domingo, 7 de junho de 2009

Caso S. põe em xeque as leis da Convenção de Haia


Aplicação do acordo internacional tem sido controversa

A batalha judicial entre o padrasto brasileiro e o pai americano por um menino de 9 anos desde a morte da mãe brasileira, que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), põe em questão a aplicação da Convenção de Haia no Brasil O acordo internacional firmado em 1980 para evitar o sequestro internacional por um dos pais foi incorporado pelo Brasil em 2000 (decreto 3.413/00), mas sua aplicação tem sido controversa pela difícil separação dos preceitos constitucionais de soberania, de proteção à família e aos direitos fundamentais da criança e do adolescente. No entanto, a legislação tem sido valorizada pelo STF, que mantém em seu site um link para o texto da convenção e ações para a sua divulgação no meio jurídico.
O link aponta para textos do Grupo Permanente de Estudos sobre a Convenção de Haia de 1980, que foi criado pela ministra Ellen Gracie em 2006. A ex-presidente do STF é defensora do compromisso internacional do Brasil com a convenção e chegou a ser cotada para a Corte de Haia.
Entre os textos que o site do STF oferece estão decisões judiciais que aplicaram a legislação. Um dos exemplos é justamente o caso de S.. Numa ironia do destino, uma outra peça disponível no site do STF é uma sentença do juiz federal Wilney Magno de Azevedo Silva, de março de 2007, da mesma 16ª Vara Federal do Rio que na última segunda-feira determinou a volta imediata de S. aos Estados Unidos.
Numa decisão muito parecida à do juiz do caso de S., Rafael Pereira Pinto, o magistrado atende ao pedido dos advogados de um pai canadense e determina a volta de um menino que vive no Brasil com a mãe desde 2004, depois de deixar o Canadá sem avisar o pai. Os advogados dele eram o padrasto de S., João Paulo Lins e Silva, e seu pai, Paulo Lins e Silva, líder de uma das bancas de direito de família mais prestigiadas do Rio.
O principal instrumento deles A Convenção de Haia. João Paulo admite ter atuado nesse caso, que acabou reformado em instâncias superiores, mas diz que são dinâmicas diferentes. O voto do juiz federal José Antônio Lisboa Vieira, convocado ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região, de 2007, mostra sua posição divergente no processo em que Bruna Bianchi, a mãe do menino, venceu o pai americano, David Goldman, na primeira tentativa dele de repatriar o filho.
A convenção prevê o retorno imediato de uma criança transferida para outro país sem o consentimento de um dos pais, para que o juiz de sua residência de origem decida sobre a sua guarda. Uma das exceções é quando já se passou mais de um ano da transferência e a criança está adaptada a seu novo meio.
No texto apresentado como exemplo no site do STF, Vieira argumenta que, embora àquela altura S. já estivesse no Brasil há mais de dois anos, a exceção não poderia sequer ser avaliada porque Goldman havia recorrido à Justiça ainda em 2004, poucos meses depois de ela ter deixado os Estados Unidos.
Ele argumenta que esse é o prazo que conta na convenção justamente para evitar que o raptor se beneficie de uma eventual demora da Justiça em cumpri-la.

QUEDA DE BRAÇO
O caso de S. ganhou repercussão no Brasil e nos Estados Unidos em 2008, após a morte dramática da mãe dele no parto da segunda filha, em agosto de 2008. O padrasto passou a reivindicar a paternidade socioafetiva do menino, levando Goldman a uma nova queda de braço judicial, com a adesão até da secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton.
O último lance da trama se deu na terça-feira (02), quando o ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu liminar suspendendo a sentença que havia determinado a volta de S. aos Estados Unidos em 48 horas. O juiz caracterizou, à luz da Convenção de Haia, que o menino está sob "retenção ilícita" no Brasil desde 2004 e já deveria ter voltado aos Estados Unidos, onde a questão da guarda deveria ser então resolvida definitivamente.
No entanto, Mello aceitou o argumento do Partido Progressista (PP), que recorreu à dupla nacionalidade do menino, para denunciar a remoção abrupta de um brasileiro sem o respeito a seus direitos fundamentais.
Desde 2004, enquanto a Justiça discutia a competência para decidir o caso, S. viveu cinco anos no Brasil, a maior parte de sua vida, onde criou raízes tão fortes com uma meia-irmã de oito meses. Além de ter encontrado no padrasto nova figura paterna, convive com os avós maternos que acabaram de perder a filha.
Por outro lado, separado do pai aos 4 anos, não consolidou laços com ele, tios e avós paternos nos Estados Unidos. "Hoje em dia, não sei qual seria a pior situação. Determinar o retorno da criança é uma violência, mas não determinar também é uma violência", constata Carmen Tibúrcio, professora de Direito Internacional da Universidade do Estado do Rio (Uerj).
Para ela, a culpa pelo dilema é da morosidade da Justiça. "Essa situação toda foi criada porque, de início, não se respeitou uma regra muito clara. A visão de que o destino da criança brasileira só pode ser decidido pelo juiz brasileiro é equivocada", avalia Carmen. Ela frisa que a convenção não determina que a criança seja devolvida ao pai, mas ao país de residência habitual. "O juiz de lá é que vai ter condições de recolher provas dos dois lados. Essa é a ideia da convenção", afirma, acrescentando que Bruna poderia ter voltado aos Estados Unidos e, assim, conquistado a guarda legal do menino.
Advogada especializada em direito de família, a ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Maria Berenice Dias concorda que a lentidão do direito de família no Brasil complicou o caso de S., mas diz que o menino é o último a pagar por isso. Ela acredita que o STF deve seguir a tendência de privilegiar a questão socioafetiva que tem se desenhado nas varas de família.
"O lado afetivo cada vez mais serve de apoio à nossa Justiça, em lugar de um legalismo horroroso que está na convenção. Ninguém está olhando essa criança e seus sentimentos. Não podemos sacrificar um menino pelo medo de que o Brasil sofra retaliações políticas. Seria a situação mais perversa de todas", diz Berenice, referindo-se à posição da Advocacia-Geral da União pela volta do menino diante dos processos de regresso de crianças brasileiras do exterior sob o mesmo mecanismo.
"Ao decidir um caso, atentar a um princípio constitucional não é descumprir o acordo internacional. Existe uma doutrina, exceções previstas na própria convenção, para isso." Carmen concorda, mas lembra que o interesse maior do menino pode não ser ficar no Brasil, mas a chance de conviver com a família americana.
Para ela, deixar de aplicar a convenção pode significar um prêmio para quem separou ou manteve o menino longe do pai irregularmente. "Não se pode premiar um comportamento ilícito. A convenção fala em sequestro no título porque, sem dúvida, é uma conduta contrária à lei. Não é pelo passar do tempo e a utilização de vários recursos e subterfúgios que aquilo que era ilegal vai se tornar legal."



Bem Paraná

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