domingo, 9 de agosto de 2009

Pelo menos 10% não têm sobrenome do pai


Asterisco substitui o nome paterno em certidões de nascimento de filhos que não foram reconhecidos por seus pais

José Ingo descobriu aos 50 anos de quem era filho e fez questão de trocar os seus documentos para que eles tivessem a filiação completa
Os dias que antecedem o segundo domingo de agosto são sempre difíceis para Priscila dos Santos, 27. Até os 23 ela não conhecia o pai. Há quatro anos, chegou a ter um contato, mas a relação foi esfriando sem que ela realizasse seu maior sonho.“Sinto falta é de não ter o nome do meu pai em meus documentos. É o que mais magoa. Ninguém nasce de chocadeira. Não sou filha de um asterisco, como aparece na minha certidão de nascimento.”
Ainda que não se saiba exatamente a dimensão do problema, não são poucas as crianças que nascem no Brasil sem o direito de saber quem é seu pai.Levantamentos realizados em algumas cidades mostraram que em pelo menos 10% das certidões não constavam o registro paterno. Especialistas estimam que, em todo o país, o percentual varie de 15% a 25%.No caso de Priscila, sua mãe, Ildenaura dos Santos, 57, nunca havia se preocupado seriamente com o fato de a filha não conhecer o pai.
Professora aposentada em Pernambuco, Ildenaura começou a perceber que, com a proximidade do Dia dos Pais, sua filha ficava mais triste. Até que decidiu perguntar se gostaria de procurar o pai. A busca não foi difícil e, num primeiro momento, tudo parecia caminhar bem. “De repente, começou a ficar mais frio. Até que resolvi ligar para ele. Uma mulher atendeu e me tratou muito mal. Desde então, parei de insistir”, diz Priscila.
Histórias como essa levaram a cineasta Susanna Lira a realizar um documentário sobre filhos em busca dos pais. Ainda em produção, a obra deverá ser exibida no próximo ano com o título “Nada Sobre Meu Pai”, uma referência ao filme “Tudo Sobre Minha Mãe”, do espanhol Pedro Almodóvar.
Um dos depoimentos mais emocionantes do filme é do corretor de imóveis José Ingo. Aos 50 anos, ele não titubeou quando sua mãe lhe perguntou qual presente gostaria: “Quero o nome de meu pai”. A mãe atendeu ao pedido, e Ingo iniciou a busca, mas descobriu que ele já estava morto. Foi, no entanto, muito bem recebido pelos irmãos, pois o pai alertara a todos que desconfiava ter um filho que nunca o procurara.
Ingo fez questão de trocar todos os documentos para que constasse a filiação completa. A própria Susanna nunca conheceu o pai. Sua mãe namorou um equatoriano que viveu na década de 70 no Brasil clandestinamente, por causa de atividades políticas. Ela conta que seu objetivo no filme é retratar a questão da paternidade de forma diferente. “Quero mostrar que nenhum tempo é demais para reatar laços afetivos.”
Esse medo de assumir responsabilidades quase afastou Vitória de Oliveira Carvalho, 4, de seu pai. A mãe, Patrícia Oliveira, conta que tentou fazer com que o ex-namorado assumisse a paternidade, chegando a ir à Justiça para exigir exame de DNA. O reconhecimento só aconteceu graças à interferência da atual mulher do pai. “Foi a mulher e a irmã que o convenceram. Este Dia dos Pais, ela passará com eles”, diz Patrícia.
Associação em PE ajuda quem busca reconhecimento
Por causa do preconceito que sofreu por ser mãe solteira e por ter tido que lutar para que o pai de seu filho o reconhecesse, Marli Márcia da Silva criou em 1992 a Apemas (Associação Pernambucana de Mães Solteiras). Desde então, a associação tem ajudado mães -e às vezes pais- no reconhecimento da paternidade.
Marli diz que o mais comum é o pai se recusar a reconhecer o filho, mas que muitas crianças ficam sem registro paterno também por burocracia ou opção das mães.“Muitas vezes, o pai aceitava reconhecer, mas os cartórios cobravam taxas absurdas. Fizemos em 2006 uma campanha em que esse serviço era oferecido gratuitamente, e em uma semana 1.688 pais fizeram reconhecimento”, diz ela.
De acordo com Marli, o Tribunal de Justiça pernambucano conseguiu garantir a gratuidade em todo o Estado, o que tem contribuído para diminuir o número de registros sem a referência ao pai.

Ao vê-lo, uma comporta de emoções se abriu
Passei metade da minha vida sabendo que era pai de um menino na França e, por causa da rejeição da mãe dele, congelei o sentimento por 20 anos. Eu tinha 23 anos, quando fui morar em Paris depois de terminar o curso de jornalismo. A mãe escondeu a gravidez de seu círculo de amizade e familiar, apesar de ter quase certeza de que eu era o pai.
Voltei para o Brasil quando Manuel tinha oito meses. Apenas um ano depois do meu regresso, a mãe, então casada, me contou a verdade. Quando tive a oportunidade de voltar a Paris três anos depois de saber oficialmente, fui rejeitado pela família, que estava formada.
Em vez lutar por ele, abandonei a ideia. Acumulei certa raiva dela, claro, e até da maneira de ser dos franceses. Um ano atrás tive coragem de procurá-lo, sem saber como estava a família, muito menos se ele sabia da minha existência, sem ter ideia de seu caráter, sua educação, seus desejos, sua opinião sobre tudo isso.
Por meio da internet localizei Manu. Hoje tem a mesma idade que eu tinha quando ele nasceu. Soube que sua mãe havia se separado do marido e poucos anos após a separação, quando ele tinha 12 anos, contou que seu pai biológico era um brasileiro “gente boa”. Mesmo assim nunca me procuraram. Ele não tem até hoje o nome paterno no registro, e eu nunca tive outro filho.
Fui visitá-lo em Paris no ano passado. Desde a primeira vez que o vi, uma comporta de emoção se abriu de forma incontrolável. A sensação do tempo perdido me atormenta, mas o presente que ganhei e o que espero do futuro junto dele é maior que tudo. Ele parece comigo, tem até alguns cacoetes que herdei do meu falecido pai. Também tem tudo o que eu esperava de um filho: doçura, sensibilidade, determinação, prudência.
Depois de conhecê-lo, todo o meu rancor em relação à sua mãe desapareceu, já conversamos os três, sinto que tenho uma cicatriz enorme dentro de mim, mas sua aproximação tem sido uma alegria para mim e para a minha família. Neste momento, ele e a namorada estão no Brasil. Passaremos juntos o Dia dos Pais brasileiro pela primeira vez.
Deixando os presentes de shopping de lado, o meu é este amor e esta aproximação. Tanto tempo longe, tanto medo na cabeça. Após o reencontro, percebi que as coisas podem se tornar simples. Basta dar chance à boa vontade e à boa conversa, espantar o orgulho e arriscar.

Alexandre Campbell, 41, carioca, é fotógrafo


Folha de S.Paulo
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Um comentário:

  1. Conheci o Manu, hoje, casualmente, no Viaduto do Chá, em São Paulo. É a cara do Xande. Bem parecido com o Xande que eu conheci 25 anos atrás.
    beijos,
    Suzana

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