são vistos na ‘abordagem’Em alguns minutos em que a reportagem esteve na rua principal que leva ao bairro Vila Esperança, um dos mais pobres de Marcelândia, flagrou diversos carros abordando adolescentes na via. São caminhonetes de fazendeiros, motociclistas e até mesmo caminhões de empresas com motorista e passageiro negociando com as adolescentes.
Em uma das negociações, uma menina se aproxima do caminhão e depois chama duas amigas. Todas sobem no veículo e são levadas pelo trio de homens para algum outro lugar da cidade. As menores de idade conseguem entrar nos hotéis – há apenas um de três que se recusa a recebê-las com acompanhantes -, e nos motéis, que também fazem vista grossa ao crime.
Nem mesmo uma portaria baixada pelo juiz Anderson Candiotto coibiu a prática. Em março, o magistrado determinou o toque de recolher para menores de 18 anos. Desacompanhados dos responsáveis, eles não podem ficar nas ruas depois das 23 horas. A determinação diminuiu o movimento nas vias públicas, mas a falta de estrutura do Conselho Tutelar e da Polícia para fiscalizar o cumprimento faz a medida perder a eficácia.
A priorização do combate à pedofilia pelos órgãos estatais lentamente está despertando a consciência da população para o fato de que a exploração de crianças e adolescentes é crime. Em caixas de denúncia espalhadas pela cidade pelo Ministério Público Estadual, a CPI da Pedofilia recebeu diversos alertas.
Até mesmo policiais militares teriam saído com crianças da cidade. “Temos denúncias seriíssimas. No dia 15 de agosto encerraremos a CPI. São casos que vão de abuso sexual a exploração infantil”, afirmou a presidente da Comissão instalada pela Câmara de Vereadores de Marcelândia, vereadora Darci Arroio Viana. No dia 13 de agosto, os integrantes da CPI serão recebidos pelo senador Magno Malta em Brasília, que preside a CPI da Pedofilia no Congresso Nacional.
Diário de Cuiabá
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