Infelizmente a mente humana ainda sofre as conseqüências de nossa ancestralidade que vivia amedrontada diante dos predadores, em contínua busca de defesa, delimitação territorial e desejos de se livrar dos inimigos. Esse é o cérebro do réptil, ou complexo reptiliano, que ainda tem forte influencia na vida do homem contemporâneo. Aliado a isso, como construímos uma sociedade absolutamente excludente e desigual diante das diferenças, esse medo do inimigo, do estrangeiro ou do estranho, fica mais presente, contribuindo ainda mais para que a dinâmica do bode expiatório continue atual. E, como a maioria das tradições religiosas acabou se valendo de rituais de sacrifício para aplacar o medo do inimigo desconhecido, inconscientemente fomos treinados a encontrar as vítimas sacrificiais para aliviar nossa angustia e nos livrar dos sentimentos de pecado e de medo.
Ao refletimos sobre o sacrifício, sempre surge o sacrificador e o sacrificado. Assim, quando pensamos na existência do sacrificador, imediatamente surge a presença da vítima, pois se trata de uma “dupla” inseparável. Ora, numa sociedade preponderantemente governada por regimes autocráticos, o poder fica centralizado nas mãos de uma minoria que se ocupa em produzir e manter a divisão e a separação das pessoas. Isso geralmente é feito de forma sectária, nepotista e autoritária. Portanto, quanto maior for a opressão gerada pelas autocracias, maior também será a desigualdade na distribuição de poder, renda e conhecimento. Em outras palavras, maior será a exclusão, os sentimentos de raiva e de indignação que, via de regra, ficam contidos à espera de um extravasamento ou drenagem.
Dentre as várias possibilidades de drenagem ou exoneração destes sentimentos, os sintomas mórbidos, físicos, psíquicos ou sociais acabam sendo os mais usuais. Nesse cenário, surge a necessidade de um bode expiatório, cujo mecanismo possibilita a ilusão da exclusão e destruição do agente persecutório, que, aliás, é o responsável por qualquer sentimento de exclusão. Daí porque esse mecanismo se torna eficaz, porém transitório. Para que esse mecanismo seja eficiente, é necessário que os sacrificadores acreditem na culpabilidade das vítimas, como ficou evidenciado na inquisição. Inquisidores, acusados e carrascos demonstravam acreditar na potência da bruxaria e, por isso, ela precisava ser eliminada. Ao comentarmos sobre o sacrifício e bode expiatório não podemos deixar de citar a palavra holocausto, do grego holókauston, sacrifício em que a vítima era queimada inteira no sentido de buscar a purificação social. Sendo que os queimados, os bodes expiatórios, assumiam o papel de remédio, pharmakon, para o contexto social, até então doente.
O mecanismo do bode expiatório é muito usual e comum. Apesar de não termos consciência plena, ele pode ser percebido até no âmbito familiar, elegendo-se, consciente ou inconscientemente, um membro da família. Geralmente, mas não necessariamente, um filho leva a culpa e a vergonha pelas ações de outros membros, por ser o mais sensível ou com disfuncionalidades mais visíveis. O bode expiatório que “leva os pecados do mundo”, alivia os outros membros do grupo do confronto com a sombra, que é o desconhecido e assustador presente no inconsciente de todos nós. Esse ganho secundário mantém o grupo “fundido” em torno dele que é o “problema”. Com isso, o bode expiatório, por um lado, produz alívio ante aos sentimentos de raiva, indignação ou angústia, mas, por outro lado, impede o confronto, a diferenciação e a futura integração dos elementos sombrios, provocando uma estagnação e a contínua retroalimentação do mecanismo do bode expiatório, impossibilitando, conseqüentemente, o crescimento evolutivo.
Atualmente temos o “bullying”, que é o assédio moral, muito praticado por adolescentes nas escolas. Porém, também percebido em ambientes organizacionais e no contexto social como um todo, atingindo as diferenças de gênero, tipo físico, raça, religiões entre outras. Bullying é uma palavra inglesa que não tem correspondência na língua portuguesa. Representa um conjunto de atitudes violentas e agressivas, psíquicas e afetivas, intencionais e repetitivas, adotadas por um ou mais indivíduos, provocando intimidação a outro ou outros. Geralmente o praticante de bullyng é um sujeito “metido a valente”, provavelmente por estar sendo dominado por algum complexo de inferioridade, com o objetivo de ridicularizar outra pessoa ou grupo. Ou seja, o praticante de bullying projeta a sua inferioridade sobre outrem para aliviar sua baixa auto-estima. É uma prática muito freqüente tanto no meio educacional quanto organizacional e social. É uma atitude criminosa de agressão moral e humilhação que provoca danos em quem recebe e sansões legais para quem pratica.
Desta forma, bullyng, abuso de poder, assédio moral ou a dinâmica do bode expiatório, são mecanismos de defesa para aliviar o medo diante do diferente, do desconhecido e dos traumas ou complexos que cada indivíduo possui. Sendo essas práticas geradoras de comportamentos agressivos e negativos, na maioria das vezes executados repetidamente e nos relacionamentos onde há um desequilíbrio de poder entre os envolvidos. Por isso, a meu ver, só o processo de autoconhecimento extinguirá tanto algozes quanto vítimas dessas práticas abusivas, contribuindo para que a dinâmica da alteridade seja estabelecida nas relações humanas. Só assim, atitudes de amor e respeito, de ver e se deixar ser visto pelos outros, passem a predominar no convívio social, cultural, econômico e religioso do homem contemporâneo.
WALDEMAR MAGALDI FILHO (www.waldemarmagaldi.com), Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião.
Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado” e coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática e DAC – Dependências, abusos e compulsões da FACIS (http://www.facis.edu,br/)
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